Numa entrevista em que recorda um encontro que teve com Jimi Hendrix dois anos antes dele morrer, Joni Mitchell diz que a “primeira mudança” é o momento mais difícil na carreira de um músico.
Durante a conversa que tiveram num hotel em Otawa, Jimi Hendrix comentou com ela que gostava de se concentrar na composição e fazer outras coisas, como tocar com uma orquestra, mas sempre que em público abandonava o espalhafato do seu virtuosismo à guitarra, era apupado pelo público, que o acusava de não estar a ser ele próprio.
Marca, estilo, identidade, são atributos que às vezes pertencem mais ao público do que a um músico. Nos casos de popularidade, o reconhecimento acaba por se revelar uma servidão e são poucos os que arriscam explorar a sua criatividade, conformando-se com a fórmula autorizada pelos seus seguidores. Sempre que um músico é fiel à sua curiosidade, e se interna por uma área estranha àquela em que conquistou o seu reconhecimento, arrisca-se a trair os seus admiradores e a enfrentar o mesmo isolamento daqueles que nunca conseguiram sair do anonimato.
A primeira vez que vi tocar Bruno Pernadas (com o quinteto de jazz When We Left Paris), no café Tati, uma pequena sala junto ao mercado lisboeta da Ribeira, tudo me impressionou nele: o virtuosismo; o elaboradíssimo sentido melódico e rítmico; o ouvido impecável, a forma como deixava a música respirar, como ouvia os colegas, os pequenos comentários contrapontísticos e corais; as transições preparando mudanças surpreendentes; o sentido de tempo, a forma como parava e deixava a música discorrer, ou como retomava o tema com uma nova proposta; a procura dentro dos temas, sem nunca abandonar a homogeneidade das canções. Era incrível como a densidade da música, o espaço para a individualidade de cada um dos instrumentistas nunca estorvava a clareza, o contraste, o cromatismo, as nuances e toda uma diversidade temperada de soluções.
Tão boas me pareceram todas as músicas, em cuja escolha adivinhei uma erudição professoral, julguei tratarem-se de covers de temas menos conhecidos, mas não menos brilhantes, dos grandes compositores de standards. No final do concerto, ainda sob o efeito do êxtase, perguntei-lhe de quem eram os temas. Quando Pernadas me respondeu que eram todos dele excepto um, a cabeça quase me saltou do pescoço. Nada é tão chocante como descobrir que o motivo do nosso espanto está plantado à nossa frente.
As suas composições conseguiam integrar, com uma maestria alquímica, três dos aspectos criativos mais difíceis de conciliar: originalidade, perspectiva histórica (ou erudição, se preferirem, que é a capacidade de brincar com partículas de outros temas ou dialogar com a música dos outros sem se deixar conotar) e uma elegância de processos sempre repleta de motivos surpreendentes.
How can we be joyful in a world full of knowledge, o disco, não tem nada a ver com a música que escutei no Café Tati (ou até com outro projecto musical seu, Julie & The Carjackers) e tem tudo a ver com o mesmo pensamento musical. Se existe alguma marca, ou estilo, ou identidade na música de Bruno Pernadas, não se encontra na sonoridade, mas na forma como ele concebe estruturalmente as suas canções (chamo-lhes intencionalmente canções, apesar da sua vocação instrumental.
A sua Stratocaster aparece logo na primeira faixa, Ahhhhh (no único solo de guitarra de longa duração do disco; os outros solos longos são de órgão farfisa em How Would It Be 1, e de vibrafone em Guitarras). As guitarras são a pedra de toque de uma aventura musical que faz pensar nas fantasias de Júlio Verne, nas colagens de gravuras de Max Ernst, pela forma exuberante como elementos familiares são integrados em contextos imprevistos. O disco corresponde a uma viagem ao centro do ouvido, e as guitarras são o seu corpo expedicionário. E no entanto, o virtuosismo não se destaca na execução. Bruno Pernadas toca como um guitarrista, mas pensa como um compositor e executa como um arranjador. A exuberância não está no excesso ou na improvisação, nem tão pouco na sobreposição de fontes sonoras, mas na articulação de registos.
