quinta-feira, 22 de setembro de 2016

BRUNO PERNADAS Those who throw objects at the crocodiles will be asked to retrieve them + Worst summer ever

Bruno Pernadas apareceu em apoteose com “How can we be joyful in a world full of knowledge” (2014). Dois anos depois regressa com dois álbuns ainda mais poderosos. São duas elegias da felicidade.



1.     “Those who throw objects at the crocodiles will be asked to retrieve them”

“Those who throw objects at the crocodiles will be asked to retrieve them” é um disco feliz. Não sei se é um disco sobre a felicidade, mas a felicidade transparece em todos os seus poros (aceitemos que a música também tem pele: respira e transpira). É um disco feliz porque reflecte a felicidade de quem o fez.

Não posso afirmar que o Bruno Pernadas é mais feliz do que qualquer outra pessoa, mas a sua música parece abençoada por essa felicidade que começa nas ideias, passa pelo modo de quem as executa e chega intacta a nós, os ouvintes, que logo notamos a diferença entre uma coisa e outra, e acabamos o disco tão felizes como feliz é o disco.
Na realidade não terminamos completamente felizes. Quando o disco acaba, termina a felicidade de escutá-lo. Pior ainda: o disco termina com um tema que se despede da felicidade. São duas infelicidades: o disco acaba, e o último tema diz-nos que a felicidade também acabou.

Esse último tema chama-se “Lachrymose” e é tão belo e é tão triste como as mais belas histórias de amor que um dia terminam. Nem o Pernadas nem ninguém sabe o que é a felicidade até a felicidade terminar. A felicidade precisa de acabar para podermos dizer: “fui feliz”. Só que ao dizê-lo a felicidade já foi, e o que resta é um disco.  Pormenor desportivo: “Lachrymose” é o único tema do disco que foi gravado integralmente por Pernadas em sua casa, enquanto decorria o Portugal-País de Gales para as meias-finais do Euro 2016. “O reverb que se ouve é o som da minha sala”, explica Pernadas: “É uma possível conversa entre duas pessoas, sendo que às vezes a pessoa A está a dizer o que a pessoa B está a pensar. Acaba por ser uma conversa que termina uma outra conversa que nunca aconteceu.”

“Those who throw objects at the crocodiles...” é um disco feliz, dizíamos. A maneira mais rápida de nos apercebermos de como este disco é um disco doloroso, é escutá-lo até ao fim, e depois escutá-lo logo a seguir desde o início, sabendo que muito do que originou e tornou possível este disco é a tal história de felicidade que chegou ao fim. Reparem no tema instrumental que tem o expressivo título “Because it’s hard to develop that capacity on your own.” Reparem ainda como a sequência de colagens em “Ya ya breathe” gera um efeito de vertigem, até regredir a um tempo mítico. É quando escutamos os seguintes versos: “What am I doing here, said the young man to the sacred bull, I travelled so far to get here, and yet I still don’t know why I must have done something wrong in the pathway,That’s not the face I was hopping to see, that’s not it, That’s not my loved one.”
O título do álbum é inspirado numa relação tripla com: 1. o documentário “The man who swims with crocodiles”, sobre um costa-riquenho que desenvolveu uma estranha relação de amizade com um crocodilo; 2. uma placa informativa num parque da Florida; 3. a devoção que os antigos egípcios tinham aos crocodilos, a ponto de lhes reconhecerem poderes divinos. Resumindo tudo num aforismo moral: “Those who throw objects at the crocodiles will be asked to retrieve them” é sobre o acto de ter de ir buscar de volta aquilo que ninguém nos pediu para dar.

Sabemos que estamos a ouvir um grande disco de duas maneiras. A maneira mais fácil é andar a ouvir esse disco há vinte, trinta, quarenta anos (se a companhia dura há tanto tempo, é porque é mesmo bom). A outra maneira é ouvir um disco e logo à primeira não conseguir imaginar o futuro da música depois dele. Como se o disco fosse tão bom a ponto de não acreditarmos que seja possível fazer melhor.

No caso deste “Crocodiles”, há uma alegria suplementar. A sua música é-nos familiar, mas de uma maneira estranha, já que nada chega a tornar-se verdadeiramente reconhecível. É como se Pernadas pilotasse um dirigível sonoro a uma altura e a uma velocidade em que reconhecemos algo, sem saber o quê. O que nós escutamos não é a música que o influenciou: o que nós escutamos é a própria viagem de escuta. Daí haver tantos movimentos, tantas dinâmicas, tantas mudanças. É uma música em jeito de bailado a atravessar a música.

