quarta-feira, 30 de setembro de 2009
O ídolo cicatrizado
Os amigos achavam-no culto, inteligente (embora discreto), até lhe reconheciam sentido de humor. As mulheres (assim como um ou outro rapaz) apreciavam-lhe ainda a figura atlética e esguia, com um rosto bonito e gentil. Um tique, não sei se nervoso, se causado pelo facto de precisar de óculos, fazia-o piscar os olhos. O facto de ter um sinal na pálpebra direita tornava o pisca-pisca ainda mais desconcertante. V., a namorada de longa data, pelo contrário, era considerada uma mulher estúpida, afectada, ignorante e presunçosa. Resumindo: era muito feia. Quando uma união tão improvável se torna duradoira, abundam as teorias maledicentes (ignoremo-las). Depois deu-se o acidente. G. foi atropelado enquanto conduzia a sua bicicleta e ficou desfigurado. Uma enorme cicatriz em forma de y, na continuação da comissura dos lábios, fez a expressão amável e terna desaparecer, dando lugar a um ricto estático. O tique nos olhos, entretanto, desapareceu. O rapaz encantador de antes era o mesmo, mas adivinhava-se agora na sua expressão um sentimento de repugnância, ou mesmo de desprezo. Um ano depois do acidente, G. saiu de casa. Era o fim duma relação que durava há sete anos. Ele tinha sido o ídolo dela. Depois, com o acidente, tudo mudou. “Nos últimos tempos já nem conseguia disfarçar. Tratava-o muito mal.” Não era verdade. V. continuou a tratá-lo da mesma maneira: como um espelho.
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