quarta-feira, 30 de setembro de 2009

A derisão de "uma vida nova"

Fechados em nós mesmos, não temos a faculdade de nos afastarmos do caminho inscrito no nosso desespero inato. Isentamo-nos da vida porque não é o nosso elemento? Ninguém distribui certificados de inexistência. É preciso preserverar na respiração, sentir o ar a queimar nos lábios, acumular arrependimentos no coração duma realidade que não desejámos, e renunciar a dar uma explicação do Mal que entretém a nossa perda. Quando cada momento do tempo se precipita sobre nós como um punhal, e a nossa carne, instada pelos desejos, recusa petrificar-se, - como enfrentar um só instante acrescentado à nossa condição? Com a ajuda de que artifícios é que encontraríamos a força da ilusão para ir à procura duma outra vida, duma vida nova? É que todos os homens que lançam um olhar sobre as suas ruínas passadas imaginam, para evitar as ruínas futuras - que está no seu poder recomeçar qualquer coisa de radicalmente novo. Fazem a si próprios uma promessa solene e esperam por um milagre que os tire desse buraco medíocre onde o destino os enterrou. Mas nada acontece. Continuam a ser os mesmos, modificados apenas pela acentuação desse pendor para a decadência que os caracteriza. Não vemos à nossa volta outra coisa que não seja inspirações e ardores degradados: todos os homens prometem tudo, mas todos os homens vivem para conhecer a fragilidade da sua chama e a falta de génio da vida. A florescência do nosso futuro: caminho de aparência gloriosa, que conduz ao fracasso; esgotamento dos nossos dons: camuflagem da nossa gangrena... sob o sol triunfa uma Primavera de algas; a beleza ela mesma mais não é do que a morte a pavonear-se nos rebentos... Não conheci nenhuma "vida nova" que não fosse ilusória e comprometida desde o início, vi cada homem avançar no tempo para se isolar numa ruminação angustiada até cair em si mesmo com, em jeito de renovação, a crispação imprevista das suas esperanças.

EMIL CIORAN [volto a repetir: ler Tchioran]

Recursos de auto-destruição

Condenados a uma agonia sem génio, não somos nem autores dos nossos extremos, nem árbitros dos nossos adeuses; o fim deixou de ser o nosso fim: a excelência duma iniciativa única - pela qual resgataríamos uma vida insípida e sem talento - faz-nos falta, assim como nos falta o cinismo sublime, o fausto antigo dessa arte de acabar. Rotineiros do desespero, cadáveres que se aceitam, sobrevivemo-nos todos e não morremos para outra coisa que não seja cumprir uma formalidade inútil. Como se a nossa vida apenas se agarrasse ao adiar do momento em que poderíamos libertar-nos dela.

EMIL CIORAN [ler Tchioran]

O anti-profeta

Outrora eu tinha um "eu"; não sou mais do que um objecto... empanturro-me com todas as drogas da solidão; as do mundo eram demasiado fracas para mo fazer esquecer. Tendo morto o profeta em mim, como teria eu aindaum lugar entre os homens?

EMIL CIORAN [ler Tchioran]

A cidade dos cabos

Os cabos cobrem o céu desta cidade. Não sei se escreva teia, ou estendal, para descrevê-los. Mal esticados entre os postes, ondulam à beira da estrada, por cima dos passeios, descrevem uma trama nos cruzamentos e sugerem costuras nas ruas da cidade. Enfim, as costuras de um tecido roto e que precisa de ser passajado. Ontem, depois de perder os meus cinco minutos de contemplação a observá-los, decidi contar quantos cabos pode suportar um poste só. Desisti quando cheguei a 44. O que tem piada, e não se percebe, é que pendurados aos postes estão também rolos de cabos, o que quer dizer que alguns destes cabos terminam naquele poste… o que quer dizer que a ligação, pelo menos no que respeita a alguns cabos, fica ali interrompida… para que servem então? Também os prédios estão cheios de costuras: gigantescas telas com anúncios publicitários presas por cordas enrolam-se aos prédios… passa o tempo, a tela desaparece, mas ficam as cordas enroladas aos prédios… esta cidade está atada e presa por fios... sem eles, provavelmente, desmoronar-se-ia. É o seu encanto: uma cidade funâmbula.

