quinta-feira, 31 de março de 2011

imitação da primavera

Como pude esquecer este dia? Faltava ainda um mês para fazer dezassete anos
e o meu pai perguntou-me o que queria de presente. Tinha acabado de acordar a meio dum sonho e quando me sentei na cozinha para tomar o pequeno almoço vinha a fazer um esforço de concentração para retê-lo. O Jaime fazia um buraco na praia, onde o meu pai se deitava, e depois dirigia-se para o mar. A nitidez da imagem era tão forte que tentei identificar a praia em que estávamos. Ao rebentarem, as ondas escavavam o areal, num plano superior à linha do mar. Ele entrou na água e deixei de vê-lo. Para não o perder de vista, aproximei-me da linha de rebentação e ele mergulhou, voltando a desaparecer. Julgando que estava a olhar através da janela da cozinha, o meu pai perguntou-me o que é que estava a ver e respondi-lhe que estava a observar uma vizinha a apanhar ameixas no quintal em frente. O meu pai aproximou-se da janela, incrédulo de haver ameixas naquela época do ano. Virou-se para mim e corrigiu-me. A vizinha estava a apanhar flores. Perguntei ao meu pai qual era a praia do sonho e ele disse-me que era Santo André, frente à lagoa, onde eu anos antes tinha encontrado uma bola Nívea de borracha. Ri-me dele se ter lembrado e conferi que a mulher estava de facto a apanhar as flores da ameixoeira. Ainda estava de férias e perguntei-lhe qual era o dia de Páscoa. Trouxe-me um dicionário de capa azul enorme e muito pesado, pousou-o à minha frente e respondeu-me: “no primeiro Domingo depois da lua cheia do Equinócio de Março”. Sei que estou a citar a frase com exactidão porque fiquei a reler a entrada sem conseguir entender. Não sabia o que era o equinócio. Ele foi buscar o outro volume do dicionário e abriu-o na letra e. “O equinócio é hoje”. Saímos à rua para observar a posição do sol e eu fiquei muito frustrada de não conseguir notar a diferença, desde que o sol estava a passar na linha do Equador. O meu pai levou-me à praia para ver melhor, mas quando chegámos ao Guincho o céu estava encoberto. No caminho de regresso parámos em São Pedro de Sintra e ele perguntou-me ainda dentro do carro: “Queres ser fotógrafa?” Não era a primeira vez que o meu pai me propunha uma actividade, só que desta vez ele trocara o verbo “fazer” por “ser”. Ele tocou à porta da sua amiga e fomos atendidos pelo filho dela, um rapaz mais baixo do que eu, com um rosto tão pequeno e um corpo tão esguio que à distância até parecia ser alto. De perto, lembrava uma gota de chuva a escorrer num pára-brisas. A mãe dele apareceu e abraçou-se o meu pai durante muito tempo. Mostrou-nos o estúdio de fotografia que tinha em casa, fez uma demonstração de como revelar uma fotografia e ensinou-me a regular a lente duma câmara manual. Quando peguei nela, disse-me: “Agora é tua”. Era uma Laika. Na altura não alcancei a importância daquela oferta. Ela tinha várias câmaras no estúdio e trabalhava com uma digital que estava ligada ao computador. Pergunto-me o que a terá levado a dar-me um presente tão valioso. Fiquei na sala a ver a sua colecção e acabei por fixar-me num álbum só com nus do filho. O seu rosto nunca olhava na direcção da câmara. Não parecia ser ele, o instante que a fotografia imobilizava retinha apenas torções do corpo, linhas que davam continuidade ao espaço que o rodeava. Quando o filho entrou na sala a perguntar pela mãe, com o rosto enrubescido, achei-o tão pequeno e frágil. Nas fotografias, a superfície do seu parecia alongar-se nas gamas de cinzentos, como a vista aérea duma paisagem. À minha frente parecia ainda mais esguio. Os ombros eram estreitos e o gorro do blusão criava o efeito duma marreca nas costas. Não encontrámos nem o meu pai nem a mãe dele e quando saímos tomámos direcção da serra. Eu levava a Laika a tira-colo (era demasiado pesada para ir pendurada ao pescoço) com o Duarte a meu lado de mãos nos bolsos. Sempre que eu parava para lhe tirar uma fotografia ele acelerava. Quando finalmente conseguia focá-lo, desaparecia por trás da vegetação. Já irritada com a sua falta de colaboração, numa altura em que ficou distraído a olhar para dentro duma cisterna e lhe pedi para ficar quieto, ele saltou lá para dentro. Aproximei-me do buraco, por onde ele tinha desaparecido, ajoelhei-me e só vi um quadrado negro à entrada. Debrucei-me. O Duarte ressurgiu a um palmo de distância dos meus olhos. O rosto dele na escuridão é emoldurado pelo capuz. As bochechas muito vermelhas e os olhos escuros tão grandes, com uma expressão de receio, de provocação, emoções confusas que ele tentou disfarçar.

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