Sete anos depois de se estrear
com “Caderno de memórias coloniais”, um livro em que infância, poder, desejo e
violência se conjugam em pequenos episódios, Isabela Figueiredo publica aos 53
anos o seu primeiro romance. A protagonista de A Gorda fala na primeira pessoa
e tem um nome: chama-se Maria Luísa. É uma personagem tão genuína, tão inteira
que não duvidamos tratar-se de uma pessoa. A forma como ela se expõe é como um
pneu a deformar a cintura literária. É alguém que aparece, e que nos diz coisas
tão cândidas e desarmantes como: “digo a verdade por me custar desperdiçar a
sua extrema pureza.”
Estava um lindo sol de Inverno
quando Isabela Figueiredo apareceu em Cacilhas, no largo em frente ao
embarcadouro. Vinha com o rosto pintalgado, marcas de uma operação para tirar
os sinais da acara. Não quer ser entrevistada no exterior, a luz fere-lhe a vista.
Avançamos por uma rua onde abundam esplanadas. Da Cacilhas operária restam as
fachadas: mantém-se o pequeno comércio, mas de cara lavada e ao gosto
turístico. Fazemos várias tentativas, mas somos barrados à entrada: esta
estalagem é só para hóspedes, este bar de petiscos está ainda limpezas, só abre
ao fim da tarde. Pedimos licença para entrar num café e Isabela, depois de
sentar-se, troca de lugar: a luz vinda da porta continua a feri-la.
Isabel Figueiredo: “Perdi a visão
central num olho. Tenho alguma visão periférica, mas se fechar este olho não te
vejo, contudo consigo ver algumas coisas que estão à roda de ti. Se focar
aquele balcão, eu não vejo aquele balcão, contudo eu consigo ver as luzes em
cima. Tenho uma degenerescência macular causada por descolamento de retina.
Tudo aquilo que quero ver não vejo, só vejo aquilo que não quero ver. Só vejo o
que é periférico.”
Os problemas de vista, assim como
a luz e os seus efeitos em objectos e superfícies, é um motivo recorrente em A
Gorda. Diz Isabel Figueiredo: “Eu descrevi uma luz que tenho na memória. Agora
não a suporto a luz, tenho de fugir dela.” Quando a protagonista apresenta a
casa que herdou dos pais, somos logo avisados do hall “sem claridade” e dos
restantes compartimentos onde recebe “chapadas de luz impiedosa, quer na
frente, virada a poente, quer nas traseiras, para nascente. A luz dói nos
olhos. Custa-me suportá-la, mas amorna o espaço e alegra os dias.” Já perto do
fim, na iminência de rever o seu primeiro namorado, outro aviso: “Ele não sabe
que os meus olhos já não leem letras de jornal em papel.”
O enredo amoroso que atravessa o
livro é uma paixão de juventude em que Maria Luísa é sujeita a um surtido de
humilhações e vilanias a que só o sexo escapa. Desde ter de se esconder dos
seus amigos e familiares, para não o envergonhar com a sua gordura, até se
tornar seu amante, quando já está casado e com filhos, até espiar-lhe a rotina
doméstica, enquanto fantasia aquela vida para si. E no entanto, um carteiro,
tão parecido com o Jude Law a ponto de só poder ser o Jude Law, haverá de
aparecer com uma carta para que a felicidade ainda seja possível com aquele
mesmo rapaz da Arrentela, de seu nome David, que a trocou por uma colega de
escola e que entretanto ficou careca. Como é possível a felicidade depois de
tanta baixeza? Isabela Figueiredo: “Ela tem muitas contradições e a parte
onírica é muito importante, ajuda-a a viver no meio daqueles fracassos. Eu
devia à Maria Luísa a hipótese de um final feliz. Devia deixá-la pensar isso.
Ela tem consciência de que é uma sonhadora. Deixemos a Maria Luísa acreditar
que o David Luís vai voltar, isso ajuda-a.”
A Gorda fala menos de comer do
que de ter fome. Aquilo de que mais se alimenta nem é de comida, é do passado.
O passado está vivo e nem é passado, regurgita e volta ao presente. A vida continua, certamente, mas com as vozes
dos mortos a deambularem pela casa, ou a entrarem por ela adentro e a
intrometerem-se no quotidiano. Depois da morte da sua mãe, Maria Luísa está
debruçada no balcão da cozinha, a comer melão, e ouve uma voz que a chama. É a
voz de uma mãe na rua, a chamar pela filha. Não é a sua mãe, mas vai à janela
na mesma: “Havia um ‘eu e tu, coisa única, amarga e doce, do princípio ao final
dos tempos, vem’, por isso vou, mesmo sabendo que não é para mim.” Não é a
única voz que escuta: “Quando o papá morreu dei em falar com ele estando
sozinha, e havia necessidade de compreender que tipo de loucura era essa.”
