segunda-feira, 31 de janeiro de 2011
a dívida ou a dúvida
Premiando a sua vocação para participar em conversas para as quais não foi convocado, nem é provido de currículo adequado, Jaime Roque recebeu um castigo exemplar da mãe, que o convidou a ficar cinco minutos ao canto da sala, virado para a parede. Jaime Roque obedeceu, na condição de ficar de costas para a parede, já que o telejornal estava a começar e a televisão se encontrava no canto oposto. Sopesando talvez os prós e os contras duma possível futura carreira política, onde os seus palpites não seriam certamente postos a um canto, fixou a atenção no telejornal, onde a palavra “dúvida” era negada pelo primeiro-ministro. Ao mesmo tempo, na sala, a palavra “dívida” era afirmada, em tom de ameaça, pela mãe, em viva discussão com o pai. Da mesma forma que não entendeu o motivo da ausência de dúvidas, também não percebeu a razão dos pais terem dúvidas, o que não o impediu se sentir-se inteiramente satisfeito. De acordo com a sua visão materialista, era preferível ter, a ter em falta, pelo que continuou a assistir ao noticiário, condoído com as insuficiências da carreira politica e genuinamente orgulhoso com a privilegiada abundância da vida domestica, onde nem dívidas faltavam, apesar da sua posição não ser a mais confortável. Mas seriam os pais, detentores de dívidas, igualmente proprietários de outros mundos e fundos tão penosamente em débito por parte da classe politica? “Ó pai”, perguntou Jaime Roque do seu canto, “tu tens muitas dívidas não é?” O pai concedeu, num gesto de falsa humildade. “E dúvidas, também tens dúvidas?” Influenciado pelo exemplo governamental, o pai ergueu o queixo e respondeu que não, dúvidas era coisa que nem ele tinha. Jaime Roque ficou perturbado, virou-se para a parede, reflectiu por mais alguns segundos e tomou uma decisão. Abandonando o seu castigo, estendeu a mão ao pai e puxou-o na direcção da porta. “Vamos comprar dúvidas, antes que fechem as lojas.”
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domingo, 30 de janeiro de 2011
fantasia em vento menor
Encontrando-se Roberto De Deus Silvestre e Vera São Roque agachados nas cadeirinhas de anões do seu chambre de visite, na companhia da irmã desta e do seu namorado, em amigável convívio, o estado de torpor desenvolvido com a ajuda de um estranho coquetail de amoras frescas, erva autóctone e pepinos salgados foi de ordem a mantê-los quietos, ininterruptamente, por um tempo não inferior a três horas e três quartos da dita. Findo esse tempo, em que a conversa decorreu com a fina transparência de um fio de nylan, ocorreu a uma das partes encomendar-se a seguinte questão: Estando há tanto tempo aqui sentados, que estamos nós a chocar? Porquê, somos galinhas? Não, mas temos algo no cu para libertar. Com licença, senhores. Cara amiga, sonhais, sonhais, nem tem que haver piada, quando é de dá-los, não há dever nem temer, avança-se e os outros que se cuidem, depois estamos cá nós para o comentário. A peidaria assemelha-se à época de cio entre as gatas, se é de miar, pois que miem, ninguém pode levar a mal pelo bem que sabe ao outro. E se é de rosca, pois que seja. Descasca tremoço. A mim tanto se me dá como se me deu, se é de dá-los por ti, dou-los eu, antes vindos de mim do que vindo pelo do teu, que é mal cheiroso e cabeludo. Anda, anda, querida solta-los é a todos, mas deixa um para amanhã. Olha-me este, quer a série por episódios, não te chega já os cromos que tens lá em casa. Cromos! Quem anda nos cromos e o que vêm a ser tais cromos? Não sabes tu outra coisa! Recorta-os do jornal e depois diz que é para o filho. O filho! Sabe lá ele naquela idade, a criança ainda agora começou a andar, tem mesmo vontade de dar chutos na bola, o que ela quer é não cair… Estes novos agora não são contemporâneos, são como os de antigamente. Novos e de antigamente? Ui, este saiu fino. O vento está de feição. Abram essa janela! Está aberta, nada a fazer! Está a sair aos borbotões, fujam. À varanda. Cabemos lá todos? O céu que nos areja. Tal é o aroma, saiu discreto pelo gargalo, mas ganhou corpo vendo-se ao fresco. Tem bouquet. É frutado. Ligeira adstringência. Francamente! Ora essa, à nossa saúde! E que viva muitos anos. Calou-me na fama. Vinha com chama, vinha. Será perigoso? Lá gasoso... Arredondado. Veio de lado. Vai de bolina. Já acalmou. Tantas cores. Foi dos cogumelos. Que chapelada. Que pivete. Que barraca. Boa noite. Juízo na cama. Isto agora nem de corneta. Pouco barulho.
