quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Cláudio da Silva: a morte de um caixeiro viajante


Cláudio da Silva desenterra o “overacting” sem beliscar o arrebatamento e as grandes emoções do velho teatro psicológico.


António Pedro projectou o Teatro Experimental do Porto para a vanguarda da produção cénica com “A Morte de um caixeiro viajante”. 56 anos depois Gonçalo Amorim voltou a encenar o texto de Arthur Miller com o TEP. Convidou Cláudio da Silva e Maria João Pinho para fazerem o casal de protagonistas e a grande magia voltou a acontecer. Aquele que é o mais experimental dos actores da sua geração revela em “A Morte de Um caixeiro viajante” todo o seu virtuosismo. Ele decanta técnicas de “método”, explora a psicologia da personagem de Willy Loman como quem indexa o comportamento da esquizofrenia, o seu trabalho de corpo roça a fronteira do burlesco e integra o palco numa divisão do espaço total que é o Teatro. Quem admira o futebol de passe e a visão de jogo de Xavi também pode apreciar no Teatro S. Luiz um actor que, mais do que chamar a si o protagonismo, “distribui jogo” dramático, ou seja, faz as ligações entre personagens separadas por cenas e pelo tempo. A beleza do teatro está na relação entre as personagens. A grandeza do teatro está em transformar essa ilusão num acto observável – real.
O Domingo de Setembro em que se deu esta entrevista culminou uma semana de arromba para Cláudio da Silva: a estreia de “O filme do desassossego” (é Bernardo Soares) e “A Morte de um caixeiro Viajante”. Depois de vários desencontros,  telefonemas e mal entendidos, e de uma hora à procura dele, encontrei-o em frente ao mercado do Bom Sucesso, no Porto: camisola amarela, jeans com dobras em baixo para não arrastarem pelo chão, óculos de piloto com lentes pretas, chapéu de pala. Sentámo-nos ao balcão de um restaurante a almoçar, onde decorreu a entrevista.
Em 2002 trabalhámos em Paris com João Fiadeiro e a primeira vez em que saímos juntos fomos à livraria Shaskespeare & Friends, onde comprou um livro de Pushkin... em cirílico! Cláudio da Silva é reservado, usa poucas palavras. O alcance do que diz está no olhar. Há que aprender a lê-lo. Há nele uma aura de graça e de fúria à espera de palavras. Cláudio da Silva foi o primeiro actor a quem vi levar a sua personagem do interior da cena até à linha que separa o palco da primeira fila e olhar para alguém na audiência, sem texto nem retórica. Foi em “O meu Blackie”, no teatro d’A Capital. Uma nova geração de actores-rapazes crescia então nos Artistas Unidos, sob a direcção de Jorge Silva Melo: Manuel Wiborg, Miguel Borges, Paulo Claro (que morreu atropelado em 2001), José Airosa... Havia nestes actores uma impressão de familiaridade: eram rostos e corpos e vozes como as dos nossos amigos e colegas. Cláudio da Silva parecia vir de um sítio mais fundo, mais distante. Como se partilhasse casa com a infância.
Nasceu em Nova Lisboa (hoje Huambo) em 1974. Ainda bebé foi infectado pela poliomielite (um traço diagonal no corpo afecta-lhe um braço e uma perna ) e a mãe acredita que uma feiticeira o salvou com rezas e raízes. Depois foi raptado por uma mulher que não tinha filhos. Como podia lembrar-se? De Angola não se lembra de nada, “só o avião a chegar a Lisboa; o meu pai a receber cubanos em casa; e de um médico que me quis levar para Cuba para ser lá tratado”. O que ficou então de Angola? “palavras, amigos, outras coisas, muitas coisas... É a família. Ficou-me a comida, alguns cheiros, o rabo, muitas história, maneira de estar, palavras, expressões, um batimento. Angola é a minha terra. Só isso. Quando estou com angolanos sinto-me mais em casa.”
Mas a vida foi em Portugal. Férias de natal e de Verão em Avintes (“tinha lá um primo de quem gostava muito, que faleceu num desastre de automóvel, depois disso deixei de vir ao Porto”); vida em Santo António dos Cavaleiros, subúrbio de subúrbio, onde ainda vive; quatro anos na Universidade católica, onde fez o curso de línguas estrangeiras aplicadas; e o palco, de onde o quiseram afastar. No primeiro curso que fez foi aconselhado “a começar a pensar em encenação”; no conservatório foi recusado no curso de actores e desviado para estudos teatrais. “Levei isso de forma pessoal”.
Primeiro trabalho profissional: “Pompeia” com Miguel Loureiro e Gonçalo Ferreira de Almeida (criador da personagem Maria Bakker). “Super-paneleiro, muito divertido”, recorda. Trabalharam no Teatro da Graça quando já não havia... Teatro da Graça: “Parecia ter sido abandonado em tempo de guerra; o espaço estava dividido em salinhas pequenas, compartimentadas para cursos de informática.”
