quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Turguénev: fumo


No seu ranking pessoal dos grandes escritores russos, Vladimir Nabokov, o professor, colocava Tolstói em primeiro lugar, Gógol em segundo, Tchékov em terceiro e em quarto, já fora das medalhas, Ivan Turguénev (1818-1883).

Mais lembrado por “Pais e filhos” e “O primeiro amor”, “Fumo” (1867) foi escrito quando Turgénev vivia entre Paris e Baden-Baden. É nesta cidade (que Dostoievski disfarçou de Roletemburgo em “O Jogador”) em que ocorre o dilema de Litvínov, dividido entre o dever amoroso para com a sua noiva e a tentação de uma paixão antiga.

Em comparação com “Anna Karenina” (1877) o lugar de “Fumo” na história da literatura russa do séc. XIX assemelha-se ao lugar que Tatiana ocupa no coração do protagonista Litvínov: tem dignidade e bom senso, mas falta-lhe a chama que atiça uma grande paixão. O enredo, as características gerais dos protagonistas, temas e enfoque social, até são comuns aos dois livros, mas a locomotiva emocional de Tolstói é substituída em Turguénev por subtis estados de intranquilidade.
A constância de Turguénev permite-lhe aproximar-se das personagens principais como num passeio a pé pelas ruas de Baden. Enquanto elas não aparecem, atentemos na descrição de uma florista (e não “floreira”, p. 17), que diz bem da atmosfera social que as aguarda: depois de ignorar o aceno de um cliente mal vestido, ela nem agradece a outro que lhe deu uma gorjeta generosa: “Vorochílov estava vestido com muita elegância, até mesmo com um certo refinamento, mas os olhos experientes da parisiense detectaram logo nos seus modos, no seu ar, na própria maneira de andar, que trazia vestígios de um treino militar desde novo, a ausência de um ‘chic’ autêntico, puro sangue.”
A atmosfera em que “Fumo” irá mergulhar é a da aristocracia russa. E os seus encantos estão destinados a excluir o protagonista Litvínov (educado na Europa central, filho de um grande proprietário, mas sem título de nobreza), como se adivinha desde o início: “uma gargalhada geral chegou até aos seus ouvidos. Não estavam a rir-se dele, mas do há muito aguardado Monsieur Verdier, que surgira subitamente na esplanada com um chapéu tirolês, uma blusa azul e montado num burro; mas o sangue subiu às faces de Litvínov, que se sentiu amargo (…) ‘Gente vulgar, desprezível!’, murmurou.”
Litvínov foi noivo da bela Irina (as páginas mais inspiradas do livro acontecem quando estão juntos) e foi abandonado por ela depois de Irina triunfar como debutante num baile a que só foi por insistência sua. O reencontro de ambos em Baden vem revelar a fragilidade de Litvínov. Quanto a Irina, o seu futuro estava esboçado antes de conhecê-lo:
“Era uma rapariga alta, bem constituída, com o peito um pouco chato e os ombros estreitos da juventude, com a pele muito branca, raro na sua idade, pura e suave como porcelana, com uma farta cabeleira loira, onde havia tufos escuros alternando com outros mais claros. As suas feições, refinadas, quase irrepreensivelmente regulares, não tinham ainda perdido completamente aquela expressão de ingenuidade natural no início da juventude; mas na curva lânguida do seu belo pescoço, no seu sorriso, distraído ou indiferente, via-se a jovem aristocrata temperamental, e nas próprias curvas daqueles lábios finos, num imperceptível sorriso e naquele nariz pequeno, fino e um pouco aquilino havia algo obstinado e apaixonado, algo perigoso para os outros e para ela própria (…) Uma das professores disse-lhe que o seu temperamento a havia de arruinar – “vos passions vous perdront” mas outra acusou-a de ser fria e insensível e chamou-lhe “une jeune fille sans coeur”. As colegas achavam-na orgulhosa e reservada, os irmãos e irmãs tinham-lhe medo, a mãe não confiava nela e o pai sentia-se pouco à vontade quando ela o fitava com os seus olhos misteriosos; mas inspirava, tanto ao pai como à mãe, um involuntário respeito, não pela força do seu carácter, mas pelas esperanças vagas e muito peculiares que acordava neles, sabe-se lá porquê.”
A arte de Turguénev revela-se na sua força maior quando a narrativa é suspensa para as personagens serem retratadas. Os acontecimentos vêm inscrever no espaço-tempo algo que já ficou descrito no retrato. Ou seja, a história é apenas uma consequência de um choque entre personalidades. O autor parece sublinhar isso numa transição entre dois capítulos (XVI-XVII): no momento mais dramático, em que o futuro de ambos está em jogo, Litvínov deixa a amante Irina afundada numa cadeira com as mãos a cobrirem o rosto. Quando regressa horas depois, Irina ainda se encontra na mesma posição. E no entanto, a decisão dele não vale de nada: Irina, sem se mexer, irá destruir todos os seus planos de vida com uma frase oca, mas cheia de ressonância: “Porque eu amo-o”.
É na dramatização de quadros fixos que Turguénev põe em relevo a vida das personagens: a tensão aumenta por via da sua consciência, sem que a acção se torne necessária. Dois exemplos: o sorriso “fixo e desagradável” de Litvínov para a noiva Tatiana, acabada de chegar a Baden, quando declara que tem de ausentar-se (para se encontrar com a amante) sabendo que a noiva espera ficar a sós com ele naquele exacto momento; mais à frente “estava sentado ao lado da noiva, e a poucos centímetros dela, no bolso do lado, estava o lenço de Irina”.
Se fosse um filme diríamos que “Fumo” é uma produção de baixo orçamento, que aos grandes prefere os pequenos gestos e, às cenas de acção, a demora. Aliás, o autor parece só ter dois interesses: parodiar os “grandes temas” que obcecavam a sociedade russa e concentrar-se nos pormenores terrenos em que a vida interior das personagens vem à superfície.
Para quem desconhece o original em russo, a tradução de Manuel de Seabra parece clara. Só não entendi o que é “um bom homem, da variedade vazia” (p. 15); nem os “cabelos negros no lábio superior” (p. 21) de uma senhora que felizmente ficou incógnita, ou teria ficado muito zangada por não lhe ter sido aparado o buço.
(2010)

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