segunda-feira, 8 de julho de 2013

Vladimir Zazúbrin: O Tchekista


A vergonha do carrasco podia ser o subtítulo desta crónica da tomada de consciência de um funcionário do terror, pelo primeiro escritor soviético


Até ser morto pela “grande purga” estalinista, campanha de repressão também conhecida como “o grande terror”, Zazúbrin (pseudónimo literário de Vladímir Iákovlevitch Zubtsov, 1895-1938) sempre se considerou uma figura do regime e foi como homem de regime que escreveu o primeiro romance soviético, “Dois mundos”, celebrado por Lénine como  “um livro terrível, um livro necessário”. Mas basta ler algumas páginas do livro seguinte, “O tchekista”, para concluir que o artista era infinitamente mais dotado e lúcido do que o homem-de-regime. No processo de escrita, Zazúbrin revela ao leitor, à personagem de Srúbov e a si mesmo o mal em que se envolveu. O livro torna-se um espelho da sua consciência aturdida pelo entusiasmo da revolução.
Andrei Srúbov é um carrasco “cheio de alegre determinação”. O seu trabalho para a Tcheka (polícia de Estado criada por Lénine durante a revolução bolchevique, com o objectivo de “aplicar um terror de massas sem piedade” e de fuzilar os inimigos “sem perguntar nada a ninguém e sem delongas imbecis”) é apanhar os inimigos dos bolcheviques e mandar executá-los. Os inimigos do regime são também inimigos de classe. Tratada por “Ela”, a revolução é a amante, “patroa cruel e excelente”, “de olhos penetrantes e furiosos”, em nome da qual “até o assassínio era uma alegria”.

As primeiras 33 páginas deste conto estarrecedor descrevem a execucação de 25 pessoas. O leitor fica a saber muitos pormenores sobre os corpos que estão prestes a perder a vida, enquanto o carrasco Srúbov se imagina numa fábrica, num matadouro de gado. Um dos fuziladores ajuda os condenados a despirem-se com palavras meigas e festinhas na cabeça. Quando os corpos, “peças de carne branca e crua”, caem no chão, há guinchos e pernas que se agitam em convulsões. Srúbov fuma o seu cachimbo. Um desses corpos tem músculos de atleta. Srúbov sente pena “do belo homem”, tal como já sentira pena de “um belo garanhão puro-sangue” com uma pata fracturada.
Srúbov interroga-se se a alma existe. Os olhos do pope (sacerdote da Igreja ortodoxa) fazem-lhe lembrar os olhos feitos com passas de uva que a sua mãe punha nos biscoitos de massa em forma de cotovias. Há também uma bela mulher de sobrancelhas densas que tapa a nudez com os seus longos cabelos. Srúbov julga reconhecer a mulher “à qual se prometera”. Puxa “do bolso a browning preta” e dispara “uma bala niquelada na testa branca, mesmo entre as sobrancelhas escuras”. A cave fica vermelha, os corpos continuam broncos. “Não são cadáveres que caem, são bétulas de troncos brancos que rolam.” Srúbov regressa ao seu gabinete e procura manchas de sangue na roupa. Tudo parece imaculado, até a camisa branca de Marx no retrato pendurado na parede. Srúbov deambula pela sala e as pegadas das suas botas desenham um triângulo de sangue no chão.
Antes de ser executado, o pai de Srúbov escreve-lhe uma carta: “Pensas construir o edifício da felicidade humana sobre milhões de torturados, fuzilados, aniquilados… Estás enganado… A humanidade futura recusará a ‘felicidade’ construída sobre o sangue humano…” Srúbov é filho de um médico, um burguês, cuja sentença de morte foi assinada por um amigo e colega de liceu. Quando uma funcionária da Tcheka se põe a “martelar” no piano, ele é o único a reconhecer a música de Skriábin. E quando a mulher o abandona, ele é o único a saber que o fez não por vergonha de estar casada com um carrasco, mas por ele não saber tirar benefícios da sua posição.
Srúbov ambiciona um trabalho limpo, que permita ao executor não se distinguir do dirigente teórico. A sua visão de um processo de “morte mecanizada” prenuncia a “solução final” nazi: “No futuro a sociedade humana ‘esclarecida’ livrar-se-á dos seus elementos supérfluos ou criminosos por meio de gazes, ácidos, electricidade, bactérias mortíferas. Então não haverá tchekistas ‘sanguinários’. Uns senhores cientistas com ar douto mergulharão sem qualquer receio homens vivos em balões e retortas, e usando toda a espécie de combinações, de reacções, de destilações, começarão a transformá-los em graxa, em vaselina, em óleo de lubrificação.”
Ao assinar uma acta, Srúbov apercebe-se que entre o apelido do último condenado e a sua assinatura “há apenas um centímetro de distância”. Também ele não passa de uma estilha, de uma apara de madeira numa floresta de árvores decepadas.
No prefácio contemporâneo ao livro, inédito até 1989, Dmitri Savitski afirma que “a publicação desta obra na URSS não constitui a restituição de uma obra-prima ao povo russo, mas uma nova acusação quase documental contra o partido [comunista], culpado, como se escreve hoje abertamente na URSS, de ter ‘feito a guerra contra o seu próprio povo’”.
Por seu lado, no prefácio à edição de 1923 (que nunca chegou a acontecer), Valerian Pravdúkhin, num estilo revolucionário paredes meias com a mentalidade de um psicopata, afirma que “a questão está em saber se este pequeno livro pode ser útil a um revolucionário que procure realmente um mundo novo (…) Estamos aqui perante um herói como a história da humanidade ainda não viu. Diante da tragédia interior deste herói, que não suporta a sua prova heróica.”
Apesar de terem objectivos opostos, nenhum dos argumentos é descabido. Zazúbrin tinha como intenção analisar o que impede o homem de “atravessar a fronteira que separa o mundo antigo do mundo moderno” (cito Pravdúkhin). Só que fê-lo com tal rigor a ponto dos seus camaradas intelectuais o terem acusado de um “naturalismo excessivo”, “cru”. O livro revela que a URSS se fundou numa lógica de “guerra contra o seu próprio povo”, eliminando também, juntamente com os seus inimigos concretos e imaginários, qualquer chance de futuro. Como escreve Savitski, “as pessoas capazes de resistir à violência e à mentira foram destruídas, deixando lugar a uma raça de conformistas extenuados…” Passaram 90 anos desde que “O Tchekista” foi escrito. Vivemos outra vez entre dois mundos. Sim, é um livro terrível, um livro necessário.

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