Sentada à mesa do café, Isabela
Figueiredo diz: “A minha mãe era mais sensata, era a pessoa que estruturava
aquela casa, mas era do meu pai de quem eu gostava. Ele era o meu melhor amigo
de brincadeiras.” O dilema com os mortos está de regresso à vida.
Li as 285 páginas de A Gorda sem
interrupções, com a sensação de não ter feito mais nada depois de começar. Roubou-me
horas de sono e também não me permitiu estar desperto para outra vida que não a
vida de Maria Luísa num jogo de transparências com a vida de Isabela Figueiredo.
Mesmo nos momentos em que se interrompe a leitura, fica-se a reler mentalmente
o que já foi lido enquanto se antecipa o regresso ao livro. Não por ser um
livro, mas por no livro estar a Maria Luísa e com ela a sua autora, as duas
numa só. Lê-se A Gorda como os gordos comem, sofregamente, sem pensar no dia de
amanhã. Ou como um febrão em que toda a sordidez e delicadeza da vida íntima é suada.
Ou ainda como uma porta a ser arrombada. “Quero pegar na nossa baixeza e
torná-la em algo sublime. É sublime a nossa baixeza. Mas também os nossos
momentos sublimes às vezes não valem nada, são absolutamente ridículos, então
também quero pegar nisso e meter no seu devido lugar.”
A Gorda é um romance gordo, cheio
de banhas, de dobras, de corpos dentro de outros corpos a alimentarem-se de
outros corpos. Há episódios que surgem como homúnculos. É disso exemplo a
paixão de Maria Luísa por João Mário, um aventureiro que abandona o país
deixando um endereço de Sines, para onde ela lhe envia cartas todas as semanas,
construindo uma relação de remetente sem destinatário. Outro exemplo: o
biscateiro Lunático, um meia-leca feioso e pobretana, um faz-tudo muito ágil
com as mãozinhas, que providencia o primeiro orgasmo a Maria Luísa no sofá da
sala da tia, durante a transmissão de um episódio da série juvenil Fama. Mais
outro exemplo ainda: a colega Tony, uma mitómana angolana a quem Maria Luísa se
devota como uma escrava, lavando-lhe a roupa, massajando-lhe o corpo, num jogo
de submissão cujo fim último é apoderar-se do desejo que o corpo da amiga
inspira, desejo a que o seu próprio corpo não pode aspirar.
A Gorda abre com a frase:
“Quarenta quilos é muito peso.” Com a gastrectomia, quarenta quilos são
eliminados, mas ser gordo é também ter memória de ser gordo. É um traço de
identidade. Maria Luísa começa “a ficar leve, quase a levantar voo”, mas ainda pensa
como gorda: “Sei que o mundo das pessoas normais não é para mim. Continuo a ter
o defeito, mas não se vê tanto; tornou-se menos grave. Há momentos em que me
parece ter ganhado uma nova vida, como os que passaram por experiências de
quase morte, viram o túnel para o outro lado, com a atraente luz branca no
final, chamando-os, mas escolheram voltar. Eu também tenho escolhido, e mesmo
que já ninguém me exclua, excluo-me eu, à partida. Conheço muito bem os meus
limites.”
A gorda entra no elevador,
mira-se ao mesmo espelho onde já teve vergonha de ver-se refletida e agora
usufrui da sua “beleza madura”: “Por vezes considero que perdi muito tempo, no
passado, desgostando de mim, mas reformulo a ideia concluindo que o tempo
perdido é tão verdadeiramente vivido na perdição como o que se pensa ter ganho
na possessão. E volta o sossego.”
A Gorda é sobre a experiência de
ser gorda e é também sobre deixar de ser gorda. É sobre aquilo que se tem e
aquilo que se perde. É sobre aquilo que se quer ter e, não podendo, encontrar
um substituto. E depois também o substituto tem de se perder. Na segunda metade
do livro, Maria Luísa relata uma doença misteriosa, de uma “qualquer morte” que
dura uma semana, e da qual regressa “esfomeada, sedenta, descomposta.” Depois
disso, vai parar a Alcobaça “no tempo dos marmelos”.
A roupa que trouxe de Moçambique
deixa de lhe servir e não há outra; as mamas não cabem no sutiã e não há
dinheiro para comprar um sutiã novo; as cuecas apertam as virilhas e deixam
marcas roxas na pele. Enquanto isso, come marmelada, com ou sem pão, de
preferência às escondidas: “Poderia dormir num colchão de marmelada, enfiar-me
num poço dela até a vida melhorar e valer a pena acordarem-me da fome
insaciável.”