Nas primeiras actuações que lhe vi nos Artistas Unidos as suas personagens eram sacos de pancada: Jean-Marie, o punk de “O Meu Blackie” a quem “o irmão dá porrada e que sonha ir para Ibiza” (“Nunca vais sair daqui, não sejas estúpido”); e Lucky em “À espera de Godot”. Cheguei a desconfiar que João Garcia Miguel (Pozzo) tinha prazer em maltratá-lo. “Caveiras e bolas de ténis” é a única frase de Lucky que recorda, mas também se lembra do que Pozzo dizia dele: “ele antes dançava muito mais” e “às vezes também pensa.” E que mais? “Lembro-me de ver o Caetano Veloso. Eu estava a tomar banho quando ele apareceu naquela podridão” das salas de A Capital no Bairro Alto. Comprimentou-o com uma toalha enrolada à cintura: “Tinha gostado muito, tinha sido muito místico. Estava a jantar na Travessa da Espera com a Maria Bethânia quando soube da apresentação de À espera de Godot.” E ela? “Deu-me os parabéns, que tinha gostado muito... aquela conversa.”
O seus dois anos n’A Capital foram a “oportunidade perdida neste Portugal de merda, estava-se a criar um novo público, faziam-se peças contemporâneas, hoje está aquilo emparedado. Não se percebe como é que se matam coisas assim”. Foi um período a “fazer espectáculos em salas podres, limpá-las para trabalhar”. Estreou-se com “Ruído”, de Joaquim Horta e fez nas calças. “Estava à rasca para mijar e ao fim de hora e meia mijei-me mesmo. Como estava sentado o meu único medo eram as pinguinhas a caírem da cadeira.”
Depois João Fiadeiro convidou-o para a aventura de “Existência”, saiu dos Artistas Unidos e tornou-se um actor errante. Desde então participou numa trintena de produções, em teatro de texto ou de dança-performance, sempre em companhias diferentes, sempre com encenadores, coreógrafos e colegas diferentes. O seu momento de maior destaque terá sido quando Emmanuel Demarcy-Mota, director do Théâtre de La Ville, o dirigiu em “Tanto amor desperdiçado” de Shakespeare (onde conheceu Maria João Pinho).  Mas há tesouros escondidos, como a espantosa interpretação em “Companhia de caçadores”, um texto de Fernando Sousa sobre uma reunião de veteranos da guerra no Ultramar e que teve vida breve numa sala da casa dos Dias de Água. “Houve momentos difíceis, e alturas em que estive sem trabalho, mas também não é por estar fixo numa companhia que tens trabalho constante. Pode haver um momento em que sentes que não estás a trabalhar.”

Tratar ou trabalhar com Cláudio da Silva é fácil. Há nele uma candura que enternece, mas em palco o mesmo jeito inocente ganha contornos prometeicos. Em “A morte de um caixeiro viajante” ele sobe uma montanha improvável e devolve-nos a descrença do teatro logo no primeiro segundo: entra pela porta do público carregado de malas, olha para a plateia, sobe ao palco, dá uma pirueta, as malas voam e aterra no chão. Poucos minutos depois ficamos a saber que a personagem dele é sexagenária. Quando vi a peça na semana de estreia, no auditório municipal de Gaia, houve uma senhora sentada a meu lado que soltou um “ah” de escândalo. Sim, ele constrói a personagem do zero à frente do público.
“A morte de um caixeiro Viajante” passa-se em dois níveis temporais: o presente do pós II Guerra, em que o casal Loman é sexagenário, e o passado, quando Willy e Linda são jovens e fazem projectos para o futuro dos filhos. O pai de Cláudio também é caixeiro-viajante: “É a vida dele. Um gajo tem de se bater bué para ter o mínimo. Esta peça é a minha homenagem a ele.” Os actores viajam no tempo com as personagens que interpretam. No caso de Willy Loman, a viagem é um pouco mais complicada: há várias cenas em que dialoga com personagens no presente e outras vindas do passado. Mas o intérprete Cláudio da Silva vai ainda mais longe: ele sai das cenas, abandona o palco, testa a materialidade da sala fora do cenário e assim nos leva para fora de casa, para um passeio nocturno. Mais tarde, transforma o palco no lugar dos vivos e a plateia no lugar dos mortos, na sequência de duas danças estarrecedoras: a dança-do-eu-não-sou-um-tipo-qualquer e a dança-de-morte, essa em que olha para o público antes de cair como que decepado por um machado, e levanta-se, e desce à plateia, e cumprimenta Ben-o-irmão-que-enriqueceu-no-Alasca e que representa para ele a fuga da prisão conjugal e a liberdade da morte.
