O soldado que regressa da guerra e descobre a mulher dele “viúva”
e casada em segundas núpcias é um tema recorrente desde que se contam histórias (o exemplo mais famoso na literatura
portuguesa é “Frei Luís de Sousa” que Almeida Garret escreveu em 1843). Honoré
de Balzac contou a sua história pela primeira vez em 1832, numa versão
intitulada “La transaction”, seguindo-se “La comtesse à deux maris”, até chegar
à versão definitiva, “Le Colonel Chabert”, incluída em A Comédia Humana – que
reúne as suas obras completas.
Os três títulos correspondem aos três grandes temas deste
pequeno livro: o retrato de um veterano de guerra da era napoleónica enterrado
e morto oficialmente e que por isso não pode ter vida civil; a história da sua
mulher, casada em segundas núpcias com um conde, e que herdou uma fortuna e uma
pensão vitalícia por morte do primeiro marido; o contrato que o advogado de
ambos redige para evitar um processo em tribunal e preservar os interesses de
ambos.
“O Coronel Chabert” (ed. Assírio & Alvim, trad. Aníbal
Fernandes) é escrito a seguir à Revolução de 1830 (que acabou definitivamente
com o reinado dos Bourbon em França e levou ao trono o rei “burguês” Louis
Philippe d’Órléans). Quanto à narrativa, inicia-se ainda durante o reinado de
Luís XVIII (instalado no poder com a queda de Napoleão em 1815) e só termina em
1840, num período de grandes clivagens sociais entre pobres e ricos – que
prenuncia a destituição de Louis Philippe.
A origem desta sucessão de mudanças de poder, que afecta a
sociedade francesa e as personagens do livro, encontra-se num lugar distante, a
Prússia oriental, no ano de 1807… é nos dia7-8 de Fevereiro, sob uma tempestade
de neve, e já de noite, que as tropas de Napoleão, enregeladas e exaustas,
iniciam a batalha de Eylau contra o exército russo. Embora vencedor, o exército
de Napoleão sofre perdas inéditas num combate sangrento e inconclusivo. As
baixas estimam-se entre os 10 mil e os 25 mil homens do lado vencedor – e a
disparidade dos números diz bem do estado de caos que se sucedeu. Murat (que no
ano seguinte é coroado Rei de Nápoles) acode ao exército de Napoleão liderando
um inédito esquadrão de cavalaria constituído por 12 mil homens que determinará
a vitória – entre eles encontra-se o Coronel Chabert, aos comandos de um
regimento.
O ataque da cavalaria é descrito por Chabert no livro,
assim como a sua morte! (pg. 44-50): “Dois oficiais russos, dois autênticos
gigantes, atacaram-me ao mesmo tempo. Um deu-me um golpe de sabre na cabeça, e
rachou-a até ao boné de seda preta que eu levava posto e me abriu profundamente
o crânio. Caí do cavalo. Murat veio socorrer-me , mas ele e toda a gente, mil e
quinhentos homens, que menos não eram!, passaram sobre o meu corpo.”
O relato de como foi julgado morto, os argumentos que
explicam a sua sobrevivência e ser enterrado são um hino à imaginação, enquanto
a descrição de como despertou numa vala rodeado de outros cadáveres é a experiência
mais estarrecedora que já li.
A vida de um homem morto – podia também ser o título do
livro. É sobre alguém a quem é negada a identidade, a ponto de ter de escondê-la
para fugir ao degredo: “Gostaria de não ser eu. Ter consciência dos meus
direitos mata-me. Se a doença me tivesse tirado toda a memória da existência
passada, teria sido feliz! (…) Fui enterrado debaixo dos mortos mas estou agora
enterrado debaixo dos vivos, dos actos, dos factos, da sociedade inteira que
quer voltar a pôr-me debaixo da terra!”
Chabert, para Balzac, não é apenas Chabert: ele é o passado
de França, que a queda de Napoleão e o exílio em Santa Helena tornam
constrangedor, algo a esquecer, a eliminar. Chabert representa a última
centelha de dignidade e honra de que a sociedade francesa abdicou, por troca
com o dinheiro mais os novos valores da burguesia. A sua mulher, uma prostituta
que se casa com um herói da Guerra, para depois substituí-lo por um herdeiro da
velha aristocracia (uma solução conveniente com o regresso dos Bourbon ao
poder), e que a todo o custo procura manter morto o marido que está vivo, para
ela própria não sossobrar aos interesses do seu segundo marido no novo regime,
essa mulher é a sociedade francesa contemporânea de Balzac.
Na sua preserverança, primeiro lutadora, depois paciente,
Chabert haverá de conhecer infortúnios piores do que estar enterrado. É um
homem fora do seu tempo, alvo de ignomínias que não param de crescer na abjecção.
Balzac, na busca do horror mais sombrio, encontra na figura da mulher de
Chabert o cúmulo da malvadez, tornada ainda mais assustadora pela longa elipse
que caracteriza a sua presença no livro.
Figura mediadora entre marido e mulher, advogado de ambos,
Derville é a testemunha previlegiada da sociedade francesa como se encontra. É “com
um sorriso malicioso e mordaz que este homem, em muito boa posição para
conhecer as coisas até ao âmago apesar das mentiras com que a maior parte das
famílias parisienses as esconde” exprime a sua posição: ele tem de usar de malícia
para que a condessa devolva a Chabert o que a Chabert pertence.
Num livro em que a comédia de costumes de Molière parece
servir de modelo numa visão desolada, Balzac opta por um ângulo espectral.
Incapaz de descrever a psicologia de alguém tão corrupto como a sua personagem
feminina, Balzac opta por revelar o maior pesadelo dela: a aparição de um
espectro do passado, sob a figura do seu primeiro marido. “O coronel Chabert”
ganha então uma atmosfera de história de fantasmas, com a Condessa de Ferraud no
papel da mulher visitada pela sua própria consciência.
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