António Pedro projectou o Teatro Experimental do Porto para a vanguarda da produção cénica com “A Morte de um caixeiro viajante”. 56 anos depois Gonçalo Amorim voltou a encenar o texto de Arthur Miller com o TEP. Convidou Cláudio da Silva e Maria João Pinho para fazerem o casal de protagonistas e a grande magia voltou a acontecer. Aquele que é o mais experimental dos actores da sua geração revela em “A Morte de Um caixeiro viajante” todo o seu virtuosismo. Ele decanta técnicas de “método”, explora a psicologia da personagem de Willy Loman como quem indexa o comportamento da esquizofrenia, o seu trabalho de corpo roça a fronteira do burlesco e integra o palco numa divisão do espaço total que é o Teatro. Quem admira o futebol de passe e a visão de jogo de Xavi também pode apreciar no Teatro S. Luiz um actor que, mais do que chamar a si o protagonismo, “distribui jogo” dramático, ou seja, faz as ligações entre personagens separadas por cenas e pelo tempo. A beleza do teatro está na relação entre as personagens. A grandeza do teatro está em transformar essa ilusão num acto observável – real.
O
Domingo de Setembro em que se deu esta entrevista culminou uma semana de
arromba para Cláudio da Silva: a estreia de “O filme do desassossego” (é
Bernardo Soares) e “A Morte de um caixeiro Viajante”. Depois de vários
desencontros, telefonemas e mal entendidos, e de uma hora à procura dele,
encontrei-o em frente ao mercado do Bom Sucesso, no Porto: camisola amarela,
jeans com dobras em baixo para não arrastarem pelo chão, óculos de piloto com
lentes pretas, chapéu de pala. Sentámo-nos ao balcão de um restaurante a almoçar,
onde decorreu a entrevista.
Em
2002 trabalhámos em Paris com João Fiadeiro e a primeira vez em que saímos
juntos fomos à livraria Shaskespeare & Friends, onde comprou um livro de
Pushkin... em cirílico! Cláudio da Silva é reservado, usa poucas palavras. O
alcance do que diz está no olhar. Há que aprender a lê-lo. Há nele uma aura de
graça e de fúria à espera de palavras. Cláudio da Silva foi o primeiro actor a
quem vi levar a sua personagem do interior da cena até à linha que separa o
palco da primeira fila e olhar para alguém na audiência, sem texto nem retórica.
Foi em “O meu Blackie”, no teatro d’A Capital. Uma nova geração de
actores-rapazes crescia então nos Artistas Unidos, sob a direcção de Jorge
Silva Melo: Manuel Wiborg, Miguel Borges, Paulo Claro (que morreu atropelado em
2001), José Airosa... Havia nestes actores uma impressão de familiaridade: eram
rostos e corpos e vozes como as dos nossos amigos e colegas. Cláudio da Silva
parecia vir de um sítio mais fundo, mais distante. Como se partilhasse casa com
a infância.
Nasceu em
Nova Lisboa (hoje Huambo) em 1974. Ainda bebé foi infectado pela poliomielite
(um traço diagonal no corpo afecta-lhe um braço e uma perna ) e a mãe acredita
que uma feiticeira o salvou com rezas e raízes. Depois foi raptado por uma
mulher que não tinha filhos. Como podia lembrar-se? De Angola não se lembra de
nada, “só o avião a chegar a Lisboa; o meu pai a receber cubanos em casa; e de
um médico que me quis levar para Cuba para ser lá tratado”. O que ficou então
de Angola? “palavras, amigos, outras coisas, muitas coisas... É a família.
Ficou-me a comida, alguns cheiros, o rabo, muitas história, maneira de estar,
palavras, expressões, um batimento. Angola é a minha terra. Só isso. Quando
estou com angolanos sinto-me mais em casa.”
Mas a vida
foi em Portugal. Férias de natal e de Verão em Avintes (“tinha lá um primo de
quem gostava muito, que faleceu num desastre de automóvel, depois disso deixei
de vir ao Porto”); vida em Santo António dos Cavaleiros, subúrbio de subúrbio,
onde ainda vive; quatro anos na Universidade católica, onde fez o curso de línguas
estrangeiras aplicadas; e o palco, de onde o quiseram afastar. No primeiro
curso que fez foi aconselhado “a começar a pensar em encenação”; no conservatório
foi recusado no curso de actores e desviado para estudos teatrais. “Levei isso
de forma pessoal”.
Primeiro
trabalho profissional: “Pompeia” com Miguel Loureiro e Gonçalo Ferreira de
Almeida (criador da personagem Maria Bakker). “Super-paneleiro, muito divertido”,
recorda. Trabalharam no Teatro da Graça quando já não havia... Teatro da Graça:
“Parecia ter sido abandonado em tempo de guerra; o espaço estava dividido em
salinhas pequenas, compartimentadas para cursos de informática.”