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sábado, 29 de janeiro de 2011
lição de política
Filhos ingratos, Joana e Jaime Roque recusaram-se ontem a sair à rua na companhia da mãe e a participar na ronda de compras, preferindo as lições do mestre Vaquinhas. Por trás da porta do escriptorio – encabeçada por uma placa de ferro em contornos montanhosos, onde o seu nome completo figurava por leitosas letras esmaltadas, sobre um fundo azul índigo – a cavernosa voz matutina do mestre Vaquinhas pronunciou as seguintes palavras: “A lição de hoje é dedicada à classe política. Tremei, rebeldes infiéis apartidários. Haveides de querer fruta e não haveides de comê-la, o partidarismo político é um osso duro de roer, sem caroço nem tremoço.” Joana e João correram para a mesa do escriptorio, sentaram-se nas cadeirinhas de anões e aguardaram. Penteado, escanhoado, engravatado, encamisado, engomado, enchumaçado, escovado e engraxado da cabeça aos sapatos, mestre Vaquinhas levantou-se do cadeirão (que estava de costas para a mesa dos alunos), levou um par de indicadores aos lábios, varreu a tribuna com as pestanas a meia haste e depois de um gelado sorriso de campanha fixou o olho direito na audiência, enquanto o esquerdo mirava um molhe de folhas brancas (no cimo do qual se encontrava a lista de compras, esquecida por Vera São Roque). “Quem foge da protectora saia plissada partidária fica condenado à errância mais irada, porque estando certo fica errado e errando, não pode estar certo. Julgueis porventura encontrar-me eu a judiar com as vossas ignaras cabeças inocentes? “Siim”, responderam os irmãos. “Insolentes”, replicou de viva voz o mestre Manoel Rodrigues Vaquinhas. “Que sabeis vós do verbo judiar?” Os irmãos pousaram a cabeça no tampo da mesa (ou melhor, Jaime imitou a irmã nesta posição reflexiva e que para ele constituía um gesto de envergonhada sujeição). “A política é a ferramenta do sentido de estado, e o estado, para o político (podem olhar-me no papel de ministro, para causar mais efeito)… Sou eu! Este é o meu corpo, bebei da teta do Vaquinhas. Aprendiz Jaime, quereis arranjar trabalho? “Não.” “Pudera! E emprego, satisfá-lo o emprego do tempo?” “Sim.” “Espertalhão às dúzias. E tu aprendiz Joana, diga de sua mercê. Pretende dar de comer aos pobres e os ricos que trabalhem?” De queixo tremido e dentes a baterem, Joana agitou a cabeça em angustiado assentimento. Os lábios ficaram roxos. “Ó funesta, ó pécora! O estado, doravante”, e apontou com o dedo, “sois vós!” Desatando aos berros, Jaime e Joana saltaram das cadeiras, abriram a porta de casa e desceram os degraus dois a dois. O mestre aproximou-se da janela e franzindo o sobrolho contemplou duas crianças muito atinadas que, à falta de mãos livres, se agarraram à cesta de compras da mãe.
sexta-feira, 28 de janeiro de 2011
o pesadelo
Joana e Jaime acordaram esta manhã exactamente à mesma hora (5h50). Encontrando-se deitados nas suas camas, com as cabeças enterradas nas almofadas, o estado de pavor em que se encontravam agravou-se ao depararem um com o outro. “O mano está a churar”, dizia a Joana e chorava. “A mana está a churar”, dizia Jaime, que chorava também. Convidada a explicar-se, Joana ergueu a cabeça do travesseiro, contemplou o irmão e voltou a afundar a cabeça na almofada. “Ele moreeu e está a churar.” E está a chorar porquê, chorona irmã? “Porque moreeu.” Escuta lá, ó mariconço, lá porque moreeste isso é razão para chorar? Moreeste, paciência. “Nããão”, resmungou o Jaime, “a mana muureu, eu empurei-a no escuro e agora ela está muuito muurida.” Jaime ergueu a cabeça do travesseiro, contemplou a irmã (cabeça afundada na almofada), afastou as lágrimas dos olhos, sentou-se na cama, engoliu o choro, deu um soluço e continuou a chorar. A irmã olhou para ele e soluçou também. “Não moreeste?”, perguntou-lhe Joana. “Nããão”, resmungou o Jaime. “Tu muureste e disseste que eu tenho de fazer de conta que estás viva.” E o Jaime, quem é que faz de conta que o Jaime está vivo? “Ninguém porque eu empurei a Joana no escuro e tenho de ser eu a fazer de conta.” É verdade o que o teu irmão está a dizer Joana, já não podes fazer de conta que és a Joana? “Nããão, só posso fazer de Jaime, ele moreeu e já não vem mais.” Fica o assunto resolvido: O Jaime faz de conta que a Joana está viva e a Joana faz de conta que o Jaime está vivo. Está bom assim? “Nããão”, respondeu a Joana e voltou a chorar. “O Jaime não pode fazer de conta porque moreeu”. Mas olha que ele diz que consegue fazer de conta. Joana levantou-se da cama e olhou para o irmão, ainda assustada pela sua presença. “Verdade, fazes mesmo?” O irmão enfrentou-a, ainda a medo, empurrou a almofada para o chão, pôs os pés em cima da almofada e respondeu-lhe: “Sim.” Joana voltou a deitar-se, olhou para o tecto, depois olhou para debaixo da cama do irmão e suspirou. “E se eu não saber fazer de conta? Eu quero fazer de conta que sou a Joana.” Jaime enfiou a cabeça entre os joelhos e rolou de volta ao centro da cama. “A Joana está matada. Eu faço de conta que a Joana está viva e a Joana aparece e eu fico no escuro.” Os estores da janela abriram-se, uma luz rosada entrou no quarto e devorou a sombra dos irmãos, projectada pelo candeeiro da mesa de cabeceira, ao lado do qual se encontrava um cavalo, montado por um guerreiro empunhando uma lança. Jaime voltou a adormecer na cama, sob a mão que a mãe lhe impôs na nuca, e Joana agarrou-se ao pescoço do pai, temendo regressar a um sono onde provavelmente reencontraria o irmão sem vida.
