sexta-feira, 1 de abril de 2011

o quarto do filho

Das fotografias que fiz com o meu irmão, esta é a minha favorita.
Por uma vez, não me limitei a fazer de operadora de câmara em mais uma das suas encenações. O Jaime alternava momentos extrovertidos, em que chamava a si toda a atenção, com longos períodos de retiro em que ninguém podia vê-lo. A minha mãe era a única lá em casa que sabia qual era o melhor momento para interromper essas fases depressivas a que só a Isabel, por ser gata, e o Zeca, o nosso cão, tinham acesso. Esta imagem foi captada pouco tempo depois de eu ter saído de casa e o Jaime ficar com o quarto só para ele. A minha mãe tinha como hábito entrar no quarto com a desculpa de abrir a janela para arejar ou arrumar alguma roupa lavada. Sentava-se a um canto e esperava um pouco antes de lhe contar uma novidade. Era o tempo que ele demorava a vir à superfície. Tirei a fotografia à entrada do quarto e por isso a minha mãe, que estava sentada ao pé da janela, está fora de campo, embora a sombra dela seja visível aqui na parede do lado direito. Não se nota bem por causa do jarro com gladíolos que está em primeiro plano, com estas flores mais descaídas a fazerem uma espécie de telhado sobre a cabeça do meu irmão. São umas flores horríveis, que ele adorava. Ao centro, por cima da cama, parcialmente tapado pela penumbra, fica o poster de Crazy Horse (um dos chefes índios que combateram na batalha que teve lugar nas margens do rio Little Bighorn, entre o exército americano e as tribos Sioux e Cheyenne). O meu irmão, desde criança, tinha o fascínio pelos índios, paixão que na adolescência passou a repartir com os travestis. À esquerda da silhueta de Crazy Horse, em retratos mais pequenos, estão também coladas à parede fotos de Ruth Bryden e Maria Bakker. O seu corpo jaz estendido sobre a cama, as mãos unidas sobre o peito (as mãos, em silhueta, dir-se-iam feitas em carvão). O Zeca está deitado por cima das pernas de Jaime e esta mancha acinzentada entre a pata dianteira e as orelhas dele, que eram enormes, é a Isabel aninhada no seu pescoço. Não deveria ter mais dum mês. O rosto do meu irmão exigiu-me horas de trabalho no photo-shop. A luz embatia-lhe na testa e quase apagou a definição dos traços das sobrancelhas, que são determinantes para entender o olhar que dirige à minha mãe, e que por estar de perfil não pode ser visto. Ter conseguido separar os tons rosa na área da boca é outra conquista do trabalho. Não chega a ser um sorriso, é quase um tique, entre a preguiça de quem passou o dia na cama e o esforço de concentração para escutar a minha mãe sem abandonar a sua linha de pensamentos. O elemento exterior à imagem, a minha mãe, define o clima de intimidade do retrato. Só ela podia penetrar aquele espaço exclusivo.

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