A
vergonha do carrasco podia ser o subtítulo desta crónica
da tomada de consciência de um funcionário do terror, pelo primeiro escritor
soviético
Até
ser morto pela “grande purga” estalinista, campanha de repressão também
conhecida como “o grande terror”, Zazúbrin (pseudónimo literário de Vladímir
Iákovlevitch Zubtsov, 1895-1938) sempre se considerou uma figura do regime e
foi como homem de regime que escreveu o primeiro romance soviético, “Dois
mundos”, celebrado por Lénine como
“um livro terrível, um livro necessário”. Mas basta ler algumas páginas
do livro seguinte, “O tchekista”, para concluir que o artista era infinitamente
mais dotado e lúcido do que o homem-de-regime. No processo de escrita, Zazúbrin
revela ao leitor, à personagem de Srúbov e a si mesmo o mal em que se envolveu.
O livro torna-se um espelho da sua consciência aturdida pelo entusiasmo da
revolução.
Andrei
Srúbov é um carrasco “cheio de alegre determinação”. O seu trabalho para a
Tcheka (polícia de Estado criada por Lénine durante a revolução bolchevique,
com o objectivo de “aplicar um terror de massas sem piedade” e de fuzilar os
inimigos “sem perguntar nada a ninguém e sem delongas imbecis”) é apanhar os
inimigos dos bolcheviques e mandar executá-los. Os inimigos do regime são
também inimigos de classe. Tratada por “Ela”, a revolução é a amante, “patroa
cruel e excelente”, “de olhos penetrantes e furiosos”, em nome da qual “até o
assassínio era uma alegria”.
As
primeiras 33 páginas deste conto estarrecedor descrevem a execucação de 25
pessoas. O leitor fica a saber muitos pormenores sobre os corpos que estão
prestes a perder a vida, enquanto o carrasco Srúbov se imagina numa fábrica,
num matadouro de gado. Um dos fuziladores ajuda os condenados a despirem-se com
palavras meigas e festinhas na cabeça. Quando os corpos, “peças de carne branca
e crua”, caem no chão, há guinchos e pernas que se agitam em convulsões. Srúbov
fuma o seu cachimbo. Um desses corpos tem músculos de atleta. Srúbov sente pena
“do belo homem”, tal como já sentira pena de “um belo garanhão puro-sangue” com
uma pata fracturada.
Srúbov
interroga-se se a alma existe. Os olhos do pope (sacerdote da Igreja ortodoxa)
fazem-lhe lembrar os olhos feitos com passas de uva que a sua mãe punha nos
biscoitos de massa em forma de cotovias. Há também uma bela mulher de
sobrancelhas densas que tapa a nudez com os seus longos cabelos. Srúbov julga
reconhecer a mulher “à qual se prometera”. Puxa “do bolso a browning preta” e
dispara “uma bala niquelada na testa branca, mesmo entre as sobrancelhas
escuras”. A cave fica vermelha, os corpos continuam broncos. “Não são cadáveres
que caem, são bétulas de troncos brancos que rolam.” Srúbov regressa ao seu
gabinete e procura manchas de sangue na roupa. Tudo parece imaculado, até a
camisa branca de Marx no retrato pendurado na parede. Srúbov deambula pela sala
e as pegadas das suas botas desenham um triângulo de sangue no chão.
Antes
de ser executado, o pai de Srúbov escreve-lhe uma carta: “Pensas construir o
edifício da felicidade humana sobre milhões de torturados, fuzilados,
aniquilados… Estás enganado… A humanidade futura recusará a ‘felicidade’
construída sobre o sangue humano…” Srúbov é filho de um médico, um burguês,
cuja sentença de morte foi assinada por um amigo e colega de liceu. Quando uma
funcionária da Tcheka se põe a “martelar” no piano, ele é o único a reconhecer
a música de Skriábin. E quando a mulher o abandona, ele é o único a saber que o
fez não por vergonha de estar casada com um carrasco, mas por ele não saber
tirar benefícios da sua posição.
Srúbov
ambiciona um trabalho limpo, que permita ao executor não se distinguir do
dirigente teórico. A sua visão de um processo de “morte mecanizada” prenuncia a
“solução final” nazi: “No futuro a sociedade humana ‘esclarecida’ livrar-se-á
dos seus elementos supérfluos ou criminosos por meio de gazes, ácidos,
electricidade, bactérias mortíferas. Então não haverá tchekistas
‘sanguinários’. Uns senhores cientistas com ar douto mergulharão sem qualquer
receio homens vivos em balões e retortas, e usando toda a espécie de
combinações, de reacções, de destilações, começarão a transformá-los em graxa,
em vaselina, em óleo de lubrificação.”
Ao
assinar uma acta, Srúbov apercebe-se que entre o apelido do último condenado e
a sua assinatura “há apenas um centímetro de distância”. Também ele não passa
de uma estilha, de uma apara de madeira numa floresta de árvores decepadas.
No
prefácio contemporâneo ao livro, inédito até 1989, Dmitri Savitski afirma que
“a publicação desta obra na URSS não constitui a restituição de uma obra-prima
ao povo russo, mas uma nova acusação quase documental contra o partido
[comunista], culpado, como se escreve hoje abertamente na URSS, de ter ‘feito a
guerra contra o seu próprio povo’”.
Por
seu lado, no prefácio à edição de 1923 (que nunca chegou a acontecer), Valerian
Pravdúkhin, num estilo revolucionário paredes meias com a mentalidade de um
psicopata, afirma que “a questão está em saber se este pequeno livro pode ser
útil a um revolucionário que procure realmente um mundo novo (…) Estamos aqui
perante um herói como a história da humanidade ainda não viu. Diante da
tragédia interior deste herói, que não suporta a sua prova heróica.”
Apesar
de terem objectivos opostos, nenhum dos argumentos é descabido. Zazúbrin tinha
como intenção analisar o que impede o homem de “atravessar a fronteira que
separa o mundo antigo do mundo moderno” (cito Pravdúkhin). Só que fê-lo com tal
rigor a ponto dos seus camaradas intelectuais o terem acusado de um
“naturalismo excessivo”, “cru”. O livro revela que a URSS se fundou numa lógica
de “guerra contra o seu próprio povo”, eliminando também, juntamente com os
seus inimigos concretos e imaginários, qualquer chance de futuro. Como escreve
Savitski, “as pessoas capazes de resistir à violência e à mentira foram
destruídas, deixando lugar a uma raça de conformistas extenuados…” Passaram 90
anos desde que “O Tchekista” foi escrito. Vivemos outra vez entre dois mundos.
Sim, é um livro terrível, um livro necessário.
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