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lição de literatura
Mestre Vaquinhas estava sentado no chão com o queixo em cima do tampo da mesa. Sentados em cadeirinhas proporcionais ao seu tamanho de anões, a Joaninha (muito direita, olhos escancarados, lábios apertados um no outro, em sinal de certeira concentração) e o Jaimito (rabujento, sonolento, macilento, pálpebras de peneirento). O mestre dirigiu-se à janela da sala de aula e mirando-se no reflexo do vidro espremeu um quisto sebáceo no pescoço. Jaimito fez uma expressão de nojo e a cabeça tombou no tampo. Acto contínuo, Joaninha deu um caldo no irmão para se manter direito. “A literatura francesa é a expressão mais alta e jamais atingida por qualquer outra língua. As causas do seu aparecimento, desenvolvimento e amadurecimento foram as conquistas napoleónicas, o enriquecimento das classes sociais, cumuladas de herdeiros ociosos, e relações humanas em trânsito, desejosas de impressionarem o estrangeiro incauto pela opulência da aparência, pelas meias das grandes ideias, pela beleza da sua fineza, pelos excrementos dos bons sentimentos e pela inutilidade da sua musicalidade. Também se deu a decadência, motivada pela perda da inocência, mas esta surge em anexo.” Contemplando uma prateleira de livros, o mestre puxou um volume pela lombada e voltou a pô-lo no lugar, limpando às calças o pó que se agarrou aos dedos. “A força motriz da produção e recepção literária concentrou-se na burguesia, mas os valores, o sentido de excelência, de grandiosidade, o requinte do estilo, foram uma directa influência da aristocracia em pousio”. Perante a expressão de alarme de Jaimito, desperto do seu devaneio infantil por via dos z a que o seu ouvido era particularmente sensível, Mestre Vaquinhas explicou-se: “Zio, pousio. Não havendo guerras, os nobres passeiam-se por salões e jardins. O aristocrata exibe… zibe… exibe as boas maneiras, o filho da alta burguesia… zia, burguesia observa pois é dotado pelos sentidos (ver, ouvir, cheirar, tactear, degustar) e carece de saúde para o trabalho. Quanto aos pretensiosos admiram-se, porque estão cheios de inveja e ambicionam parecer comme il faut… Joaninha, pare de rabiscar e ouça apenas… Jaimito, tire o macaco que meteu debaixo da mesa e volte a pô-lo no nariz… O aristocrata tem joie de vivre, o filho anémico tem sensibilidade e a cambada vai atrás. O ser excepcional é solitário, o ser vulgar é gregário… Jaimito! não seja sectário! Só o talento está em condições de reconhecer que é na vulgaridade que os actos de excepção acontecem. O homem de virtude aborrece-nos, enquanto aquele…” Joaninha fez uma expressão acabrunhada. Jaimito esfregava uma borracha com sabor a morango no nariz. O mestre deu um caldo em Jaimito, que poisou a borracha, fez uma vénia a Joanita e retomou o discurso: “… enquanto aquela a quem não se reconhecem qualidades poderá sempre vir um dia a surpreender-nos. Ócio, tédio, desejo e exibicionismo são as etapas que antecedem o prazer… zer, prazer literário. Em todas estas etapas sentimos uma atracção pela parcela de divertimento a que temos direito. A aula acabou, vão brincar lá para fora.”
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quinta-feira, 27 de janeiro de 2011
na maternidade
Jaime Roque, dois quilos e tal de tripas e ossos, nasceu esta madrugada no serviço de maternidade do hospital pediátrico, em Calem. Pesa uma vergonha de 2043 gramas, distribuídas por uns razoáveis 43 centímetros e, na opinião da brava parturiente sua mãe, é provido de uma “linda cabeça” de aspecto escalpelizado, uma vez que nem trazia um cabelo para mostra. De cor violácea e pele coberta por uma densa rede de veias roxas e azul esverdeadas, a gordura encontra-se quase totalmente alojada na boca, no nariz, nas pálpebras, nos zigomas e numas orelhas cujos lóbulos são mais rechonchudos do que o seu rabo desprovido de nádegas. Vítima de parto natural, parece ter sido atropelado, espremido, torcido, espalmado para caber dentro de um envelope, mandado contra a parede e por fim sugado através do gargalo de uma garrafa de anis (quiçá protegido por um capacete, uma vez que a sua cabeça é uma coisa linda de ser vista). Depois de ter sido pesado, medido e limpo de mucosidades, Jaime Roque deu alvíssaras ao mundo dos terráqueos, não com um berro nem com uma gargalhada, mas com um pum silencioso e traiçoeiro que desfaleceu o ânimo na competente se bem que surpreendida equipa médica e provocou uma rápida evacuação da sala (a mãe fez um sorriso amarelo e tombou a cabeça para o lado). Depois de assistir ao parto, o pai aproveitou para fugir e refugiar-se nos sanitários, onde mal teve tempo de baixar as calças. Chegou-lhe uma diarreia tão vulcânica que findo o serviço viu-se com as nádegas sarapintadas de gotículas amarelas (felizmente, havia bidé). De regresso à sala de parto, já lá se encontravam os avós e tios a granel. Um furo no serviço de segurança tinha permitido a entrada da família por inteiro, rodeando a mãe e o filho numa desopilada celebração das qualidades fisionómicas do neófito, imediatamente identificadas e acto contínuo inventariadas, de acordo com a ascendência, o cruzamento de linhas de mãe para filho, de avô para neto, de tia para sobrinho por via de uma efeminada tradução da herança do pai, de avó para neto por via do seu pai que era sobrinho de um tio cuja mãe era igualmente uma beldade em pequenina. Mas eis que a parte interessada, o crianço espontaneamente adorado, decidiu contribuir com um suplemento de sua graça libertando um sumido mas inequivocamente sonoro “pô”, adormecendo logo a seguir. Espantada por um tão precoce talento para a expressão silábica, a família evacuou a sala. “É de gancho”, congratulou-se a tia, entre sorrisos, lágrimas e caretas bem impressionadas. O avô, muito sério, cofiou o bigode, ajeitou a gravata e comentou com a irmã: “Qual pô nem meio pô, o que ele disse foi porra!”
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quarta-feira, 26 de janeiro de 2011
o incêndio
Vera São Roque, 20 anos, empregada de balcão, grávida de um dia, e Joana João Roque Silvestre, a filha de dois meses, salvaram-se ontem de morrer asfixiadas no quarto onde ambas se encontravam a dormir, num apartamento em Calem. Os corpos foram encontrados inertes pelo pai da criança, que tinha casado com a mãe na véspera. Roberto de Deus Silvestre, 20 anos, jornalista doméstico, estava na casa de banho quando o incêndio deflagrou. A chama de uma vela que tinha sido deixada acesa pegou fogo ao vestido de noiva, rapidamente enchendo de fumo o quarto, cuja porta estava fechada. Na tentativa de apagar as chamas, Roberto de Deus Silvestre sofreu queimaduras superficiais nas mãos e no rosto, tendo sido assistido no local por um piquete de paramédicos, chamado ao local pelo corpo de bombeiros voluntários, que acorreram ao acidente na sequência de um telefonema de uma vizinha que morava no andar de baixo. Lepondina Só Santos, 73 anos, viúva reformada, depois de quatro horas a rebolar na cama, vencida por uma insónia, tinha-se levantado para beber um copo de água e tomar um comprimido de valeriana que lhe tinha sido recomendado pela sobrinha naturista. Encontrava-se à janela a fumar um cigarro quando viu uma “bola de fogo” a voar (não conseguindo extinguir as chamas do vestido, Roberto de Deus Silvestre optou por mandá-lo pela janela). Orlando Nabeiro, 55 anos, funcionário de uma repartição de finanças, de baixa médica, morador no prédio em frente, escutou “umas vozes” e como andava desconfiado de há muito tempo “não se falar numa onda de assaltos”, aproximou-se da janela para observar um “gatuno a pegar fogo ao corpo de uma mulher e depois a mandá-la janela fora”. Imediatamente avisou a polícia da ocorrência, cujo “inexplicável atraso” o deixou “muito indignado”. Carolina Piteira, 62 anos, viúva médium, que mora no andar de cima, tinha acabado de despedir-se do marido, que lhe anunciara o regresso de nossa senhora à terra para celebrar a eternidade das almas (“mas só das boazinhas”). Ao fechar a janela viu “uma linda figura”, “toda iluminada”, a “descer do céu em grande velocidade”. “Fez uma péssima aterragem, infelizmente”, lamentou Carolina Piteira: “Não fosse o meu falecido Martinho avisar-me antes e teria pensado tratar-se de um demónio. A coitadinha ardeu que nem um pau de fósforo. Uma desgraça.” Examinadas no serviço móvel de urgências e cuidados intensivos, Vera São Roque e a sua filha Joana foram consideradas livres de perigo, mas não do susto que provocaram entre a vizinhança.
