No seu ranking
pessoal dos grandes escritores russos, Vladimir Nabokov, o professor, colocava
Tolstói em primeiro lugar, Gógol em segundo, Tchékov em terceiro e em quarto, já
fora das medalhas, Ivan Turguénev (1818-1883).
Mais lembrado por “Pais e filhos” e “O primeiro amor”, “Fumo”
(1867) foi escrito quando Turgénev vivia entre Paris e Baden-Baden. É nesta
cidade (que Dostoievski disfarçou de Roletemburgo em “O Jogador”) em que ocorre
o dilema de Litvínov, dividido entre o dever amoroso para com a sua noiva e a
tentação de uma paixão antiga.
Em comparação com
“Anna Karenina” (1877) o lugar de “Fumo” na história da literatura russa do séc.
XIX assemelha-se ao lugar que Tatiana ocupa no coração do protagonista Litvínov:
tem dignidade e bom senso, mas falta-lhe a chama que atiça uma grande paixão. O
enredo, as características gerais dos protagonistas, temas e enfoque social, até
são comuns aos dois livros, mas a locomotiva emocional de Tolstói é substituída
em Turguénev por subtis estados de intranquilidade.
A constância de
Turguénev permite-lhe aproximar-se das personagens principais como num passeio
a pé pelas ruas de Baden. Enquanto elas não aparecem, atentemos na descrição de
uma florista (e não “floreira”, p. 17), que diz bem da atmosfera social que as
aguarda: depois de ignorar o aceno de um cliente mal vestido, ela nem agradece
a outro que lhe deu uma gorjeta generosa: “Vorochílov estava vestido com muita
elegância, até mesmo com um certo refinamento, mas os olhos experientes da
parisiense detectaram logo nos seus modos, no seu ar, na própria maneira de
andar, que trazia vestígios de um treino militar desde novo, a ausência de um ‘chic’
autêntico, puro sangue.”
A atmosfera em
que “Fumo” irá mergulhar é a da aristocracia russa. E os seus encantos estão
destinados a excluir o protagonista Litvínov (educado na Europa central, filho
de um grande proprietário, mas sem título de nobreza), como se adivinha desde o
início: “uma gargalhada geral chegou até aos seus ouvidos. Não estavam a rir-se
dele, mas do há muito aguardado Monsieur Verdier, que surgira subitamente na
esplanada com um chapéu tirolês, uma blusa azul e montado num burro; mas o
sangue subiu às faces de Litvínov, que se sentiu amargo (…) ‘Gente vulgar,
desprezível!’, murmurou.”
Litvínov foi noivo da bela Irina (as páginas mais inspiradas do livro
acontecem quando estão juntos) e foi abandonado por ela depois de Irina
triunfar como debutante num baile a que só foi por insistência sua. O reencontro
de ambos em Baden vem revelar a fragilidade de Litvínov. Quanto a Irina, o seu
futuro estava esboçado antes de conhecê-lo:
“Era uma rapariga alta, bem constituída, com o peito um pouco chato e
os ombros estreitos da juventude, com a pele muito branca, raro na sua idade,
pura e suave como porcelana, com uma farta cabeleira loira, onde havia tufos
escuros alternando com outros mais claros. As suas feições, refinadas, quase
irrepreensivelmente regulares, não tinham ainda perdido completamente aquela expressão
de ingenuidade natural no início da juventude; mas na curva lânguida do seu
belo pescoço, no seu sorriso, distraído ou indiferente, via-se a jovem
aristocrata temperamental, e nas próprias curvas daqueles lábios finos, num
imperceptível sorriso e naquele nariz pequeno, fino e um pouco aquilino havia
algo obstinado e apaixonado, algo perigoso para os outros e para ela própria (…)
Uma das professores disse-lhe que o seu temperamento a havia de arruinar – “vos
passions vous perdront” mas outra acusou-a de ser fria e insensível e
chamou-lhe “une jeune fille sans coeur”. As colegas achavam-na orgulhosa e
reservada, os irmãos e irmãs tinham-lhe medo, a mãe não confiava nela e o pai
sentia-se pouco à vontade quando ela o fitava com os seus olhos misteriosos;
mas inspirava, tanto ao pai como à mãe, um involuntário respeito, não pela força
do seu carácter, mas pelas esperanças vagas e muito peculiares que acordava
neles, sabe-se lá porquê.”
A arte de Turguénev
revela-se na sua força maior quando a narrativa é suspensa para as personagens
serem retratadas. Os acontecimentos vêm inscrever no espaço-tempo algo que já
ficou descrito no retrato. Ou seja, a história é apenas uma consequência de um
choque entre personalidades. O autor parece sublinhar isso numa transição entre
dois capítulos (XVI-XVII): no momento mais dramático, em que o futuro de ambos
está em jogo, Litvínov deixa a amante Irina afundada numa cadeira com as mãos a
cobrirem o rosto. Quando regressa horas depois, Irina ainda se encontra na
mesma posição. E no entanto, a decisão dele não vale de nada: Irina, sem se
mexer, irá destruir todos os seus planos de vida com uma frase oca, mas cheia
de ressonância: “Porque eu amo-o”.
É na dramatização de quadros fixos que Turguénev põe em relevo a vida
das personagens: a tensão aumenta por via da sua consciência, sem que a acção
se torne necessária. Dois exemplos: o sorriso “fixo e desagradável” de Litvínov
para a noiva Tatiana, acabada de chegar a Baden, quando declara que tem de
ausentar-se (para se encontrar com a amante) sabendo que a noiva espera ficar a
sós com ele naquele exacto momento; mais à frente “estava sentado ao lado da
noiva, e a poucos centímetros dela, no bolso do lado, estava o lenço de Irina”.
Se fosse um filme diríamos que “Fumo” é uma produção de baixo orçamento,
que aos grandes prefere os pequenos gestos e, às cenas de acção, a demora. Aliás,
o autor parece só ter dois interesses: parodiar os “grandes temas” que
obcecavam a sociedade russa e concentrar-se nos pormenores terrenos em que a vida
interior das personagens vem à superfície.
Para quem desconhece o original em russo, a tradução de Manuel de
Seabra parece clara. Só não entendi o que é “um bom homem, da variedade vazia”
(p. 15); nem os “cabelos negros no lábio superior” (p. 21) de uma senhora que
felizmente ficou incógnita, ou teria ficado muito zangada por não lhe ter sido
aparado o buço.
(2010)
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