Brendan Behan
(1923-1964) não escreveu este livro sobre Nova Iorque – ditou-o. E, de acordo
com Enrique Vila-matas, que assina o curto prefácio, “ditou-o espectacularmente
bêbado”.
Porventura já aconteceu
ao sóbrio leitor encontrar-se num carro conduzido por um “bêbado”? As intenções
dele são ínvias. Mesmo quando conduz a direito fá-lo por caminhos tortos. É
assim que Brendan Behan nos conduz por Nova Iorque – por desgovernadas iluminações
etílicas. Está o leitor pacato no Irish Club de Londres, a ouvir falar de aulas
em irlandês (que é como o autor chama ao gaélico) e num súbito acto de magia
aterra no Central Park! As suas diversões – “algumas das quais são de graça” –
não evitam que dê outro pulo, no mesmo parágrafo, até ao jardim zoológico da
sua cidade natal, Dublin: “São lá criados leões que, posteriormente, são
exportados para jardins zoológicos de todo o mundo”.
Uma anedota da infância
de Behan conta que depois de ser acusada de “deformar” o filho, a mãe dele
respondeu que o filho não estava deformado, o que ele estava era bêbado. O próprio
Behan (pg. 115) recorda que a avó lhe deu a provar uísque aos seis anos, com o
argumento de que quem bebe em pequeno aborrece em adulto. “Brendan Behan’s New
York” (1964) é o título original deste livro, em que o autor disputa o
protagonismo com a sua cidade favorita, antes de logo a seguir terminar a sua
curta vida e carreira tal como a iniciou: sob o efeito do álcool.
Quem se lembra do
cantor Shane Macgowan e dos seus Pogues, não terá grande dificuldade em
imaginar a ascensão mediática deste seu compatriota e precursor: ambos
beneficiaram dos escândalos causados por gloriosas bebedeiras. O primeiro
sucesso da sua carreira, a peça “The Quare Fellow” (1954), aconteceu depois de
ser entrevistado num programa de televisão em que apareceu embriagado. Até
morrer, aos 41 anos, o álcool foi o fuel da sua criatividade, assim como do
circo mediático que lhe deu fama e trabalho. Disse Behan: “à excepção dos obituários,
não existe má publicidade”.
“Nova Iorque” (ed.
Tinta da China) é o primeiro livro de Behan em português, numa tradução de Rita
Graña. É um começo pelo fim. O autor já não conseguia escrever e limitou-se a
gravar monólogos para um gravador durante a sua última estadia no Chelsea
Hotel. Não estamos perante uma variação de “Debaixo do Vulcão”, de Malcolm
Lowry. Nem pela elaboração, nem pela densidade. Fisicamente o estado de Behan
podia ser terminal, mas o estado mental deste guia subjectivo de Nova Iorque
assemelha-se mais a uma borracheira divertida.
É uma embriaguês,
digamos assim, horizontal: não há uma descida aos infernos, antes um
ziguezaguear por anedotas pessoais, que lhe vão ocorrendo em associações
involuntárias. As associações involuntárias são o que este livro tem de melhor.
A verdadeira cartografia não é a da cidade, mas a dos pontos luminosos que
acendem e apagam na sua mente, e que o autor vai ligando um pouco como quem
recolhe moedas a tinir no passeio, sem se aperceber que as moedas caem do seu
bolso.
Há um episódio
hilariante (digno da melhor comédia “screwball”) que ocupa sete páginas do
primeiro capítulo. É um círculo fechado desenhado sobre uma Nova Iorque que só
a ele pertence (o episódio até acontece em Boston!): uma rapariga de 18 anos
filha de irlandeses interessa-se por conhecer um actor “muito famoso” e “deveras
bem-educado”. Behan descansa o pai, preocupado com a virtude da filha, e
apresenta-a ao actor, “um tipo velho” que “não se interessava muito por
raparigas”.
A rapariga fica “em
sarilhos”. Behan, convidado para ser júri num concurso organizado por uma fábrica
de têxteis, decide falsificar os resultados e entregar à filha do seu amigo o
segundo prémio, no valor de 3 mil dólares. Depois de convencer os restantes
membros do júri, resta-lhe identificar a carta da rapariga, no meio de “pelo menos
cinquenta mil”. Depois de encontrar a carta, escolhe mais duas e entrega as
cartas eleitas por si à empresa organizadora: “Infelizmente para mim, o relações-públicas
do departamento das importações leu as cartas e decidiu que a da minha menina
merecia o primeiro prémio”. O primeiro prémio era uma viagem à Irlanda: “Ora,
por mais que eu adore a minha terra natal, não é o género de lugar para onde se
envie uma rapariga que precise de tratar dos seus assuntos”. O episódio termina
numa viagem de comboio, a ensinar canções revolucionárias à sua protegida (já
livre de “sarilhos”, depois de ser assistida por um médico a troco de dois mil
dólares), a fugir para Midtown e a “ponderar seriamente” em apanhar o avião no
aeroporto JF Kennedy (outro irlandês!).
Um pouco à semelhança
de um certo tipo de enviado-especial a sítios onde ocorreu uma calamidade, a
quem interessa mais o sapato perdido entre os destroços de um seu compatriota
do que a desgraça que se abateu sobre a população local, Brendan Behan transforma
a Broadway num ponto de encontro entre irlandeses mais ou menos pícaros e chega
mesmo a cruzar-se com um familiar! A deambulação por Greenwich Village não é
menos toldada, com os cantores folk a serem depreciados a favor do talento
musical dos seus familiares (e dele próprio!). Também alude à geração beatnik,
a Kerouac e Ginsberg, mas em mais uma associação desopilante salta para Evelyn
Waugh (um católico), para Becket, para um actor irlandês com uma peça na
Broadway chamada “The importance of being Oscar” [Wilde, outro irlandês], antes
de fazer um encadeado de histórias entre Brooklyn e Bowery.
Brendan Behan, católico,
antigo membro do IRA (foi preso várias vezes, acusado de acções terroristas), não
gostava de viver no seu país dividido, mas encontrou em Nova Iorque o cenário
que mais lhe convinha para destilar a sua Irlanda privada. “Nova Iorque”, o
livro, é uma bebedeira feliz em que se sobrepõem duas ilhas: os luminosos
pontos multicoloridos de Manhattan, em primeiro plano, sobre a monocromática e
escura Irlanda, ao fundo.
(2010)
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