sexta-feira, 14 de agosto de 2009

O burro de Jurilovca

Os burros abundam neste país. Tal como os camponeses, de resto. Apesar de tudo, há mais cavalos do que burros. Em Jurilovca, uma vila de pescadores à beira do lago Dolovitza (na província de Dobrogea, a sul do Delta do Danúbio), encontrei um burro mais deagraçado que o Balthazar de Bresson. Uma corda, a fazer de arreio, esgaçara-lhe o pêlo e tinha o cachaço em carne viva. A exposição ao sol e à humidade dera origem a uma película lanígera cor de avelã, que lhe cobria parcialmente o dorso em jeito de capote e a cabeça em forma de gorro. A tristeza do mundo num olhar. Aproximei-me dele. Deu um passo trôpego e encurtou a distância. Quando a miséria é tanta nunca temas um estranho. Zurrou três vezes antes do barco partir. Cinco dias depois voltei a Jurilovca. Estava no mesmo lugar, preso ao muro, onde se amparava, à procura de sombra. De regresso a Bucareste cruzei-me com outros burros, a puxarem carroças. Vêm-se muitos cavalos a pastar livremente, nos vales e planícies desta terra, mas nunca vi um burro à solta, pensei. Ao fim da tarde, avistei um, numa pastagem. Agitado, caminhava em círculos, reduzia a marcha e arrancava para um novo círculo.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Procuro amigos

Procuro amigos. Não posso estar o dia todo
a teus pés, a ler-te jornais.
O barco não tem telefone. O telégrafo Morse
está reservado tal como a última bala no cano.
Para ti. Procuro amigos. Aborreço-me.
Bato à porta de Vito Santangelo. Dorme.
Está doente, após vinte anos de peregrinação
pela Sicília, cantando de aldeia em aldeia, empoleirado
no seu carro, as notícias dos jornais
adaptadas em canções e histórias. Contador de histórias ambulante,
dramaturgo e jornalista como eu, mais cinco ou seis
trabalham como ele na Sicília, quis-me
pendurar a eles, contar histórias como eles,
de aldeia em aldeia, mas não me deixaram,
todas as minhas histórias são histórias de amor –
ele apercebeu-se, tu não – o amor
entre um homem e uma mulher não lhes interessa.
Sicilianos! Proletaristas!* Sectários! Deixa-o
dormir, o meu amigo está cansado – digo a mim mesmo e sigo
para a coberta, mais tarde para a cabine de Claude,
Claude Raymond Dityvon, outro obscuro, sabes lá
quem é o Claude, fotógrafo da Viva, agência
de fotografia para a qual tudo é acontecimento,
um gato a passar entre casas numa aldeia,
o pavor de um emigrante, o isolamento duma quinta,
tudo, tudo, tudo o que é não-acontecimento é acontecimento,
tudo o que é não-irlandêz-cipriota-vietnamita é
tão dramático como a crise energética,
Claude não me abre a porta, revela, amplifica
a cabeça duma avestruz escondida na areia – fala-me através da porta
– nunca se revelou o que vê uma avestruz
no grão de areia em que escondeu
o seu olhar apavorado, ela vê ali os castelos
de Barnabé,
exactamente o mesmo que nós, os não-acontecimentalistas,
em cada demencial canto de rua mesmo à frente dos olhos,
dou mais alguns passos na coberta, uma onda leva-me
até à porta do sueco que ganhou o prémio Nobel,
poeta que começou como eu, o não-nobelizado,
o ignóbil, com Whitman, Maiakovski e Edgar Lee Masters.
Quero rojar-me aos pés de Edgar Lee –
não me abre a porta, dorme, bebeu como um sueco qualquer,
diz-me alumbrado pelo sono. Deixo-lhe por baixo da porta uma
mensagem que escrevi no bolso com a mão direita,
enquanto te acariciava com a esquerda – técnica importada
de um biógrafo de Tolstoi que desta maneira apanhou
o velho, escrevendo num cartão que tinha no bolso tudo
o que dizia o profeta –
escrevi ao sueco, sem que tu soubesses, “amigo, trata-se
do antigo lager nazi, transformado em museu,
com hotel, parque de estacionamento e bar –
por razões económicas tem de ser encerrada
a sala em que os carris dos vagões
para o transporte de cadáveres paravam mesmo
à frente dos fornos”. Foi isto que escrevi, enquanto te
acariciava.
Perdoa-me. Volto a ti de joelhos.

RADU COSASHU, 1973, Poveshti pentru a-mi îmblînzi iubita (Histórias para domesticar a minha amada)

* No original: Proletcultishtii, de proletcultísm (do russo proletkul’tovetz), corrente surgida com a revolução soviética, cujos princípios estéticos se reduzem à criação duma cultura do proletariado.