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terça-feira, 25 de janeiro de 2011
1º
No dia 24 de Abril, meia dúzia de minutos antes da meia-noite, na paragem que antecede o tabuleiro da ponte sobre o Tejo em direcção a Almada (frequentada por agentes da brigada de trânsito em operações stop), Vera São Roque, empregada de balcão, pariu espontaneamente com um mês de antecedência uma fedelha que viria a ser registada no dia seguinte com o nome de Joana João Roque Silvestre. O pai da criança conduzia um velho Fiat 127 branco com uma poça de água sob os pedais, resultado duma infiltração no ventilador, e com uma folga no volante que obrigava o condutor a girá-lo sensivelmente cinco centímetros antes das rodas dianteiras corresponderem com uma mudança de direcção. Depois de jantar no Monte Abraão em casa dos pais da futura mãe, o casal dirigiu-se ao parque de Monsanto. Encontravam-se os dois por cima um do outro a testar a qualidade das molas no banco de trás quando à moça lhe rebentaram as águas. Descendo pela Duarte Pacheco numa faixa intermédia, Roberto de Deus Silvestre foi surpreendido por uma carrinha que se atravessou à frente. Para evitar a colisão, desviou no sentido oposto, em direcção à ponte. Não fosse o descontrolo causado por dois imprevistos sucessivos (a namorada que entra em trabalho de parto no momento em que dela esperava um orgasmo; a iminência de ver-se obrigado a atravessar o rio quando urgia chegar à maternidade na direcção oposta) e lembrar-se-ia que lhe restava um desvio à esquerda, na direcção da Praça de Espanha. Roberto de Deus Silvestre ainda viu a placa informativa no último instante, mas a sola molhada do sapato escorregou no pedal do travão e a folga do volante traiu-lhe a direcção, acabando a resvalar pela berma, que lhe trilhou a roda dianteira do lado esquerdo. Quando chegou à paragem antes da ponte tinha o pneu vazio. A paragem antes da ponte tinha um acesso ao bairro da Tapadinha (reservado às autoridades) e Roberto de Deus Silvestre apressou-se a mudar a roda, de forma a tomar de urgência esse caminho que o faria descer até Alcântara e daí subir a Avenida de Ceuta, em direcção à maternidade. Encontrava-se a desapertar as porcas quando a namorada abriu a porta e ficou com as pernas no ar. Roberto de Deus Silvestre só teve tempo de despir o casaco e estendê-lo à frente dela. A parturiente tombou para fora do carro, pôs-se de cócoras e levou as mãos ao chão. A criança nasceu tão naturalmente como um fruto que se desprende dum ramo de árvore. Nas duas margens do rio o fogo de artifício coloria o céu*. Depois dum intervalo sem movimento, o trânsito voltou a cruzar a ponte. Roberto de Deus Silvestre conseguiu interromper a marcha dum carro, onde seguia um grupo de amigos a caminho de Lisboa, três dos quais ficaram apeados para dar lugar à ensanguentada recém-nascida envolvida num casaco enlameado, à sua esvaída mãe de cabeça tombada no ombro do parceiro e ao estupor no rosto do pai, arrepelado em mangas de camisa e a tremer do queixo no banco de trás.
* Joana Severo nasceu a 26 de Abril, mas Joana Silvestre nasce na véspera do 25 de Abril, certamente para ser bem-vinda pelo fogo de artifício que celebra a Revolução de 74.
* Joana Severo nasceu a 26 de Abril, mas Joana Silvestre nasce na véspera do 25 de Abril, certamente para ser bem-vinda pelo fogo de artifício que celebra a Revolução de 74.
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segunda-feira, 24 de janeiro de 2011
frOnteira óptica
Os primeiros anos tomam conta da memória
Disfarçados de imitações da Primavera:
Sementes rebentam sem terra que as proteja;
Ramos agitam-se onde o ar não é pesado;
Folhas verdes prestes a voar
Que o sol, dourando, ajuda a desprender.
Segue-se o curso de passeios outonais por
Carreiros, carreiras, retratos e conquistas:
Mesmo a árvore de tronco inclinado
Acabará ateada pela lenha que dela tomba
Porque mais acima o vento é frio
E a vocação da chuva é erguer-te das cinzas
Disfarçados de imitações da Primavera:
Sementes rebentam sem terra que as proteja;
Ramos agitam-se onde o ar não é pesado;
Folhas verdes prestes a voar
Que o sol, dourando, ajuda a desprender.