A cidade dos corvos

Há quem diga que esta cidade tem dois milhões de habitantes, há quem diga que é o dobro. Não tem importância, os corvos são mais ainda e ninguém os conta. As árvores também abundam na cidade, de este a oeste, e com uma diversidade de espécies que vós, portugueses, não podeis avistar sequer nos parques naturais do vosso país. Pelo que não lhes falta poiso. Chega o fim da tarde, essa hora a que antigamente se chamava “entre cão e lobo”, e nuvens negras atravessam o céu, na direcção Leste. Pela madrugada, entre lobo e cão, dirigem-se novamente para Oeste. Provavelmente existe uma explicação singela para esta migração diária. Aliás, esta travessia geográfica também se traduz na psicologia dos romenos cosmopolitas. Durante o dia comportam-se como um povo mais ou menos ocidental, depois regressam a casa. Um novo dia começa e lá voltam eles a passar-se mais ou menos para o outro lado. É um ziguezague permanente: no discurso, europeus, na prática orientais. É um pouco como vós: quando olhais para a carteira só pensais em ser europeus; mas quando se trata de fazer despesa…

A cidade dos castanheiros

Nesta cidade abundam os castanheiros. Nos parques, nas ruas, nos quintais, por esta altura do ano é uma chuva de castanhas: as suas cápsulas cobertas de picos aterram no pavimento, abrem-se num trascaspaz e lá de dentro solta-se uma valente e pesadona castanha, infeliz por não ter aberto a cabeça a nenhum peão. Os castanheiros são habitualmente de grande porte, nesta terra, e o seu fruto pouco tem a ver com a nossa castanha pequenina, em forma de coração, tenrinha, perfumada e que tão bem sabe quando tostada no assador, com uma fina película de cinza. Não, estas castanhas, brilhantes e polidas, são barrigudas, informes, mais duras e mal gostosas do que a bolota. Não servem para nada a não ser levarem uns pontapés pela manhã, a caminho do trabalho. Quanto a elas, vingativas, não desistem enquanto não nos acertam uma cabeçada. Já não sei em que livro da Agustina ela escreve sobre um tempo em que se aferia a riqueza de alguém pelo número de castanheiros de que era proprietário. Se assim fosse, esta cidade seria rica. Provavelmente até o é. Só não sabe o que fazer dos castanheiros. De tão bonitos, não servem para nada.

O ídolo cicatrizado

Os amigos achavam-no culto, inteligente (embora discreto), até lhe reconheciam sentido de humor. As mulheres (assim como um ou outro rapaz) apreciavam-lhe ainda a figura atlética e esguia, com um rosto bonito e gentil. Um tique, não sei se nervoso, se causado pelo facto de precisar de óculos, fazia-o piscar os olhos. O facto de ter um sinal na pálpebra direita tornava o pisca-pisca ainda mais desconcertante. V., a namorada de longa data, pelo contrário, era considerada uma mulher estúpida, afectada, ignorante e presunçosa. Resumindo: era muito feia. Quando uma união tão improvável se torna duradoira, abundam as teorias maledicentes (ignoremo-las). Depois deu-se o acidente. G. foi atropelado enquanto conduzia a sua bicicleta e ficou desfigurado. Uma enorme cicatriz em forma de y, na continuação da comissura dos lábios, fez a expressão amável e terna desaparecer, dando lugar a um ricto estático. O tique nos olhos, entretanto, desapareceu. O rapaz encantador de antes era o mesmo, mas adivinhava-se agora na sua expressão um sentimento de repugnância, ou mesmo de desprezo. Um ano depois do acidente, G. saiu de casa. Era o fim duma relação que durava há sete anos. Ele tinha sido o ídolo dela. Depois, com o acidente, tudo mudou. “Nos últimos tempos já nem conseguia disfarçar. Tratava-o muito mal.” Não era verdade. V. continuou a tratá-lo da mesma maneira: como um espelho.