Quando Willy Loman fala do seu ídolo, David Singleman, e diz “teve mesmo a morte de um caixeiro viajante”, Cláudio da Silva exibe um postal da peça. E no entanto, a audiência plaina por estes efeitos de distanciamento e mantém-se hipnotizada: Willy interrompe a mulher, não a deixa falar, grita com ela que não o deixa falar, e é uma agitação nas cadeiras a cada nova interrupção. “Mas que besta”; “O bruto”; “Ganda maluco”. Filas inteiras começam a bufar: “Deixa-a falar”, solta uma rapariga entre dentes e é nesta tensão de cortar à faca que subitamente, a uma nova interrupção de Willy, acontece a primeira gargalhada colectiva: a última vez que interrompe a mulher é quando o público finalmente entende o gag. O alívio na plateia é acompanhado de uma cena tranquila: Willy deita-se com a cabeça assente nas pernas da mulher, enquanto Linda lhe afaga a testa.
Willy Loman está à beira do abismo, no limite do excesso: excesso de ideias, de projectos, de conflitos, de tempos... é uma personagem que caminha para a morte com o horror dos erros e dos fracassos a morder-lhe o pescoço. Em cada contra-cena, em cada mudança de olhar, para onde quer que se vire, há uma batalha diferente a combater e os estados de espírito, os tons de voz, vão-se sucedendo em Cláudio da Silva numa espécie de desdobramentos da personalidade de Willy Loman, em que a plasticidade e a loucura se confundem. Há um trabalho de modulação, de nuances, de afinamento de registos, que torna a experiência transcendente, à medida que a peça avança para o fim. A sua técnica, os registos de que se fará valer durante 2h40, parecem estar simultaneamente à mostra e escondidos: ele pauta o trabalho com elementos que revelam o artificialismo da composição; ao mesmo tempo, a densidade, a fúria com que entra em cada cena, e explode no seu interior, correspondem ao tempo da experiência da peça. Há uma mistura de humilhação e orgulho, de ameaças e acabrunhamentos no corpo, no rosto, que atingem o ponto máximo na cena em que confessa ao amigo e vizinho Charlie que não consegue trabalhar para ele. Nessa cena, Cláudio da Silva atinge o paroxismo: toca a inverosimilhança da experiência teatral e ao mesmo tempo revela, como num efeito de transparência, o porquê de Willy Loman ser um falhado: “É a primeira vez que diz o que sente de forma ternurenta, não tem pessoas com quem consiga conversar, tem aquela forma abrutalhada e o Charlie é o amigo que serve para tudo. É essa coisa da amizade.”
Willy Loman é um homem histérico e iludido que não percebe nada do estado das coisas - a realidade que sempre combateu. Não percebe o ódio do filho, nem o alcance das suas próprias ilusões e mentiras. A única coisa que talvez perceba é o amor da mulher, o que não lhe serve de paliativo: por ela sacrificou a liberdade, a aventura – é esta dimensão, quase irrespirável, que Cláudio da Silva nos dá, numa dupla memorável com Maria João Pinho, num pingue-pongue entre o espectador e o interior da cena, entre as personagens do presente e os fantasmas do passado.
Há uma cena, perto do final, em que Willy Loman recusa apertar a mão do filho, apesar da insistência da mulher e de Biff. “A minha mão – não”, responde. As mãos de Cláudio da Silva têm importância. Em 2002, em La Vilette, Paris, João Fiadeiro pediu-lhe para cumprimentar o público e ele fez questão de apertar a mão a cada uma das cerca de 200 pessoas que estavam na audiência. De resto, onde quer que entre, repete sempre esse ritual: conheça ou não as pessoas, cumprimenta-as a todas.
À saída do restaurante, depois da entrevista, foi abordado por um homem que lhe pediu um cigarro. Enquanto se enrolava um cigarro ficámos a saber que era russo, que tinha uma infecção na perna que o impedia de trabalhar (nas obras), enfim, e que tinha 23 anos (era mentira, só queria dramatizar o facto de ter envelhecido precocemente). Depois falou-nos nas Fontainhas como quem utiliza uma palavra de código. Mais tarde, subindo a Rua 31 de Janeiro, escutámos uma velhota aos berros, desesperada gritava e repetia “Ó da Guarda”, lamuriava-se e repetia, como numa ladainha, “Ai o meu dinheirinho, o meu rico dinheirinho”. Pediu para a levarmos até à Batalha. Para a calar, untámos-lhe a mão com uma nota de cinco. Não se calou e continuámos a subir. “O meu dinheirinho, meu rico dinheirinho”. Já na batalha, enquanto lhe procurávamos um táxi, um casal disse que ia para o mesmo sítio e levou-a. Direcção: Fontaínhas! Cláudio, que ia ao teatro, no S. João, ficou convencido que era um esquema. Iriam os 5 euros trocar de bolso (ai o seu rico dinheirinho) ou ser repartidos?
(2011, a partir de um encontro em Setembro de 2010)


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