Segue-se o curso de passeios outonais por
Carreiros, carreiras, retratos e conquistas:
Mesmo a árvore de tronco inclinado
Acabará ateada pela lenha que dela tomba
Porque mais acima o vento é frio
E a vocação da chuva é erguer-te das cinzas
o jornal Lá de casa
Afixado no painel de cortiça pendurado na cozinha, Fronteira Óptica é o jornal doméstico em que Roberto de Deus Severo assume o papel de cronista do quotidiano familiar. Iniciadas com o nascimento de Joana, as suas crónicas constituem paródias ao modo de expressão e às técnicas de escrita jornalísticas, mas também à sua agenda: que temas podem ser considerados de interesse geral no contexto duma família humilde? Reforçando a vocação ficcional de qualquer narrativa, mesmo quando ‘baseada em acontecimentos reais’, RDS substitui o apelido austero da família, Severo, por outro igualmente simbólico: Silvestre. A troca é uma homenagem à fábula medieval duma mulher que se traveste de homem para poder combater nas cruzadas, que RDS descobriu num filme de João César Monteiro, com a personagem de Silvestre a ser interpretada por Maria de Medeiros ainda adolescente.
Joana Severo: “Durante a nossa infância, chamávamos-lhe o jornal do o-ó, não por adormecermos com ele a ler-nos as suas histórias (também acontecia), mas porque o ‘o’ de fronteira e o ‘ó’ de óptica, para nós duas letras diferentes, foram a primeira coisa que aprendemos a ler. Mesmo quando alterados pela paródia que tantas vezes me exasperava, os relatos desses episódios acabaram por nos dar uma consciência do que fazíamos. A opinião de terceiros era-nos indiferente, mas não o efeito que podíamos causar.”
Infelizmente, os textos redigidos em duas décadas de vida familiar perderam-se na sua grande maioria. O computador, que comprara em segunda mão, foi atacado por um vírus que lhe apagou a memória do disco rígido sem que ele tivesse feito cópias e nos primeiros anos usava ainda a sua velha máquina de escrever. Os textos de Fronteira Óptica eram tratados como dum jornal de grande tiragem se tratasse: perdida a actualidade, boa parte deles acabaram no lixo e muitos perderam-se no meio de outros papéis arrumados ao acaso. “Só com o desaparecimento do meu irmão se tornaram preciosos.”
Passado e futuro são concomitantes, interceptam-se mutuamente e dão lugar a curvas, buracos e camadas de um tempo paradoxal. Fronteira Óptica constitui-se no exercício da sua apropriação. As crónicas da primeira série não foram escritas a pensar num livro, mas os textos em que RDS faz o luto pelo filho vêm iluminar de forma arrepiante o alcance de um título inventado vinte anos antes. Fronteira Óptica representou uma estratégia de educação dos filhos: as histórias deles são mais importantes do que a imagem mediatizada das histórias dos outros. A morte de Jaime Roque vem reabrir o vazio do espaço doméstico e o universo televisivo por ele deplorado serve-lhe as imagens de que necessita para reanimar a sua memória (ver A arte perdida da fumigação e A ilha do povo Dogonutee). Joana Severo: “A imagem mais chocante que guardo do meu pai durante o último ano é vê-lo em frente à televisão como que sob o efeito de um sedativo. Quando o Jaime era vivo gostava de sentar-se ao lado da televisão a olhar para nós e só espreitava para o ecrã quando algo em nós o deixava curioso.”
Os retratos de João Silvestre retomam o formato da crónica e descrevem episódios que estiveram na origem de fotografias de reportagem (só três destas fotografias existem mesmo, a imaginação do autor completa o portfolio). Mas para além da terceira série de Fronteira Óptica, onde o recurso à fotografia se torna temático, há uma relação hipnótica com a imagem no seu trabalho que me assusta. A hipnose “é um estado de sonolência provocado por artifícios de sugestão durante o qual o hipnotizador exerce um controlo considerável sobre a vontade e o pensamento.” É sob este estado que o autor parece querer deixar quem o lê.
O efeito hipnótico da fotografia cria a ilusão de que o presente está a ser moldado pelas condições criadas no instante em que a imagem foi produzida. A fotografia enquanto cavalo de Tróia do passado. Quando os dados da história não existem, imprimem-se os pormenores contingentes da imagem que lhes dá sombra. À semelhança dos retratos, a ideia que fazemos do passado corresponde a uma imagem fixa, mas o presente, à semelhança de quem o habita (e da memória que os acompanha) encontra-se em movimento. Permitam-me um interlúdio pessoal.
Aos doze anos fiz uma sessão de polaróides com o meu irmão na piscina dos bombeiros da Agualva. Na primeira fotografia tentei captá-lo a mergulhar: ele desapareceu, deixando atrás de si uma língua de espuma. Na segunda tentei retratá-lo em busto à beira da piscina, mas um colega vindo de trás emergiu da piscina: lá está ele, a zombar para a câmara, com o meu irmão desfocado a virar-se e a touca a escorregar-lhe pelo cabelo acima. Já em casa dos meus pais, na noite de consoada tentei imortalizar a minha tia Alice numa poltrona de camurça na sala de jantar dos meus pais. O meu irmão, que teimou em esquivar-se na sessão que lhe dediquei, pulou da cadeira em que estava sentado (fora do enquadramento) e saiu da sala. Tapado pela enormidade do aparelho, um modelo da Kodak que me tapava integralmente a cara, sem deixar qualquer perspectiva para além do visor, cliquei. O resultado final é o eclipse da minha tia, a seguir o movimento de fuga do meu irmão, fixado em plena correria.
RDS parece deliciar-se inteiramente com as incoerências que definem uma idade transitiva, apaixonada pela infância e incapaz levar avante uma vida independente. A sua geração, ou pelo menos a parte que lhe importou, é composta de adolescentes-tardios seduzidos pela aura de falhanço e sobre o assunto eu teria muito por onde passear. A magia é a ciência dos sonhadores (“I am a good man, I’m just a bad wizard”, explica o Feiticeiro de Oz, depois de ser apanhado por trás dum biombo no sonho de Dorothy). Observemos a magia que se eleva nos gestos daquele indivíduo, aquele ali, independentemente das gaiolas em que terá de ir debicar.
Já viram, podemos continuar? Já aqui falei do subúrbio, do imaginário adolescente, do permanente movimento entre espaço e tempo das suas personagens e da imagem fotográfica. São os eixos do seu trabalho. Existe ainda um quinto elemento, do qual só me apercebi quando andava entretido a pescar passagens em que a sua mulher, Vera São Roque, aparece. Trata-se da personagem-sombra. Eu sei que deveria ao menos explicar o que entendo por “personagem-sombra”, mas o facto de estar seguro da sua existência não me torna mais qualificado para propor uma definição.