Isabela Figueiredo: “Eu comia
para além da fome. Havia uma necessidade muito grande de encher o estômago. A
comida sossegava-me. O meu corpo não precisava de comida, mas eu precisava de
comer. O nosso corpo tem uma linguagem e pede-nos coisas. Se calhar era esse o
meu remédio. Era uma fuga, um alívio. Uma forma de me encher das coisas que não
tinha. A minha adolescência não foi nada fácil. Foi um grande desenraizamento.
Vim para Portugal antes de fazer 13 anos. Quando cheguei tinha familiares a
receberem-me no aeroporto. Nunca os tinha visto e fui para casa deles. Pelo
facto de serem nossos familiares não são necessariamente nossos aliados, nossos
amigos, nossos protetores.”
Maria Luísa, tal como Isabela
Figueiredo, nasceu e passou a infância em Moçambique. Tal como a sua autora,
veio para Portugal viver com familiares que desconhecia depois da
independência. Tal como Isabel Figueiredo, frequentou um colégio interno, em
Tomar, viveu na casa de familiares nas Caldas, em Alcobaça e no Feijó e
finalmente fixou-se com os pais na Cova da Piedade, em Almada, quando era já
uma adolescente com vida de adulta. Os pais enviaram-na para Portugal quando
era demasiado cedo e voltaram para ela quando era demasiado tarde.
“Eu não tinha opinião a dar sobre
a minha vida”, diz Isabela Figueiredo: “Eram eles que decidiam. Optaram pela
minha segurança e pela minha formação académica. Eu compreendi a decisão deles
e aceitei, até porque sempre houve em mim um grande desejo de independência e
de solidão. Quando eles voltaram eu também não os queria. Houve um grande
afastamento. Ela cresceu muito. Tornou-se uma mulher. Aprendeu a viver
sozinha.”
A Gorda está organizado em oito
capítulos e cada capítulo corresponde a uma divisão da casa que partilhou com
os pais na Cova da Piedade. Usar as divisões da casa como ponto de partida,
permite-lhe estruturar a narrativa em espirais, serpenteando no espaço e no tempo,
em ciclos de ida e volta à adolescência, à vida adulta, à velhice dos pais e
depois da sua morte. A sinalização cronológica é feita através do recurso ao
contexto histórico: a mãe de Maria Luísa morre depois da renúncia de Bento XVI;
a sua vinda para Portugal, sem os pais, acontece com a independência de
Moçambique; o pai morre “no ano da queda” das Torres Gémeas
Há uma passagem em que Maria
Luísa se dedica a copiar as rezas da mãe. Apesar de duvidar do seu poder, teme
que as suas correções “possam alterar a fórmula sagrada”. É demasiado cética
para a fé, e no entanto sujeita-se aos seus estratagemas, criando a sua própria
oração: “creio em silêncio. Em tudo. Em Deus Pai Todo Poderoso e no seu único
Filho, na Virgem Maria, nos anjos e santos, na remissão dos pecados e na Vida
Eterna; nos ninhos de andorinhas repovoados na primavera, na desova dos peixes
que galgam o rio, no canto incógnito das baleias, na cópula cega dos cães
vadios. E também na flor hipnótica das acácias, no pólen das margaridas, no
odor vespertino do alecrim e do rosmaninho; no negrume bravio dos arbustos e
dos pinheiros cerrados, onde se acoitam os antigos espíritos errantes; nos
cinco pontos cardeais, nos cinco elementos terrenos, na inumerável clarividência
divina da Física e da Química e dos ansiolíticos. E acima da mentira mundana, e
da malevolência gratuita, creio no amor.”
Antes do amor, falemos de
ansiolíticos. Quando é abandonada por David, o seu primeiro namorado, Maria
Luísa é proibida pelo médico de sair à rua, por não conseguir distinguir a cor
dos semáforos: “O doutor pode escrever-me num papel quando é que se avança e
quando é que se para?” Os próximos dez anos são despachados em duas páginas
sonâmbulas e telegráficas: “O médico olhou para mim, medicou-me e entrei num
limbo de onde demorei a sair. Voltei a sentir-me relativamente acordada em
meados dos anos 90.”