Nas primeiras
actuações que lhe vi nos Artistas Unidos as suas personagens eram sacos de
pancada: Jean-Marie, o punk de “O Meu Blackie” a quem “o irmão dá porrada e que
sonha ir para Ibiza” (“Nunca vais sair daqui, não sejas estúpido”); e Lucky em “À
espera de Godot”. Cheguei a desconfiar que João Garcia Miguel (Pozzo) tinha
prazer em maltratá-lo. “Caveiras e bolas de ténis” é a única frase de Lucky que
recorda, mas também se lembra do que Pozzo dizia dele: “ele antes dançava muito
mais” e “às vezes também pensa.” E que mais? “Lembro-me de ver o Caetano
Veloso. Eu estava a tomar banho quando ele apareceu naquela podridão” das salas
de A Capital no Bairro Alto. Comprimentou-o com uma toalha enrolada à cintura: “Tinha
gostado muito, tinha sido muito místico. Estava a jantar na Travessa da Espera
com a Maria Bethânia quando soube da apresentação de À espera de Godot.” E ela?
“Deu-me os parabéns, que tinha gostado muito... aquela conversa.”
O seus
dois anos n’A Capital foram a “oportunidade perdida neste Portugal de merda,
estava-se a criar um novo público, faziam-se peças contemporâneas, hoje está
aquilo emparedado. Não se percebe como é que se matam coisas assim”. Foi um período
a “fazer espectáculos em salas podres, limpá-las para trabalhar”. Estreou-se
com “Ruído”, de Joaquim Horta e fez nas calças. “Estava à rasca para mijar e ao
fim de hora e meia mijei-me mesmo. Como estava sentado o meu único medo eram as
pinguinhas a caírem da cadeira.”
Depois
João Fiadeiro convidou-o para a aventura de “Existência”, saiu dos Artistas
Unidos e tornou-se um actor errante. Desde então participou numa trintena de
produções, em teatro de texto ou de dança-performance, sempre em companhias
diferentes, sempre com encenadores, coreógrafos e colegas diferentes. O seu
momento de maior destaque terá sido quando Emmanuel Demarcy-Mota, director do
Théâtre de La Ville, o dirigiu em “Tanto amor desperdiçado” de Shakespeare
(onde conheceu Maria João Pinho). Mas há tesouros escondidos, como a
espantosa interpretação em “Companhia de caçadores”, um texto de Fernando Sousa
sobre uma reunião de veteranos da guerra no Ultramar e que teve vida breve numa
sala da casa dos Dias de Água. “Houve momentos difíceis, e alturas em que
estive sem trabalho, mas também não é por estar fixo numa companhia que tens
trabalho constante. Pode haver um momento em que sentes que não estás a
trabalhar.”
Tratar
ou trabalhar com Cláudio da Silva é fácil. Há nele uma candura que enternece,
mas em palco o mesmo jeito inocente ganha contornos prometeicos. Em “A morte de
um caixeiro viajante” ele sobe uma montanha improvável e devolve-nos a descrença
do teatro logo no primeiro segundo: entra pela porta do público carregado de
malas, olha para a plateia, sobe ao palco, dá uma pirueta, as malas voam e
aterra no chão. Poucos minutos depois ficamos a saber que a personagem dele é
sexagenária. Quando vi a peça na semana de estreia, no auditório municipal de
Gaia, houve uma senhora sentada a meu lado que soltou um “ah” de escândalo.
Sim, ele constrói a personagem do zero à frente do público.
“A
morte de um caixeiro Viajante” passa-se em dois níveis temporais: o presente do
pós II Guerra, em que o casal Loman é sexagenário, e o passado, quando Willy e
Linda são jovens e fazem projectos para o futuro dos filhos. O pai de Cláudio
também é caixeiro-viajante: “É a vida dele. Um gajo tem de se bater bué para
ter o mínimo. Esta peça é a minha homenagem a ele.” Os actores viajam no tempo
com as personagens que interpretam. No caso de Willy Loman, a viagem é um pouco
mais complicada: há várias cenas em que dialoga com personagens no presente e
outras vindas do passado. Mas o intérprete Cláudio da Silva vai ainda mais
longe: ele sai das cenas, abandona o palco, testa a materialidade da sala fora
do cenário e assim nos leva para fora de casa, para um passeio nocturno. Mais
tarde, transforma o palco no lugar dos vivos e a plateia no lugar dos mortos,
na sequência de duas danças estarrecedoras: a dança-do-eu-não-sou-um-tipo-qualquer
e a dança-de-morte, essa em que olha para o público antes de cair como que
decepado por um machado, e levanta-se, e desce à plateia, e cumprimenta
Ben-o-irmão-que-enriqueceu-no-Alasca e que representa para ele a fuga da prisão
conjugal e a liberdade da morte.