À esquerda, Dona Direita

A família de Domna P. comporta-se com ela um pouco à semelhança de como no antigamente se educavam as crianças: com modos bruscos e exaltados, procurando arrancar à força o que lhes resta da infância.
A doença de Domna Dreapta (Senhora Direita) é um mistério de regressão, com tanto de assustador como de fascinante: toneladas de memória cultural desaparecem progressivamente, abrindo caminho aos selvagens canais sensitivos que a educação durante anos drenara até à sua remoção (quase) completa.
Quando não está ausente, os olhos de Domna Di assemelham-se a um despertar: o reconhecimento de um pormenor é quanto basta para lhe aflorar um sorriso no rosto. Algo acabou de ser (re)descoberto.
Domna Direita vai à consulta e, a meio do exame, sorri para a “domna doctor” (és tu, não és?). O filho de Domna Dreapta recebe visitas em casa e ela sorri para uma das convidadas no jardim das traseiras, não porque reconhece a médica, mas porque usa um chapéu de pano branco semelhante ao seu.
Sempre que Domna Dreapta sai de casa, no rés-do-chão, irremediavelmente vira à direita, na direcção das escadarias do prédio. Então, a sua acompanhante, segura-a pelo braço e puxa-a na direcção contrária, onde fica a porta da rua: “La stînga” (à esquerda).
No Verão passado, Domna Dreapta acompanhou a nora à Gare de Nord (a estação de comboios de longo curso em Bucareste). Quando já se encontrava na fila para a bilheteira, ligou ao marido a propósito de horários. A meio da conversa sobre que bilhetes comprar ela disse: “A tua mãe desapareceu”.
O filho de Domna Dreapta partiu imediatamente para a estação, enquanto a mulher virou à direita e entrou no cais de embarque, onde se perfilam mais de uma dezena de linhas que partem em todas as direcções do país. Comboios a partirem e a chegarem, pessoas a entrarem e a saírem, ocorreu-lhe que se Domna Dreapta entrasse para uma das carruagens arriscava-se a nunca mais encontrá-la.
Correu para o gabinete de segurança e pediu para anunciarem o seu nome através do sistema de altifalantes. E se ela não se lembrasse do seu próprio nome? Pediram-lhe uma descrição física… usava um chapéu branco! Nesse instante, a porta do gabinete abriu-se e o vidro reflectiu um vulto a passar, de chapéu branco. A nora virou-se, mas já não viu ninguém através da janela que dava para a rua.
Domna Dreapta estava sentada no banco de trás de um carro particular, quando foi encontrada. O dono do carro, que tinha acabado de arrumar as malas na bagageira, estava tão confuso quanto ela, e não soube explicar como é que ela tinha ali aparecido. A única conclusão para esta história é que, por uma vez, Domna P. não virou à direita. Saiu pela esquerda e foi parar à rua.

Pseudopolaróides

O meu amigo Nuno escreveu: “Um senão: Seria interessante colocares uma fotografia ou outra.”
O meu amigo Jorge escreveu: Devias ir lá pondo umas imagens, um dia destes, quer-me parecer.”
Seguem-se algumas polaróides que tirei durante os cinco dias em que estive de férias em Portitza (Portinha), Grindul Cosha, uma linha de costa que fica entre o complexo de lagoas e lagunas do Delta do Danúbio e o Mar Negro:

Homem de bigode, óculos e chapéu, com a pila a espreitar sob a bainha da camisa. Nas mãos segura um livro. Os pés estão no mar.

Rapaz, perseguido por uma matilha de cães, salta da sua bicicleta (que abandona às bestas) e, no mesmo movimento, pula a cerca do restaurante.

Mulher nua fuma cigarro no mar com as mamas a boiarem à superfície da água.

Família joga às cartas na praia, debaixo de um toldo tapado por um mosquiteiro.

Pescador, num dos canais do lago Golovitza, usa rato do campo como isco. O rato sabe nadar e não mergulha.

Menina pendurada no ramo duma árvore, com a cabeça para baixo, conversa com amiga, de pé, no chão (o cone que tem na cabeça é um efeito do vento; é apenas um lenço).

Casal joga ténis em court sem rede protectora; o cão apanha as bolas.

Nuvem de mosquitos ao pôr-do-sol, em frente aos balneários Ignoramos se os veraneantes cobertos com toalhas de praia buscam refúgio nas retretes, ou pretendem tomar duche.

Garrafas de cerveja enterradas na areia, junto à linha de rebentação (visíveis pelas caricas).

Corvo-marinho (Phalacrocorax carbo) na praia, abre as suas imponentes asas negras na direcção do mar e vira a cabeça para o lado, oferecendo o perfil do seu bico à jovem fotógrafa que se encontra por trás.