Uma das marcas de estilo de
Isabel Figueiredo que dá a medida do seu sentido de humor selvagem são os
paralelismos sádicos: Maria Luísa sofre um desgosto amoroso e no parágrafo
seguinte o seu pai sofre também um “grande desgosto com a derrota de Cavaco
Silva nas legislativas.” Outro paralelismo sádico numa só frase: “Matar-me
seria um grande desperdício, avaliando o investimento já realizado.” Outro
ainda: “O David está com os pais na sua casinha na Arrentela e a mamã pediu-me
que descascasse os marmelos.” E de entre dezenas e dezenas deles, só mais um,
provavelmente o mais sádico, em formato de diálogo. Na sequência de um aborto,
uma médica com cara de menina diz: “Vista-se, enquanto eu chamo o seu marido.”
Maria Luísa: “Não tenho marido.” Médica: “Então chamamos quem? Maria Luísa:
“Chamem-me um táxi, por favor.”
As personagens de Isabela
Figueiredo não têm auto-estima e não parecem ter vida própria. Há uma força que
as comanda e essa força são os outros. Os valores dos outros, os juízos dos
outros, as expectativas dos outros. Estão submetidas a uma voz de comando que
irremediavelmente se encontra fora de cena. Vivem na periferia, em “ambientes em
que não tem que se ser nada”, como explica Isabela Figueiredo. Uma vida não
vivida, que só se torna vida a partir do momento em que é contada?
“Enquanto vivi em Moçambique, não
tive experiência de estar a viver numa colónia. Havia questões humanas e morais
com as quais não concordava, em relação à maneira como os negros e as mulheres
eram tratadas, mas não conhecia nenhuma outra realidade. Quando vim para aqui
não vi Almada como um subúrbio. Só se tornou um subúrbio quando percebi isso pelos
outros. Foi quando fui estudar para Lisboa, quando fui trabalhar para o Diário
de Notícias. Era uma espécie de discriminação por não estar no sítio certo. Eu
não era como os outros que apanhavam o comboio à mesma hora que eu para ir para
o Estoril. Eu ia para a outra banda, não tinha a mesma categoria. Era um lugar
impuro, desprezível. Quando percebi isso comecei a identificar-me. Esse lugar era
como eu.”
Falemos de Almada: “Acabei os
estudos no colégio Nun’ Álvares, em Tomar, e não tinha para onde ir e uma prima
afastada da minha mãe dispôs-se a receber-me em sua casa, no Feijó. Os filhos
dela são as pessoas com que me dou aqui. Quando os meus pais regressaram,
compraram a casa na Cova da Piedade. Quando vim para aqui gostei. Era um espaço
onde era possível viver anonimamente. Era muito grande, havia muita gente, uma
grande mistura de cores e eu gosto de caos, não gosto de coisas arranjadinhas,
fico logo a pensar quanto é que isso me vai custar.”
A casa da Cova da Piedade é, desde
o início do romance, uma casa-fantasma. É também uma casa obesa, dela
transborda tudo o que os pais trouxeram da casa da Matola, em Moçambique. Há um
filodendro que alastra pelas quatro paredes da sala, um nicho de caladium,
troncos do Brasil, vasos de erva-da-fortuna (tudo contrabandeado de Moçambique
em bolbo ou estaca, as raízes “envolvidas em algodão húmido, embrulhado em
pano, depois em plástico” dentro de latas ou frascos). Dão à casa a aparência
tropical de uma estufa húmida.
A opulência colonial da casa na
Matola é reduzida ao exílio num pequeno apartamento na Cova da Piedade, mas o
processo de descolonização ainda vai no início: segue-se uma guerra doméstica entre
mãe e filha: uma guerra por espaço vital, que só terminará com a morte dos pais
e a concentração das mobílias vindas de África numa só divisão: o quarto
Império! É uma gastrectomia imobiliária! Mas nem assim a casa fica esvaziada do
seu passado.
Isabel Figueiredo: “Ainda me dói.
A minha mãe e o meu pai trouxeram imensas coisas de África e eu tive de me
desenvencilhar delas. Imagina alguém que amas muito e que te diz: ‘toma, estas
coisinhas são para ti, guarda isto para sempre’. E quando essa pessoa morre o
que mais queres é desfazer-te daquilo. Queres refazer tudo. O quarto Império
existiu mesmo. Quando a minha mãe morreu, meti as coisas todas dela num quarto.
Não se podia entrar lá. Os móveis ficaram encostados uns aos outros como
sardinhas em lata, para que eu pudesse viver no resto da casa. Hoje em dia o
quarto império é onde fica o meu quarto!”
“O que mais me custou foi o
sacrifício que a minha mãe fez para trazer aquelas coisas. As humilhações por
que passou. Foi sangue, suor e lágrimas. Como é que se tem coragem? Tem que
ser. Também tive de deitar fora coisas que foram preciosas para mim. Se calhar,
a gordura foi importante para a minha construção como pessoa. Se calhar, foi
importante para me proteger. Se calhar, foi a minha almofada. E no entanto tive
de deitá-la fora para viver.”