A mãe da Joana e do Jaime é uma personagem esquiva nas crónicas familiares de Fronteira Óptica e parece ser também a única com capacidade para “penetrar aquele espaço exclusivo” a que RDS alude na penúltima crónica dos retratos de João Silvestre, e que tanto parece interessar ao autor.
"Tirei a fotografia à entrada do quarto e por isso a minha mãe, que estava sentada ao pé da janela, está fora de campo, embora a sombra dela seja visível aqui na parede do lado direito. Não se nota bem por causa do jarro com gladíolos que está em primeiro plano, com estas flores mais descaídas a fazerem uma espécie de telhado sobre a cabeça do meu irmão ."
É isto uma personagem-sombra. Alguém que está presente e não é mais do que uma silhueta atrás de um arranjo de flores (afinal acabei mesmo a propor uma definição).
Nota final a propósito da organização: os textos originais de Fronteira Óptica foram redigidos entre 1987 e 2008. Joana Severo recuperou 142 textos em papel com relatos da família, seis dos quais se encontravam na pasta Trabalhodescrita, no computador pessoal do autor. RDS incluiu 22 desses textos na versão definitiva, que deixou na pasta Obrincompleta (estão incluídos na primeira série de Fronteira Óptica em versões reescritas); os textos da segunda série, igualmente encontrados na pasta Obrincompleta, eram desconhecidos da família; quanto aos da terceira série tinham sido enviados à filha, por ocasião do seu vigésimo-segundo aniversário; por fim, Apostasia. Penúltimo texto da segunda série dedicada ao filho, optei por excluí-lo deste volume. São pequenos ensaios teóricos que não se enquadram nos textos que compõem o volume. À semelhança do título presta-se a interpretações sumarentas, mas por agora é melhor não lhes prestar atenção.
Joana Severo: “Durante a nossa infância, chamávamos-lhe o jornal do o-ó, não por adormecermos com ele a ler-nos as suas histórias (também acontecia), mas porque o ‘o’ de fronteira e o ‘ó’ de óptica, para nós duas letras diferentes, foram a primeira coisa que aprendemos a ler. Mesmo quando alterados pela paródia que tantas vezes me exasperava, os relatos desses episódios acabaram por nos dar uma consciência do que fazíamos. A opinião de terceiros era-nos indiferente, mas não o efeito que podíamos causar.”
Infelizmente, os textos redigidos em duas décadas de vida familiar perderam-se na sua grande maioria. O computador, que comprara em segunda mão, foi atacado por um vírus que lhe apagou a memória do disco rígido sem que ele tivesse feito cópias e nos primeiros anos usava ainda a sua velha máquina de escrever. Os textos de Fronteira Óptica eram tratados como dum jornal de grande tiragem se tratasse: perdida a actualidade, boa parte deles acabaram no lixo e muitos perderam-se no meio de outros papéis arrumados ao acaso. “Só com o desaparecimento do meu irmão se tornaram preciosos.”
Passado e futuro são concomitantes, interceptam-se mutuamente e dão lugar a curvas, buracos e camadas de um tempo paradoxal. Fronteira Óptica constitui-se no exercício da sua apropriação. As crónicas da primeira série não foram escritas a pensar num livro, mas os textos em que RDS faz o luto pelo filho vêm iluminar de forma arrepiante o alcance de um título inventado vinte anos antes. Fronteira Óptica representou uma estratégia de educação dos filhos: as histórias deles são mais importantes do que a imagem mediatizada das histórias dos outros. A morte de Jaime Roque vem reabrir o vazio do espaço doméstico e o universo televisivo por ele deplorado serve-lhe as imagens de que necessita para reanimar a sua memória (ver A arte perdida da fumigação e A ilha do povo Dogonutee). Joana Severo: “A imagem mais chocante que guardo do meu pai durante o último ano é vê-lo em frente à televisão como que sob o efeito de um sedativo. Quando o Jaime era vivo gostava de sentar-se ao lado da televisão a olhar para nós e só espreitava para o ecrã quando algo em nós o deixava curioso.”
Os retratos de João Silvestre retomam o formato da crónica e descrevem episódios que estiveram na origem de fotografias de reportagem (só três destas fotografias existem mesmo, a imaginação do autor completa o portfolio). Mas para além da terceira série de Fronteira Óptica, onde o recurso à fotografia se torna temático, há uma relação hipnótica com a imagem no seu trabalho que me assusta. A hipnose “é um estado de sonolência provocado por artifícios de sugestão durante o qual o hipnotizador exerce um controlo considerável sobre a vontade e o pensamento.” É sob este estado que o autor parece querer deixar quem o lê.
O efeito hipnótico da fotografia cria a ilusão de que o presente está a ser moldado pelas condições criadas no instante em que a imagem foi produzida. A fotografia enquanto cavalo de Tróia do passado. Quando os dados da história não existem, imprimem-se os pormenores contingentes da imagem que lhes dá sombra. À semelhança dos retratos, a ideia que fazemos do passado corresponde a uma imagem fixa, mas o presente, à semelhança de quem o habita (e da memória que os acompanha) encontra-se em movimento. Permitam-me um interlúdio pessoal.
Aos doze anos fiz uma sessão de polaróides com o meu irmão na piscina dos bombeiros da Agualva. Na primeira fotografia tentei captá-lo a mergulhar: ele desapareceu, deixando atrás de si uma língua de espuma. Na segunda tentei retratá-lo em busto à beira da piscina, mas um colega vindo de trás emergiu da piscina: lá está ele, a zombar para a câmara, com o meu irmão desfocado a virar-se e a touca a escorregar-lhe pelo cabelo acima. Já em casa dos meus pais, na noite de consoada tentei imortalizar a minha tia Alice numa poltrona de camurça na sala de jantar dos meus pais. O meu irmão, que teimou em esquivar-se na sessão que lhe dediquei, pulou da cadeira em que estava sentado (fora do enquadramento) e saiu da sala. Tapado pela enormidade do aparelho, um modelo da Kodak que me tapava integralmente a cara, sem deixar qualquer perspectiva para além do visor, cliquei. O resultado final é o eclipse da minha tia, a seguir o movimento de fuga do meu irmão, fixado em plena correria.