Entre duas mortes

Numa bela noite de primavera em quarenta e quatro,
em plena guerra, matou-a.
Ele tinha 50 anos, ela 32.
Desconfiava que andava a enganá-lo.
E temia que fugisse com o outro.
Tais pensamentos tornaram-se insuportáveis.
Já tinha 50 anos. Encarquilhava.
Matou-a numa noite de primavera
em quarenta e quatro, com um martelo.
Escondeu o cadáver no quintal, no canteiro das alfaces.
Dois metros debaixo da terra.
Numa noite de Maio.
A policia de Nantes anunciou que a esposa
desapareceu de casa. Com um oficial alemão.
A polícia procurou-a, tanto quanto se podia procurar em quarenta e quatro
uma mulher fugida com um oficial alemão.
Onde é que se encontra uma mulher fugida de casa
com um oficial aposentado?
Não a encontraram. A guerra estava no auge.
Havia dramas mais importantes. Os da humanidade.
Veio a paz. Voltou a casar-se. Com uma viúva de guerra.
Manteve-se na sua terra, em sua casa,
com quintal, perto de Nantes, no bairro Rézé, às portas da cidade de quem vem do sul.
Passaram-se anos. Deu-se a bomba atómica.
Foi descoberta a penicilina. Novos modelos de frigoríficos.
Novos fertilizantes químicos. O tratamento com vitaminas.
O nevrostenin. Novas ideias filosóficas.
Chegou-se à Lua. Floresceram biliões de flores.
Caíram biliões de toneladas de neve.
Biliões de metros cúbicos de chuva. Criou-se trigo.
Milho. Nabiças. Luzerna. Trevo. Trinitrotolueno.
Escreveram-se milhões de histórias. Biliões de poemas.
Passaram-se trinta anos, menos um.
Ele chegou aos 80 anos. Envelheceu bastante.
Já não lhe restava muito tempo.
Numa noite de Maio de ’73 telefonou
à polícia.
A polícia veio a casa dele. Conduziu-os ao quintal.
Era primavera. Fê-los cavarem
e descobriram-na, dois metros debaixo da terra.
Nenhum diário no mundo revelou o seu nome.
Um correspondente local
passou a notícia a Paris.
A mulher chamava-se Marguerite.
Era só o que era preciso, para a informação ter um rosto.

RADU COSASHU

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

O burro de Jurilovca

Os burros abundam neste país. Tal como os camponeses, de resto. Apesar de tudo, há mais cavalos do que burros. Em Jurilovca, uma vila de pescadores à beira do lago Dolovitza (na província de Dobrogea, a sul do Delta do Danúbio), encontrei um burro mais deagraçado que o Balthazar de Bresson. Uma corda, a fazer de arreio, esgaçara-lhe o pêlo e tinha o cachaço em carne viva. A exposição ao sol e à humidade dera origem a uma película lanígera cor de avelã, que lhe cobria parcialmente o dorso em jeito de capote e a cabeça em forma de gorro. A tristeza do mundo num olhar. Aproximei-me dele. Deu um passo trôpego e encurtou a distância. Quando a miséria é tanta nunca temas um estranho. Zurrou três vezes antes do barco partir. Cinco dias depois voltei a Jurilovca. Estava no mesmo lugar, preso ao muro, onde se amparava, à procura de sombra. De regresso a Bucareste cruzei-me com outros burros, a puxarem carroças. Vêm-se muitos cavalos a pastar livremente, nos vales e planícies desta terra, mas nunca vi um burro à solta, pensei. Ao fim da tarde, avistei um, numa pastagem. Agitado, caminhava em círculos, reduzia a marcha e arrancava para um novo círculo.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Procuro amigos