Conto a Isabel Figueiredo que na
véspera tive um sonho em que também fazia uma entrevista, e que a entrevistada,
Madonna, usava uma máscara para não ser reconhecida. “Isso é muito
psicanalítico”, diz. Acresecnta que faz psicanálise de grupo, num grupo só de
mulheres: “Fazemos análise umas às outras. Às vezes é muito incómodo, porque
elas me interpelam naqueles sítios que prefiro não partilhar. Não sou
totalmente honesta. Aquilo é um bocado xamânico. Primeiro incomoda, depois
ficamos a pensar, aquilo fica a agir. Quando escrevo, penso que estou a escavar
no que está escondido, lá no fundo, e eu preciso de mostrar. Sou mais
autêntica. Procuro relacionar-me comigo como gostaria de me relacionar com os
outros. A psicanálise de grupo é um trabalho de interação social, tem a ver com
estar em sociedade, que é o que mais detesto. Tenho de fazer um esforço. É uma
espécie de fisioterapia, obriga-me a fazer ginástica social. Sou obrigada a
enfrentar os outros. Tento esconder-me um bocado, mas às vezes sou apanhada.”
Brinquemos ao apanha: o que é que
distingue Isabela Figueiredo de Maria Luísa? “Essa é a pergunta à qual nunca
irei responder. Se estivesse lá inteira seria o caos. Quero prender o leitor,
obrigá-lo a amar-me e sirvo-me de todos os estratagemas. A literatura para mim
é o privado e o íntimo, o autêntico, mas posso construir imensas camadas sobre
a autobiografia.”
Montar uma narrativa, mesmo
usando a experiência autobiográfica, não deixa de ser um trabalho ficcional, e
Isabela fala de um leitor que numa sessão de apresentação do livro elogiou a
sua coragem em revelar um episódio que, diz ela, não foi vivido por si: “Adorei
e assumi. É tudo verdade e é tudo ficção. Uso a minha vida para construir outra
vida. Estou aqui, este é o meu corpo e o meu corpo está aqui para tudo,
amem-me, deem-me pancada, façam o que quiserem.
Estou aqui para fazer barulho.
Há um episódio de infância,
recordado em “Caderno de memórias coloniais”, em que Isabela esbofeteia uma
rapariga mulata. A impunidade é tanto mais grave por saber que ela não lhe pode
devolver-lhe a agressão. Esse episódio é um grande momento de literatura por concentrar
a aprendizagem do colonialismo e do seu exercício de poder. Um outro exercício
de poder é nomeado em “A Gorda”, em que Maria Luísa é visitada de surpresa por
David, depois dele a ter deixado. Deixou-a, mas ainda a deseja e força-a ter
sexo até ela desistir: “Deseja o meu desprezível corpo que o envergonha? Use-o,
então, e ponha-se a andar.”
“Aquilo que sou faz-se sobre
todos os erros”, comenta. “Com todas as vilezas, não apagaria nada. A única
coisa que apagaria: um sentimento de culpa e de inferioridade. Eu não me
deveria ter ferido com o que os outros pensavam de mim. Mas se apagasse isso
nunca teria escrito.”
A Gorda é um cometa. Não um
cometa que acabou de passar, mas um cometa que estava há muito tempo escondido,
ainda a fumegar, e a gerar trepidação na superfície da vida privada. Existe um
precedente? Isabela Figueiredo tem uma afinidade com Adília Lopes: “Ela escreve
sempre no fio da navalha. Assim como hoje se fala do Fernando Pessoa, daqui a
uns anos irá falar-se da Adília Lopes. Fará parte do programa do 12º ano, no
exame nacional. Mas ainda é cedo.” Isabela Figueiredo é professora de português
na Escola Secundária Fernão Mendes Pinto, em Almada, o que só torna mais
divertido o efeito de borrasca do seu trabalho na literatura portuguesa. Terá
sido por isso que chegou tão tarde? “O que eu queria escrever não tinha lugar
na literatura. Nos anos 90 enviei um original a uma grande figura da língua
portuguesa, que me respondeu a dizer que aquilo não prestava para nada. Se
calhar não prestava mesmo. Mas naquilo que lhe enviei estava o gérmen do que
queria escrever.”
E ter a fama de Madonna, a ponto
de ver-se na obrigação de sair à rua de máscara? “Agrada-me a ideia de ser lida
e de ser amada através da leitura, mas gosto muito do anonimato.”
[texto publicado no suplemento Ipsílon do Público de 25 de Novembro de 2016]
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