Usando instrumentos ou sintetizadores, tocando-os como teclados ou como fábricas de texturas, a execução pode ser impecável, mas não é preponderante – o que lhe importa parece mesmo ser a arte combinatória, o cromatismo melódico e harmónico, a plasticidade das fontes sonoras, o movimento. Numa palavra: a composição. As guitarras não são sequer a sua paleta mais exuberante, são digamos que uma das suas maneiras de dar pinceladas. As próprias vozes fazem parte deste sentido combinatório, já que Pernadas tanto faz coros com vozes a cantar uma canção, como com vozes sintetizadas ou retiradas de filmes.
Um dos aspectos mais aborrecidos da crítica musical passa por descrever a música de acordo com os géneros musicais nela identificados (e de facto muita da música que se pratica raramente foge aos seus convencionalismos e lugares comuns); no meu caso pessoal, mesmo quando gosto de algo, não consigo deixar de ouvir ressonâncias de outros artistas ou discos. Esta predisposição para fazer associações é bem irritante: é como se a música aos meus ouvidos mais não fosse do que um puzzle feito com peças de outros puzzles em que estou sempre a reconhecer o que já ouvi no passado e a surpresa está contida nas associações imprevistas e no tratamento do som.
Nas primeiras audições de How to be joyful, devo confessar que me ocorreram imediatamente três nomes: Brian Wilson, Robert Wyatt e Van Dyke Parks (podia acrescentar Shuggie Ottis, mas estaria a fazer batota – foi o próprio Pernadas que me convenceu a escutar este extraordinário guitarrista dos anos 70, a influência mais secreta de Prince). A afinidade que Bruno Pernadas tem com eles joga-se numa alucinada perspectiva erudita sobre o formato da canção pop.
Brian Wilson cunhou o termo “sinfonia de bolso” quando gravou Good Vibrations. No caso das canções de How to be joyful, são como peças de joalharia em miniatura, bolsas de melodias a ramificarem da canção-matriz. No seu interior reconhecemos o gosto pela exotica (esse subgénero das orquestras de easy listening, e que nos anos 90 foi retomado por uma nova geração de músicos que faziam discos como quem compunha bandas sonoras para filmes imaginários), mas também pelas estruturas complexas (que definiram o trabalho de Holger Czukay, Robert Fripp, Faust e toda a geração de Canterbury).
Aquilo a que chamo estruturas complexas passa pela forma como Pernadas se diverte a saltitar, num jogo de toca-e-foge, entre géneros e estilos musicais, sem nunca se deter neles. A sua técnica de composição faz pensar na “arquitectura modular”, pela forma como as suas diversas secções se autonomizam e, ao mesmo tempo, se integram umas nas outras com efeitos distintos. O formato de canção em Bruno Pernadas contem uma filigrana de microestruturas, em que a simplicidade aparente das melodias e dos ritmos não inibe um incessante curso de fluxos e refluxos.
Camadas e sobrecamadas de sons dão continuidade ao tema, outras pontuam-no, outras desviam-se para descobrir novos caminhos, outras ainda retomam o tema, desviam-se outra vez, e elementos pontuais vêm relembrar o tema deixado para trás, num movimento incessante que parece dançar uma coreografia de atracções, desvios, fugas e descobertas. A música busca a sua felicidade, sabendo que encontrá-la é nunca se fechar em círculos, para poder continuar a procurá-la noutras latitudes, num processo infindável em que a curiosidade é a própria natureza da felicidade.
Há um mundo de sons encantatórios, não sabemos se efabulados, se à deriva na memória de quem os toca, que são visitados em How can we be joyful. Nesta viagem musical tudo está de passagem, tudo é provisório. O título do disco é muito bonito porque a música, numa expedição em que prazer e aventura são sinónimos, procura mesmo responder à pergunta nele contida. A felicidade não é o conhecimento contido no mundo, mas todos os pequenos mundos que se vão descobrindo e interligando no acesso ao conhecimento.
Ventos da Penha, Dezembro, 2013
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