RDS parece deliciar-se inteiramente com as incoerências que definem uma idade transitiva, apaixonada pela infância e incapaz levar avante uma vida independente. A sua geração, ou pelo menos a parte que lhe importou, é composta de adolescentes-tardios seduzidos pela aura de falhanço e sobre o assunto eu teria muito por onde passear. A magia é a ciência dos sonhadores (“I am a good man, I’m just a bad wizard”, explica o Feiticeiro de Oz, depois de ser apanhado por trás dum biombo no sonho de Dorothy). Observemos a magia que se eleva nos gestos daquele indivíduo, aquele ali, independentemente das gaiolas em que terá de ir debicar.
Já viram, podemos continuar? Já aqui falei do subúrbio, do imaginário adolescente, do permanente movimento entre espaço e tempo das suas personagens e da imagem fotográfica. São os eixos do seu trabalho. Existe ainda um quinto elemento, do qual só me apercebi quando andava entretido a pescar passagens em que a sua mulher, Vera São Roque, aparece. Trata-se da personagem-sombra. Eu sei que deveria ao menos explicar o que entendo por “personagem-sombra”, mas o facto de estar seguro da sua existência não me torna mais qualificado para propor uma definição.
A mãe da Joana e do Jaime é uma personagem esquiva nas crónicas familiares de Fronteira Óptica e parece ser também a única com capacidade para “penetrar aquele espaço exclusivo” a que RDS alude na penúltima crónica dos retratos de João Silvestre, e que tanto parece interessar ao autor.
"Tirei a fotografia à entrada do quarto e por isso a minha mãe, que estava sentada ao pé da janela, está fora de campo, embora a sombra dela seja visível aqui na parede do lado direito. Não se nota bem por causa do jarro com gladíolos que está em primeiro plano, com estas flores mais descaídas a fazerem uma espécie de telhado sobre a cabeça do meu irmão ."
É isto uma personagem-sombra. Alguém que está presente e não é mais do que uma silhueta atrás de um arranjo de flores (afinal acabei mesmo a propor uma definição).
Nota final a propósito da organização: os textos originais de Fronteira Óptica foram redigidos entre 1987 e 2008. Joana Severo recuperou 142 textos em papel com relatos da família, seis dos quais se encontravam na pasta Trabalhodescrita, no computador pessoal do autor. RDS incluiu 22 desses textos na versão definitiva, que deixou na pasta Obrincompleta (estão incluídos na primeira série de Fronteira Óptica em versões reescritas); os textos da segunda série, igualmente encontrados na pasta Obrincompleta, eram desconhecidos da família; quanto aos da terceira série tinham sido enviados à filha, por ocasião do seu vigésimo-segundo aniversário; por fim, Apostasia. Penúltimo texto da segunda série dedicada ao filho, optei por excluí-lo deste volume. São pequenos ensaios teóricos que não se enquadram nos textos que compõem o volume. À semelhança do título presta-se a interpretações sumarentas, mas por agora é melhor não lhes prestar atenção.
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domingo, 23 de janeiro de 2011
roberto de deus severo, depoiS silvestre
No ano lectivo de 1977/78, eu e o meu irmão frequentámos a primeira classe na escola primária de Barbacena, Alto Alentejo. Havia um rapaz da quarta classe conhecido por Tó que ia para a escola a cavalo e tinha por hábito dar uns estalidos com a língua cuja onomatopeia correspondia ao seu diminutivo, “tó”. Não era todos os dias que o “tó” se fazia ouvir. Passavam-se semanas sem o ver montado, mas a identidade dele ficou marcada por aqueles dois signos, ao ponto de o julgar ausente da escola quando não o via a cavalo ou não lhe escutava o estalido. Este som consiste em fazer vácuo entre a língua e o palatino por trás do maxilar superior, sacando-a com uma enérgica tensão muscular. O estalido que aprendi a imitar trazia consigo a memória do Tó, cujo rosto não fixei nem saberia reconhecer. Só depois de ouvi-lo a fazer o mesmo som, já adulto, é que descobri que Roberto de Deus Severo e o misterioso Tó da minha infância eram a mesma pessoa.
Roberto de Deus Severo nasceu no Cacem, em casa dos avós maternos, a 4 de Setembro de 1968 (no dia em que Salazar foi “operado ao hematoma cerebral causado pela queda de uma cadeira de lona” ), e foi registado na conservatória de Queluz no mesmo dia. Apesar de não lhes ter encontrado laços familiares, era homónimo de um jogador de futebol popularizado pelo diminutivo Beto (campeão nacional pelo Sporting em 2000 e 2002).
Descendente duma família de proprietários rurais, o pai, Manuel Severo, fez a recruta em Mira Sintra, conheceu Rosa de Deus (mais conhecida por Rosarinho) num baile de Carnaval, engravidou-a e casou-se com ela por procuração, quando já se encontrava a cumprir o serviço militar em Angola. Em 1971, RDS é baptizado in extremis na igreja da Agualva, a 27 de Julho (na mesma semana, as capas de revistas da época celebravam a graciosa aparição em Lisboa de Inger Nilsson, a intérprete de Pipi das meias altas). No dia seguinte mãe e filho partem para Luanda. O regresso acontece três anos depois, com o 25 de Abril. Nesse mesmo ano RDS entra para a escola em Barbacena e aprende a montar na coudelaria do avô António Severo.
Com a separação dos pais, fica decidida a sua continuação em Barbacena, na casas do avós paternos, até ao fim do ano lectivo. Depois da mãe partir, bate com a cabeça numa pedra a mergulhar na pequena barragem da propriedade e é enviado para Lisboa em risco de perder uma vista. As consequências são imediatas: é-lhe diagnosticado astigmatismo (sem relação com o acidente), passa a usar óculos e a viver com a mãe no Cacem, onde termina a quarta classe.