Procuro amigos. Não posso estar o dia todo
a teus pés, a ler-te jornais.
O barco não tem telefone. O telégrafo Morse
está reservado tal como a última bala no cano.
Para ti. Procuro amigos. Aborreço-me.
Bato à porta de Vito Santangelo. Dorme.
Está doente, após vinte anos de peregrinação
pela Sicília, cantando de aldeia em aldeia, empoleirado
no seu carro, as notícias dos jornais
adaptadas em canções e histórias. Contador de histórias ambulante,
dramaturgo e jornalista como eu, mais cinco ou seis
trabalham como ele na Sicília, quis-me
pendurar a eles, contar histórias como eles,
de aldeia em aldeia, mas não me deixaram,
todas as minhas histórias são histórias de amor –
ele apercebeu-se, tu não – o amor
entre um homem e uma mulher não lhes interessa.
Sicilianos! Proletaristas!* Sectários! Deixa-o
dormir, o meu amigo está cansado – digo a mim mesmo e sigo
para a coberta, mais tarde para a cabine de Claude,
Claude Raymond Dityvon, outro obscuro, sabes lá
quem é o Claude, fotógrafo da Viva, agência
de fotografia para a qual tudo é acontecimento,
um gato a passar entre casas numa aldeia,
o pavor de um emigrante, o isolamento duma quinta,
tudo, tudo, tudo o que é não-acontecimento é acontecimento,
tudo o que é não-irlandêz-cipriota-vietnamita é
tão dramático como a crise energética,
Claude não me abre a porta, revela, amplifica
a cabeça duma avestruz escondida na areia – fala-me através da porta
– nunca se revelou o que vê uma avestruz
no grão de areia em que escondeu
o seu olhar apavorado, ela vê ali os castelos
de Barnabé,
exactamente o mesmo que nós, os não-acontecimentalistas,
em cada demencial canto de rua mesmo à frente dos olhos,
dou mais alguns passos na coberta, uma onda leva-me
até à porta do sueco que ganhou o prémio Nobel,
poeta que começou como eu, o não-nobelizado,
o ignóbil, com Whitman, Maiakovski e Edgar Lee Masters.
Quero rojar-me aos pés de Edgar Lee –
não me abre a porta, dorme, bebeu como um sueco qualquer,
diz-me alumbrado pelo sono. Deixo-lhe por baixo da porta uma
mensagem que escrevi no bolso com a mão direita,
enquanto te acariciava com a esquerda – técnica importada
de um biógrafo de Tolstoi que desta maneira apanhou
o velho, escrevendo num cartão que tinha no bolso tudo
o que dizia o profeta –
escrevi ao sueco, sem que tu soubesses, “amigo, trata-se
do antigo lager nazi, transformado em museu,
com hotel, parque de estacionamento e bar –
por razões económicas tem de ser encerrada
a sala em que os carris dos vagões
para o transporte de cadáveres paravam mesmo
à frente dos fornos”. Foi isto que escrevi, enquanto te
acariciava.
Perdoa-me. Volto a ti de joelhos.

RADU COSASHU, 1973, Poveshti pentru a-mi îmblînzi iubita (Histórias para domesticar a minha amada)

* No original: Proletcultishtii, de proletcultísm (do russo proletkul’tovetz), corrente surgida com a revolução soviética, cujos princípios estéticos se reduzem à criação duma cultura do proletariado.

