O
socialismo no deserto: a mais horrível aventura humana precisa do mais belo escritor para ser relatada.
Em
1934, ninguém no aparelho soviético sabia muito bem o que fazer com Andrei
Platónov (1899-1951). Alternando a sua mal sucedida carreira de jornalista e
escritor com períodos de trabalho como electricista, administrador e hidrólogo,
Platónov era o que hoje podemos chamar um socialista não alinhado. Os seus textos
teóricos, políticos e técnicos não deixam dúvidas quanto ao seu compromisso
para com o socialismo. Já a sua obra ficional aponta para uma corrosiva paródia
ao processo de colectivização soviética.
Estaline,
que o considera um génio visionário, depois de ler “Tchevengur” e “A Escavação
(ed. Antígona), considera também que é “um louco, um idiota, um canalha”. Gorki
integra-o numa delegação de escritores ao Turquemenistão, para acompanhar os
resultados do plano quinquenal na Ásia Central. De regresso, Platónov apresenta
“A propósito da primeira tragédia socialista”, um texto em que começa por
afirmar que “a natureza não é grandiosa nem abundante. Está organizada de forma
agreste não providenciando nem com abundância nem com grandeza a ninguém. E
isto é positivo, de outro modo com o decorrer da história teria sido devastada,
desperdiçada, devorada, e as pessoas haveriam de repimpar-se nela até ao osso.”
Gorki, para quem “a terra está constantemente a revelar os seus incontáveis
tesouros”, considera o texto desajustado, pessimista e reacionário,
“reflectindo uma filosofia hostil ao socialismo”.
É
essa mesma “filosofia hostil ao socialismo” que transparece no romance que
escreve no ano seguinte, em 1935. “Djan ou a alma” (ed. Antígona, trad. António Pescada) tem como protagonista Nazar
Tchagatáev, “um jovem de etnia não russa”, que depois de frequentar o Instituto
de Economia de Moscovo, é enviado a Tashkent, no Kazaquistão, onde lhe é dada a
missão de resgatar da “miséria um pequeno povo nómada composto por várias
nacionalidades.” Ingénuo, apaixonado, generoso, Thagatáev “não conseguia
compreender porque é que a felicidade parece improvável a toda a gente e as
pessoas procuram cativar-se umas às outras apenas com a tristeza” O facto de
ser enviado para o mesmo lugar “onde nascera e queria viver” vem-lhe reforçar o
sentido de missão para com o socialismo, que já o fizera casar com uma mulher
de meia idade grávida e com uma filha adolescente: “ao ver agora de perto as
pequenas rugas de cansaço nas suas faces, a expressão do rosto que ocultava os
seus desejos, os olhos protegidos pelas pálpebras, os lábios cheios, toda a
misteriosa animação daquela mulher, oculta na sua substância viva, toda a boa e
sólida constituição do seu corpo, ficou intimidado de ternura por ela e não
seria capaz de fazer nada contra ela; até sentiu vergonha por se perguntar se
ela era bonita ou não.”
Tchagatáev
viaja pelas suas memórias de infância e por paisagens inóspitas onde qualquer
vestígio de água traz ressonâncias mágicas. O seu encontro com um camelo
sentado “como uma pessoa inteligente e triste”, ou com o velho Sufian, “pouco
parecido com um homem”, vão preparando o leitor, em atmosfera de conto
oriental, para uma tortuosa odisseia ao “inferno de toda a terra”.
Tchagatáev
vai encontrar o seu povo à beira da extinção no estuário do rio Amudaria (na
fronteira com o Afeganistão). Encontrará também Nur-Muhammed, um “enviado do
comité executivo distrital” que pretende acabar com o problema rapidamente:
“Mais valia dar sossego a este povo, esquecê-lo para sempre ou levá-lo para qualquer
parte do deserto, para a estepe e para as montanhas, para que se perdesse, e
depois considerá-lo como extinto.”
O
relato contido na 60 páginas seguintes, de um povo a atravessar o deserto, a
fome e a depredação, provocou-me náuseas. É uma caminhada por uma imensidão de
territórios inóspitos em que a vida animal e vegetal se abeira da morte. As
personagens abandonam-se ao sono e ao alheamento, refugiam-se na
insconsciência, sobrevivem no delírio: “Dantes pensava que os acontecimentos
insignificantes, e até os importantes da sua vida, estavam na sua maioria
esquecidos para sempre, eternamente encerrados pelos factos mais importantes
que lhe sucederam. Mas agora compreendia que tudo se mantinha intacto no seu
íntimo, indestrutível, como um tesouro, como os bens de um pobre rapinante que
açambarca aquilo de que ninguém precisa e que os outros deitam fora.”
O
último terço do livro, com a chegada ao planato de Ust-Urt (ou Ustyurt) é uma
lenta escalada da agonia que fica para trás. Tchagatáev interroga os sobreviventes,
“se tencionavam viver segundo o seu desejo ou se viviam apenas graças a forças
alheias”, e nesse instante apercebe-se, perante a impassibilidade daqueles que
o rodeiam, que “o seu povo não precisava do comunismo – precisava de
esquecimento, até que o vento arrefecesse e dissipasse pouco a pouco o seu
corpo no espaço.”
Mais
à frente, Tchagatáev reconhece a ingenuidade das suas pretensões: “as pessoas
vêm por si mesmas qual é para elas a melhor maneira de viver. Era bastante que
ele as tivesse ajudado a manterem-se vivas”. Tchegatáev é filho de um pai que
preferiu o desconhecido à família. Ele representa um exército de órfãos
comandados por Estaline “e não conseguiria em geral viver sem esse sentimento
de bondade da Revolução, que o protegera na infância do abandono e da morte
pela fome”.
De
uma lucidez desarmante, Platónov não exerceu o seu olhar sobre o regime ou o
sistema que o regime instaurou, mas sobre as pessoas que inocularam e padeceram
desse regime, sem chegarem a compreender a sua lógica. A forma gentil e
carinhosa como anima as suas personagens assemelha-se a um conto de fadas. A
sua arte reside em ter escolhido a mais terrível e austera aventura humana para
fazer germinar a beleza clarificadora da poesia, a serenidade da reflexão. “No
coração e no mundo pulsa, como numa jaula, uma felicidade que nunca foi
libertada, que nunca foi experimentada, e cada pessoa sente a sua força, mas
sente-a apenas como uma dor, porque a acção da felicidade está oprimida e
mutilada numa reclusão, como o coração dentro do esqueleto.”
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