Se observarmos cada um dos seus temas em forma de gráfico, torna-se notória a sua elaboração, estruturada por movimentos, com motivos, arranjos e efeitos de pormenor que tanto podem estar compartimentados num desses movimentos, como atravessar a totalidade do tema, ou apenas pontuá-lo. Há sempre qualquer coisa de rigorosamente metódico, na articulação das suas melodias, dos seus ritmos obsessivos, das suas magníficas harmonias. Nas suas transições lentas e rápidas. Mas se nos concentrarmos em cada segmento, isolado da sequência completa, estamos de regresso à simplicidade elementar das canções da nossa infância – é nesse tempo, em que a realidade se confunde com a magia, em que os factos fazem companhia à imaginação fantasiosa, que geramos a matriz de felicidade que só o final do disco revelará totalmente.

Há músicos, como Brian Wilson, ou Thelonious Monk, que fazem depender a sua escrita musical de uma regressão à infância. No caso de Pernadas, julgo que isso acontece pelo facto de ele dar aulas de música a crianças. Lembro-me de uma história, por ele contada, sobre uma aluna de oito anos que se queixava do seu violino ser muito pequeno e por isso ter poucas notas. O equivalente em Pernadas é nunca ter meios suficientes para ter o número de músicos que gostava para os seus arranjos orquestrais – mas mesmo quando o número não está lá, conseguimos mesmo assim alcançar a sua vocação orquestral.

É inútil comparar a música de Pernadas a outros músicos e estilos. Avancemos só um pouco na tentativa de comparação para mostrar até que ponto o exercício é estéril. Tomemos de exemplo o tema “Spaceway”. A ideia desse tema surge de uma cena do filme “Bullit”, com Steve McQueen. Cito o Pernadas: “Uma banda de jazz está a tocar uma cena tipo valsa, num restaurante, com a flauta como lead. Quando vi o filme adorei a música. Se calhar foi por isso que acabei por usar flauta.” Pernadas não se preocupou em saber quem compôs esse tema, mas preocupamo-nos nós: chama-se “Cantata for combo” e é do compositor argentino Lalo Schifrin. A relação entre o tema de Pernadas e o de Schifrin é no entanto meramente tangencial. Poderíamos acrescentar que o tempo de valsa, no tema de Pernadas, tem muito mais a ver com a abordagem modal de Coltrane em “My favourite things” e mesmo assim não estaríamos perto de acertar – é só outra tangente.

“Galaxy” e “Ya ya breathe”, dois temas longos, são ainda mais escorregadios nessa impossibilidade de se deixarem apanhar em antecedentes ou influências. “Galaxy” soa a disco de rock progressivo da escola de Canterbury, mas executado por uma orquestra dos tempos das Big Bands; “Ya Ya breathe” começa por apontar aos anos 90, a discos como “Moon safari” dos Air ou “California” de Mr. Bungle, mais a nostalgia pela sonoridade dos anos 70, ou pelos sons exóticos de Les Baxter nos anos 50, para depois incluir um daqueles solos de guitarra ao melhor estilo de Prince.

A música atravessa dimensões temporais e estéticas, é certo, abre-se a portais, avança por caminhos esconsos e estradas secundárias e tudo o que pretende é não estacionar, é continuar a sua digressão, de quem brinca ao toca-e-foge. O acto de citar, ou de dialogar com determinada escola ou obra, nunca chega verdadeiramente a dar-se.

2.     “Worst summer ever”

Em “Worst summer ever”, para além de Pernadas na guitarra, participam sete músicos de jazz (com quem vem tocando desde os anos de estudante na Escola Superior de Música de Lisboa, assim como na Escola do Hot). Comparado com “Crocodiles” ou “How can we be joyful...”, este disco funciona numa realidade paralela do trabalho de Pernadas. É óbvio que, ao escutar esses dois discos, reconhecemos a formação jazzística de Pernadas. Mas também é óbvio que há muita coisa em “Worst summer ever” muito ao gosto do pop-rock.

Em “Crocodiles” (como já em “How can we be joyful...”) os músicos estão ao serviço de uma concepção que começa e termina na cabeça de Pernadas. Todo o processo é a exteriorização de um trabalho essencialmente mental. Trata-se de uma digressão interior pela música, um pouco à semelhança das trips psicadélicas.  “Worst summer ever”, opostamente, resulta do encontro com um grupo de músicos. A gravação fixa o resultado desse encontro. É, genuinamente, um trabalho de grupo, a partir dos temas por ele compostos.