Família arruma a bagagem no atrelado do tractor que os levará à praia, para montarem a tenda.

Nadador agita as mãos à superfície das águas turvas do Mar Negro, depois de ser surpreendido por uma medusa.

Os jovens empregados do (único) restaurante de Portitza riem-se de um casal de clientes, sentado debaixo de um salgueiro-chorão (que depois do fim de tarde começa a pingar dos seus ramos umas gordas gotas cor-de-sangue-seco).

Pescadores amanham o peixe, que apanharam de manhã, junto à linha de rebentação. Os buracos na areia (de onde sai o fumo, à frente das tendas) servem de braseiros para os grelhados.

Casal de nudistas na praia constrói esculturas de calhaus empilhados. Na posição de cócoras, a genitália de ambos os sexos, quando o sol aquece e os músculos descontraem, tem o charme de tudo quanto vive pendurado (abana, mas não cai), por oposição à fileira de calhaus empilhados, num equilíbrio provisório (tem-te-não-caias), até à próxima rabanada de vento.

Homem toma duche na praia, junto à sua tenda, ao anoitecer. No saco preto pendurado por cima dele, de onde escorre a água, pode ler-se “solar system shower”. O dispositivo consiste em encher pela manhã o saco de água, que aquece depois durante as horas de sol.

Coro de mulheres Lipovani (descendentes duma seita da velha ortodoxia russa que no séc. XVIII se instalou no Delta do Danúbio) dança na praia de Portitza em frente a uma fogueira. O espectáculo tem o seu quê de disputa: metade do público rodeia as mulheres Lipovani; a outra metade circunda a fogueira; os poucos que se posicionaram ao meio, aproveitam para aquecer os traseiros (estava uma noite fria). Por trás, às escuras, as ondas são ignoradas.

Pormenor do areal da praia de Portitza, que consiste maioritariamente em conchas, búzios e caracóis-do-mar, ainda num estado primário de decomposição.

Pôr-do-sol no lago Golovitza, sobre uma cortina cinzenta que paira nos montes de Dobrogea; a pseudopolaróide ao lado serve de díptico, e alcança na direcção do lago Razim: uma linha de luz, tão vermelha como a do sol, atravessa uma colina, sob uma nuvem de fumo.

Três veraneantes, numa gaivota a pedais, pescam num canal. A curiosidade reside no facto das canas de pesca apontarem na direcção do canavial. As margens do canal estão cobertas de pequenos nenúfares em flor. Camuflados entre as folhas, os sapos assistem, em sorrateiro silêncio.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Chamas

6 de Agosto. Ser surpreendido por um instante de beleza tem o efeito duma agulha espetada entre duas vértebras: antes de sentir a dor, temos um calafrio; antes do calafrio, fica-se imobilizado.
Um grupo de bombeiros sorridentes, devidamente equipados e encapacetados, posa para o retrato. Dez estão de cócoras, em duas filas de seis e quatro. Os restantes nove, numa terceira fila, estão de pé (as mãos nos ombros dos colegas denotam um fraternal espírito de equipa). Por trás, um alpendre emoldura o quadro humano. Árvores desfolhadas e arbustos frondosos contornam a casa. O telhado está em chamas.
Mostro à Mihaela a fotografia, que descobri no blogue Coisas do Arco da Velha. Ela responde-me com um ditado romeno: “,tara arde, babele se piaptana” (o país arde, as avozinhas penteiam-se).

Tremor

5 de Agosto. Estava deitado no sofá, a cozer a ressaca causada pelos três vinhos diferentes da noite anterior. Às 10:49 uma tontura, acompanhada de náusea, fez-me pensar que ainda estava embriagado. Sucedeu-se uma brisa de calor vinda da porta da varanda e um balouçar do sofá, a 5,5º na escala de Richter.
9:30 foi a hora a que começou o terramoto de 4 de Março de 1977, em Bucareste. Domna V., correu pelo apartamento à procura do seu gato e desceu as escadas. Quando chegou à rua e o edifício começou a desmoronar-se, lembrou-se do bebé, que ficara no berço, a dormir.
Em 2007, após trinta anos de recolhimento no bairro para onde se mudou após o desastre, Domna V. atravessou Bucareste para ir a uma consulta. À excepção de alguns edifícios desconjuntados, não reconheceu a cidade. Envelhecidos e maltratados, haviam sobrevivido a três décadas de transformação urbana e tremores menores (um pouco à semelhança dos livros empilhados no chão. Sem lugar nas prateleiras, lá se vão aguentando tem-te-não-caias, aos tropeções de quem passa distraído).
Pergunto a Mihaela, qual era a profissão de Domna V. “Professora de literatura romena.” E a do marido? “Trabalha na construção civil.”