À esquerda, Dona Direita

A família de Domna P. comporta-se com ela um pouco à semelhança de como no antigamente se educavam as crianças: com modos bruscos e exaltados, procurando arrancar à força o que lhes resta da infância.
A doença de Domna Dreapta (Senhora Direita) é um mistério de regressão, com tanto de assustador como de fascinante: toneladas de memória cultural desaparecem progressivamente, abrindo caminho aos selvagens canais sensitivos que a educação durante anos drenara até à sua remoção (quase) completa.
Quando não está ausente, os olhos de Domna Di assemelham-se a um despertar: o reconhecimento de um pormenor é quanto basta para lhe aflorar um sorriso no rosto. Algo acabou de ser (re)descoberto.
Domna Direita vai à consulta e, a meio do exame, sorri para a “domna doctor” (és tu, não és?). O filho de Domna Dreapta recebe visitas em casa e ela sorri para uma das convidadas no jardim das traseiras, não porque reconhece a médica, mas porque usa um chapéu de pano branco semelhante ao seu.
Sempre que Domna Dreapta sai de casa, no rés-do-chão, irremediavelmente vira à direita, na direcção das escadarias do prédio. Então, a sua acompanhante, segura-a pelo braço e puxa-a na direcção contrária, onde fica a porta da rua: “La stînga” (à esquerda).
No Verão passado, Domna Dreapta acompanhou a nora à Gare de Nord (a estação de comboios de longo curso em Bucareste). Quando já se encontrava na fila para a bilheteira, ligou ao marido a propósito de horários. A meio da conversa sobre que bilhetes comprar ela disse: “A tua mãe desapareceu”.
O filho de Domna Dreapta partiu imediatamente para a estação, enquanto a mulher virou à direita e entrou no cais de embarque, onde se perfilam mais de uma dezena de linhas que partem em todas as direcções do país. Comboios a partirem e a chegarem, pessoas a entrarem e a saírem, ocorreu-lhe que se Domna Dreapta entrasse para uma das carruagens arriscava-se a nunca mais encontrá-la.
Correu para o gabinete de segurança e pediu para anunciarem o seu nome através do sistema de altifalantes. E se ela não se lembrasse do seu próprio nome? Pediram-lhe uma descrição física… usava um chapéu branco! Nesse instante, a porta do gabinete abriu-se e o vidro reflectiu um vulto a passar, de chapéu branco. A nora virou-se, mas já não viu ninguém através da janela que dava para a rua.
Domna Dreapta estava sentada no banco de trás de um carro particular, quando foi encontrada. O dono do carro, que tinha acabado de arrumar as malas na bagageira, estava tão confuso quanto ela, e não soube explicar como é que ela tinha ali aparecido. A única conclusão para esta história é que, por uma vez, Domna P. não virou à direita. Saiu pela esquerda e foi parar à rua.

Pseudopolaróides

O meu amigo Nuno escreveu: “Um senão: Seria interessante colocares uma fotografia ou outra.”
O meu amigo Jorge escreveu: Devias ir lá pondo umas imagens, um dia destes, quer-me parecer.”
Seguem-se algumas polaróides que tirei durante os cinco dias em que estive de férias em Portitza (Portinha), Grindul Cosha, uma linha de costa que fica entre o complexo de lagoas e lagunas do Delta do Danúbio e o Mar Negro:

Homem de bigode, óculos e chapéu, com a pila a espreitar sob a bainha da camisa. Nas mãos segura um livro. Os pés estão no mar.

Rapaz, perseguido por uma matilha de cães, salta da sua bicicleta (que abandona às bestas) e, no mesmo movimento, pula a cerca do restaurante.

Mulher nua fuma cigarro no mar com as mamas a boiarem à superfície da água.

Família joga às cartas na praia, debaixo de um toldo tapado por um mosquiteiro.

Pescador, num dos canais do lago Golovitza, usa rato do campo como isco. O rato sabe nadar e não mergulha.

Menina pendurada no ramo duma árvore, com a cabeça para baixo, conversa com amiga, de pé, no chão (o cone que tem na cabeça é um efeito do vento; é apenas um lenço).

Casal joga ténis em court sem rede protectora; o cão apanha as bolas.

Nuvem de mosquitos ao pôr-do-sol, em frente aos balneários Ignoramos se os veraneantes cobertos com toalhas de praia buscam refúgio nas retretes, ou pretendem tomar duche.

Garrafas de cerveja enterradas na areia, junto à linha de rebentação (visíveis pelas caricas).

Corvo-marinho (Phalacrocorax carbo) na praia, abre as suas imponentes asas negras na direcção do mar e vira a cabeça para o lado, oferecendo o perfil do seu bico à jovem fotógrafa que se encontra por trás.

Família arruma a bagagem no atrelado do tractor que os levará à praia, para montarem a tenda.

Nadador agita as mãos à superfície das águas turvas do Mar Negro, depois de ser surpreendido por uma medusa.

Os jovens empregados do (único) restaurante de Portitza riem-se de um casal de clientes, sentado debaixo de um salgueiro-chorão (que depois do fim de tarde começa a pingar dos seus ramos umas gordas gotas cor-de-sangue-seco).

Pescadores amanham o peixe, que apanharam de manhã, junto à linha de rebentação. Os buracos na areia (de onde sai o fumo, à frente das tendas) servem de braseiros para os grelhados.

