quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Honoré de Balzac: O Coronel Chabert


Um soldado é desenterrado de entre os mortos para viver enterrado entre vivos.

O soldado que regressa da guerra e descobre a mulher dele “viúva” e casada em segundas núpcias é um tema recorrente desde que se contam histórias  (o exemplo mais famoso na literatura portuguesa é “Frei Luís de Sousa” que Almeida Garret escreveu em 1843). Honoré de Balzac contou a sua história pela primeira vez em 1832, numa versão intitulada “La transaction”, seguindo-se “La comtesse à deux maris”, até chegar à versão definitiva, “Le Colonel Chabert”, incluída em A Comédia Humana – que reúne as suas obras completas.

Os três títulos correspondem aos três grandes temas deste pequeno livro: o retrato de um veterano de guerra da era napoleónica enterrado e morto oficialmente e que por isso não pode ter vida civil; a história da sua mulher, casada em segundas núpcias com um conde, e que herdou uma fortuna e uma pensão vitalícia por morte do primeiro marido; o contrato que o advogado de ambos redige para evitar um processo em tribunal e preservar os interesses de ambos.
“O Coronel Chabert” (ed. Assírio & Alvim, trad. Aníbal Fernandes) é escrito a seguir à Revolução de 1830 (que acabou definitivamente com o reinado dos Bourbon em França e levou ao trono o rei “burguês” Louis Philippe d’Órléans). Quanto à narrativa, inicia-se ainda durante o reinado de Luís XVIII (instalado no poder com a queda de Napoleão em 1815) e só termina em 1840, num período de grandes clivagens sociais entre pobres e ricos – que prenuncia a destituição de Louis Philippe.
A origem desta sucessão de mudanças de poder, que afecta a sociedade francesa e as personagens do livro, encontra-se num lugar distante, a Prússia oriental, no ano de 1807… é nos dia7-8 de Fevereiro, sob uma tempestade de neve, e já de noite, que as tropas de Napoleão, enregeladas e exaustas, iniciam a batalha de Eylau contra o exército russo. Embora vencedor, o exército de Napoleão sofre perdas inéditas num combate sangrento e inconclusivo. As baixas estimam-se entre os 10 mil e os 25 mil homens do lado vencedor – e a disparidade dos números diz bem do estado de caos que se sucedeu. Murat (que no ano seguinte é coroado Rei de Nápoles) acode ao exército de Napoleão liderando um inédito esquadrão de cavalaria constituído por 12 mil homens que determinará a vitória – entre eles encontra-se o Coronel Chabert, aos comandos de um regimento.
O ataque da cavalaria é descrito por Chabert no livro, assim como a sua morte! (pg. 44-50): “Dois oficiais russos, dois autênticos gigantes, atacaram-me ao mesmo tempo. Um deu-me um golpe de sabre na cabeça, e rachou-a até ao boné de seda preta que eu levava posto e me abriu profundamente o crânio. Caí do cavalo. Murat veio socorrer-me , mas ele e toda a gente, mil e quinhentos homens, que menos não eram!, passaram sobre o meu corpo.”
O relato de como foi julgado morto, os argumentos que explicam a sua sobrevivência e ser enterrado são um hino à imaginação, enquanto a descrição de como despertou numa vala rodeado de outros cadáveres é a experiência mais estarrecedora que já li.
A vida de um homem morto – podia também ser o título do livro. É sobre alguém a quem é negada a identidade, a ponto de ter de escondê-la para fugir ao degredo: “Gostaria de não ser eu. Ter consciência dos meus direitos mata-me. Se a doença me tivesse tirado toda a memória da existência passada, teria sido feliz! (…) Fui enterrado debaixo dos mortos mas estou agora enterrado debaixo dos vivos, dos actos, dos factos, da sociedade inteira que quer voltar a pôr-me debaixo da terra!”
Chabert, para Balzac, não é apenas Chabert: ele é o passado de França, que a queda de Napoleão e o exílio em Santa Helena tornam constrangedor, algo a esquecer, a eliminar. Chabert representa a última centelha de dignidade e honra de que a sociedade francesa abdicou, por troca com o dinheiro mais os novos valores da burguesia. A sua mulher, uma prostituta que se casa com um herói da Guerra, para depois substituí-lo por um herdeiro da velha aristocracia (uma solução conveniente com o regresso dos Bourbon ao poder), e que a todo o custo procura manter morto o marido que está vivo, para ela própria não sossobrar aos interesses do seu segundo marido no novo regime, essa mulher é a sociedade francesa contemporânea de Balzac.
Na sua preserverança, primeiro lutadora, depois paciente, Chabert haverá de conhecer infortúnios piores do que estar enterrado. É um homem fora do seu tempo, alvo de ignomínias que não param de crescer na abjecção. Balzac, na busca do horror mais sombrio, encontra na figura da mulher de Chabert o cúmulo da malvadez, tornada ainda mais assustadora pela longa elipse que caracteriza a sua presença no livro. 
Figura mediadora entre marido e mulher, advogado de ambos, Derville é a testemunha previlegiada da sociedade francesa como se encontra. É “com um sorriso malicioso e mordaz que este homem, em muito boa posição para conhecer as coisas até ao âmago apesar das mentiras com que a maior parte das famílias parisienses as esconde” exprime a sua posição: ele tem de usar de malícia para que a condessa devolva a Chabert o que a Chabert pertence.
Num livro em que a comédia de costumes de Molière parece servir de modelo numa visão desolada, Balzac opta por um ângulo espectral. Incapaz de descrever a psicologia de alguém tão corrupto como a sua personagem feminina, Balzac opta por revelar o maior pesadelo dela: a aparição de um espectro do passado, sob a figura do seu primeiro marido. “O coronel Chabert” ganha então uma atmosfera de história de fantasmas, com a Condessa de Ferraud no papel da mulher visitada pela sua própria consciência. 

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