Quando
Willy Loman fala do seu ídolo, David Singleman, e diz “teve mesmo a morte de um
caixeiro viajante”, Cláudio da Silva exibe um postal da peça. E no entanto, a
audiência plaina por estes efeitos de distanciamento e mantém-se hipnotizada:
Willy interrompe a mulher, não a deixa falar, grita com ela que não o deixa
falar, e é uma agitação nas cadeiras a cada nova interrupção. “Mas que besta”; “O
bruto”; “Ganda maluco”. Filas inteiras começam a bufar: “Deixa-a falar”, solta
uma rapariga entre dentes e é nesta tensão de cortar à faca que subitamente, a
uma nova interrupção de Willy, acontece a primeira gargalhada colectiva: a última
vez que interrompe a mulher é quando o público finalmente entende o gag. O alívio
na plateia é acompanhado de uma cena tranquila: Willy deita-se com a cabeça
assente nas pernas da mulher, enquanto Linda lhe afaga a testa.
Willy
Loman está à beira do abismo, no limite do excesso: excesso de ideias, de
projectos, de conflitos, de tempos... é uma personagem que caminha para a morte
com o horror dos erros e dos fracassos a morder-lhe o pescoço. Em cada
contra-cena, em cada mudança de olhar, para onde quer que se vire, há uma
batalha diferente a combater e os estados de espírito, os tons de voz, vão-se
sucedendo em Cláudio da Silva numa espécie de desdobramentos da personalidade
de Willy Loman, em que a plasticidade e a loucura se confundem. Há um trabalho
de modulação, de nuances, de afinamento de registos, que torna a experiência
transcendente, à medida que a peça avança para o fim. A sua técnica, os
registos de que se fará valer durante 2h40, parecem estar simultaneamente à
mostra e escondidos: ele pauta o trabalho com elementos que revelam o
artificialismo da composição; ao mesmo tempo, a densidade, a fúria com que
entra em cada cena, e explode no seu interior, correspondem ao tempo da experiência
da peça. Há uma mistura de humilhação e orgulho, de ameaças e acabrunhamentos
no corpo, no rosto, que atingem o ponto máximo na cena em que confessa ao amigo
e vizinho Charlie que não consegue trabalhar para ele. Nessa cena, Cláudio da
Silva atinge o paroxismo: toca a inverosimilhança da experiência teatral e ao
mesmo tempo revela, como num efeito de transparência, o porquê de Willy Loman
ser um falhado: “É a primeira vez que diz o que sente de forma ternurenta, não
tem pessoas com quem consiga conversar, tem aquela forma abrutalhada e o
Charlie é o amigo que serve para tudo. É essa coisa da amizade.”
Willy Loman é um
homem histérico e iludido que não percebe nada do estado das coisas - a
realidade que sempre combateu. Não percebe o ódio do filho, nem o alcance das
suas próprias ilusões e mentiras. A única coisa que talvez perceba é o amor da
mulher, o que não lhe serve de paliativo: por ela sacrificou a liberdade, a
aventura – é esta dimensão, quase irrespirável, que Cláudio da Silva nos dá, numa
dupla memorável com Maria João Pinho, num pingue-pongue entre o espectador e o
interior da cena, entre as personagens do presente e os fantasmas do passado.
Há uma
cena, perto do final, em que Willy Loman recusa apertar a mão do filho, apesar
da insistência da mulher e de Biff. “A minha mão – não”, responde. As mãos de
Cláudio da Silva têm importância. Em 2002, em La Vilette, Paris, João Fiadeiro
pediu-lhe para cumprimentar o público e ele fez questão de apertar a mão a
cada uma das cerca de 200 pessoas que estavam na audiência. De resto, onde quer
que entre, repete sempre esse ritual: conheça ou não as pessoas, cumprimenta-as
a todas.
À saída do
restaurante, depois da entrevista, foi abordado por um homem que lhe pediu um
cigarro. Enquanto se enrolava um cigarro ficámos a saber que era russo, que
tinha uma infecção na perna que o impedia de trabalhar (nas obras), enfim, e
que tinha 23 anos (era mentira, só queria dramatizar o facto de ter envelhecido
precocemente). Depois falou-nos nas Fontainhas como quem utiliza uma palavra de
código. Mais tarde, subindo a Rua 31 de Janeiro, escutámos uma velhota aos
berros, desesperada gritava e repetia “Ó da Guarda”, lamuriava-se e repetia,
como numa ladainha, “Ai o meu dinheirinho, o meu rico dinheirinho”. Pediu para
a levarmos até à Batalha. Para a calar, untámos-lhe a mão com uma nota de
cinco. Não se calou e continuámos a subir. “O meu dinheirinho, meu rico
dinheirinho”. Já na batalha, enquanto lhe procurávamos um táxi, um casal disse
que ia para o mesmo sítio e levou-a. Direcção: Fontaínhas! Cláudio, que ia ao
teatro, no S. João, ficou convencido que era um esquema. Iriam os 5 euros
trocar de bolso (ai o seu rico dinheirinho) ou ser repartidos?
(2011, a partir de um encontro em Setembro de 2010)
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