Casal de nudistas na praia constrói esculturas de calhaus empilhados. Na posição de cócoras, a genitália de ambos os sexos, quando o sol aquece e os músculos descontraem, tem o charme de tudo quanto vive pendurado (abana, mas não cai), por oposição à fileira de calhaus empilhados, num equilíbrio provisório (tem-te-não-caias), até à próxima rabanada de vento.

Homem toma duche na praia, junto à sua tenda, ao anoitecer. No saco preto pendurado por cima dele, de onde escorre a água, pode ler-se “solar system shower”. O dispositivo consiste em encher pela manhã o saco de água, que aquece depois durante as horas de sol.

Coro de mulheres Lipovani (descendentes duma seita da velha ortodoxia russa que no séc. XVIII se instalou no Delta do Danúbio) dança na praia de Portitza em frente a uma fogueira. O espectáculo tem o seu quê de disputa: metade do público rodeia as mulheres Lipovani; a outra metade circunda a fogueira; os poucos que se posicionaram ao meio, aproveitam para aquecer os traseiros (estava uma noite fria). Por trás, às escuras, as ondas são ignoradas.

Pormenor do areal da praia de Portitza, que consiste maioritariamente em conchas, búzios e caracóis-do-mar, ainda num estado primário de decomposição.

Pôr-do-sol no lago Golovitza, sobre uma cortina cinzenta que paira nos montes de Dobrogea; a pseudopolaróide ao lado serve de díptico, e alcança na direcção do lago Razim: uma linha de luz, tão vermelha como a do sol, atravessa uma colina, sob uma nuvem de fumo.

Três veraneantes, numa gaivota a pedais, pescam num canal. A curiosidade reside no facto das canas de pesca apontarem na direcção do canavial. As margens do canal estão cobertas de pequenos nenúfares em flor. Camuflados entre as folhas, os sapos assistem, em sorrateiro silêncio.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Chamas

6 de Agosto. Ser surpreendido por um instante de beleza tem o efeito duma agulha espetada entre duas vértebras: antes de sentir a dor, temos um calafrio; antes do calafrio, fica-se imobilizado.
Um grupo de bombeiros sorridentes, devidamente equipados e encapacetados, posa para o retrato. Dez estão de cócoras, em duas filas de seis e quatro. Os restantes nove, numa terceira fila, estão de pé (as mãos nos ombros dos colegas denotam um fraternal espírito de equipa). Por trás, um alpendre emoldura o quadro humano. Árvores desfolhadas e arbustos frondosos contornam a casa. O telhado está em chamas.
Mostro à Mihaela a fotografia, que descobri no blogue Coisas do Arco da Velha. Ela responde-me com um ditado romeno: “,tara arde, babele se piaptana” (o país arde, as avozinhas penteiam-se).

Tremor

5 de Agosto. Estava deitado no sofá, a cozer a ressaca causada pelos três vinhos diferentes da noite anterior. Às 10:49 uma tontura, acompanhada de náusea, fez-me pensar que ainda estava embriagado. Sucedeu-se uma brisa de calor vinda da porta da varanda e um balouçar do sofá, a 5,5º na escala de Richter.
9:30 foi a hora a que começou o terramoto de 4 de Março de 1977, em Bucareste. Domna V., correu pelo apartamento à procura do seu gato e desceu as escadas. Quando chegou à rua e o edifício começou a desmoronar-se, lembrou-se do bebé, que ficara no berço, a dormir.
Em 2007, após trinta anos de recolhimento no bairro para onde se mudou após o desastre, Domna V. atravessou Bucareste para ir a uma consulta. À excepção de alguns edifícios desconjuntados, não reconheceu a cidade. Envelhecidos e maltratados, haviam sobrevivido a três décadas de transformação urbana e tremores menores (um pouco à semelhança dos livros empilhados no chão. Sem lugar nas prateleiras, lá se vão aguentando tem-te-não-caias, aos tropeções de quem passa distraído).
Pergunto a Mihaela, qual era a profissão de Domna V. “Professora de literatura romena.” E a do marido? “Trabalha na construção civil.”