Mantendo a comparação com “Crocodiles”, o disco de jazz tem um som mais cru. “Queria que os instrumentos não soassem longe uns dos outros. Que se percebesse tudo o que está a acontecer, e que tivesse força como um disco de rock. Queria que o disco não tivesse muito som de sala, que fosse mais face-to-face”, explica Pernadas.
Salvo efeitos pontuais ou muito subtis com pedais e samples, “Worst summer ever” é um disco essencialmente acústico, mas com um som pesado, tendo em conta os parâmetros habituais no jazz. Se imaginarmos o intervalo que separou a produção musical do post-bop (ainda com instrumentos acústicos), e a sua transição para o jazz-rock (com sintetizadores e instrumentos eléctricos), “Worst summer ever” cria um tempo alternativo entre estas duas fases.

Onde os dois novos discos de Pernadas partilham a mesma coerência é no espírito de época que os inspira: ambos parecem ter sido gravados a pensar nesse período entre os anos 60 e 70, quando o trabalho de estúdio atingiu esse ponto de equilíbrio entre a captação de sons reais e a produção de sons sintéticos, entre a pureza da execução e o seu posterior tratamento.

Na música de Pernadas a escrita é determinante. O tema não é um mero ponto de partida para a improvisação, é já um território claramente delimitado. Cada um dos sete temas do álbum define tanto o território como as suas fronteiras. Não são tanto os músicos a revelarem os temas, são antes os temas que revelam os músicos (não é impunemente que Pernadas escolheu para gravar consigo músicos que conhece de há longa data). O jazz gosta muito de celebrar a sua liberdade, mas verdade é que vem sendo raro, mesmo entre os bons discos, haver um “songbook” de inéditos com uma identidade tão enxuta e segura de si como “Worst summer ever”.

O disco abre com “love vs love”, em quinteto, e parece avançar arrastando-se. É uma melodia cansada, que se repete com insistência, até João Mortágua, no sax alto, lhe descascar o alcance: a exaustão é apenas a aparência de um tema sobre o conflito.

“Granado wire”, em quarteto, mantém a mesma dupla Francisco Brito e David Pires na secção rítmica (agora sem o piano de Sérgio Rodrigues). Pernadas e Mortágua partilham os solos, com Pernadas a juntar-se à secção rítmica nos solos de saxofone. O tema parece que vai terminar em fade e depois ressurge com uma malha de guitarra que serve de base para o solo final de David Pires na bateria.

“September 4th”, em quinteto, apresenta uma nova secção rítmica: Pedro Pinto (contrabaixo) e Joel Silva (bateria), mais Pernadas. Solistas: Sérgio Rodrigues (piano) e Desidério Lázaro (sax tenor). À semelhança do tema anterior, o tema divide-se em dois, como que aludindo a uma cena de terror: a primeira parte monta o suspense, repleto de detalhes e nuances; segue-se o efeito de martelo no desenlace da segunda parte, com Lázaro num solo mais físico, de rajada.

“This is not a folk song” é daqueles slows que parecem muito antigos. À semelhança de “Lachrymose”, nele se revela aquilo a que se pode chamar o efeito déjà vu de Pernadas: é quando julgamos reconhecer algo que nunca escutámos antes. David Pires na bateria é, digamos assim, o ouvido do tema: acompanha Pernadas, serve-lhe de contratempo, sola no refrão, e interrompe-se ou reduz-se ao murmúrio.

O tema seguinte é uma valsa lenta, ainda em trio, em que é usado um sample contínuo. “Worst summer ever” e “Before it gets too late”, em formação de sexteto, fecham o disco, com Mortágua e Lázaro juntos nos sopros. São talvez os temas em que mais desconfio da influência, tão invocada por Pernadas, que Rui Cardoso teve na sua música (para além de ter sido seu professor, Rui Cardoso tocou num dos grupos favoritos de Pernadas, os Salada de Frutas).

“Worst summer ever” alude a um mau ano, em que parte substancial do material do disco foi escrito. Mas segundo Pernadas, o Verão de 2016 foi ainda pior para ele. Para nós, público, o Verão de 2016 ficará registado como o Verão das grandes felicidades colectivas: a vitória no Euro 2016, e o triunfo musical de, numa só pernada, surgirem dois incríveis discos do maior talento musical português da sua geração. Tão cedo não voltaremos a escutar em disco tanta felicidade.


Ventos da Penha, 6 Setembro 2016

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