Rosarinho atribui a esse período o crescente desinteresse do filho pela escola e foi com algum sentimento de culpa que me mostrou um desenho que guardou numa caixa de pau-preto, feito na véspera do quarto aniversário da revolução. O 25 de Abril significava para ele o regresso a Portugal, a vida no campo e o contacto com os cavalos: desenhou um picadeiro, o avô ao centro segurando o cavalo por uma corda e ele a aprender a montar. A professora pendurou no quadro de honra os melhores trabalhos alusivos ao tema e RDS, então com nove anos, chegou a casa furioso por ter sido menosprezado. Os desenhos escolhidos representavam soldados, tanques de guerra e cravos enfiados em metralhadoras, imagens que ele, excepção feita aos cravos, relacionava com os últimos dias que passou em Nova Lisboa, antes de voltar a Portugal.
O ensino secundário corresponde à sua fase problemática. No nono ano é condenado a três dias de suspensão. Três alunos sentados na última fila da sala, entre os quais ele, são acusados de atingir na cabeça uma professora estagiária com o apagador e os paus de giz. Ela baixou-se para apanhá-los e voltou a ser alvejada, desta vez com uma cadeira. Nesse ano, chumba pela primeira vez.
Rosarinho recorda ainda o vexame que sentiu na reunião de pais em que o professor de economia (disciplina opcional) decretou que o filho era o pior aluno da turma. De entre os poucos colegas que se lembravam dele por mim contactados, consegui arrancar esta recordação: numa aula de sociologia a professora expulsou-o da sala por perturbar a lição. Ele virou-se para as colegas que estavam a conversar por trás dele, elas não se denunciaram, ele levantou-se, arrumou os livros e saiu (Marta e Clara, assim se chamavam as alunas impunes, revelou a mesma fonte, que optou pelo anonimato).
A adolescência termina com uma virose que nunca chegou a ser diagnosticada. Os primeiros sintomas da doença surgem durante uma viagem ao Alentejo: “As dores no ombro alastraram-se como espirais e atingiram o máximo da minha consciência no momento de voltarem a recolher, recentrando-se na área onde a dor tinha origem. Sucedia-se outra espiral. No limite da espiral adormecia, mas a dor despertava-me e entrei nesse estado de torpor em que eu era a dor, a consciência um estado de agonia e tudo o mais em meu redor, corpo incluído, o pesadelo. Pela manhã, outra vez deitado no divã, não estava acordado nem a dormir. Desaparecera a agonia e o pesadelo, era apenas uma dor com as suas diferentes notas e tonalidades passeando-se nas cinco linhas duma pauta musical. Por trás da porta que dava para a rua, escutei passos a aproximarem-se e depois a afastarem-se na calçada, ocasionalmente coroados por uma voz. As folhas dos choupos agitavam-se do outro lado da rua, o motor de um carro despertava num tímpano, fazia piruetas no interior do crânio e alojava-se na dor.”
Depois de ser observado, primeiro no hospital de Elvas, depois nas urgências de S. José, é assistido em casa por um médico particular, que lhe debela uma septicemia: “O braço parecia uma tromba de elefante coberta de manchas. O médico surgiu-me num relance e o inchaço desapareceu no relance seguinte. A consciência regressava para uma visita, confirmava que a dor ainda lá estava e desaparecia outra vez. Numa dessas visitas à minha consciência, o meu corpo era velado pelo Rui Pereira. Encontrei-o sentado no cadeirão, ao lado da cama, a tirar notas da enciclopédia. Perguntei-lhe se tinha chegado há muito tempo. Respondeu-me que não, mas as três páginas de notas traíram-no.”
Internado no serviço de ortopedia de S. José, foge do hospital ao fim dum mês de tratamentos e dirige-se para a Festa do Avante!, onde conhece a futura mulher. Vera, que o reconhece de vê-lo nos corredores da escola, encontra-o numa tenda de discos a namorar a capa de Closer, dos Joy Division, e mete conversa. A 26 de Abril de 1987, Joana João Roque Severo nasce “de parto prematuro”. Frequenta o décimo-primeiro ano e volta a chumbar. E no ano seguinte, em que é repetente, Vera engravida outra vez. Jaime Roque nasce a 6 de Junho de 1988. Nesse Verão, RDS, semanas antes de fazer vinte anos, e Vera São Roque, um ano mais velha, casam-se sob pressão familiar e vão habitar uma pequena casa de três divisões no pátio Joaquim Dias.
Em 1989 entra para o curso de agronomia na Universidade de Évora, que não chega a frequentar, e no mesmo ano lectivo inscreve-se no curso de jornalismo da Universidade Autónoma de Lisboa (“um erro terrível”, confessaria mais tarde). Outra vez pressionado pela família, que lhe paga as propinas, termina a licenciatura, mas com excepção das aulas de Alfredo Margarido pratica o absentismo e o único trabalho colectivo que integra tem como resultado a ruptura com os colegas, por ser “completamente desprovido de espírito de grupo”. No quinto ano escreve um guião para a cadeira de Técnicas de Argumento. O exercício consiste em alterar o final de Casablanca, que tem como pano de fundo a Segunda Guerra Mundial. RDS, que detesta o filme, ignora o enredo de espionagem e a história amorosa e troca as personagens interpretadas por Bogart e Bergman por um casal africano em fuga pelo deserto, com o objectivo de se refugiar na Europa.
Entre os vizinhos, no meio familiar, recorda-se um homem reservado, tímido antipático até. Isso deve-se a uma tendência desconcertante para reagir aos bons dias de alguém com um hum acompanhado de aceno de cabeça, assim como perder-se em ans e ufs à falta de resposta para perguntas tão simples como “essa saúde” ou “os filhos estão bem?” Joana Severo recorda uma ocasião em que ia na rua de mão dada com o pai, foi abordada por uma amiga de Vera que lhe perguntou “é a tua filha” e ele respondeu, depois de fazer uma pausa, “não sei”.
A primeira memória que Joana Severo tem do pai (“e não tenho memória de outro acontecimento anterior a este”, como me escreveu) passa-se no Alentejo, na casa do bisavô António: “Durante a hora da sesta a minha mãe deitou-se ao lado do meu irmão, que ainda era bebé, e encontrei o meu pai às escuras estendido no sofá da sala. Deitei-me nas suas costas e adormeci abraçada ao pescoço dele. Quando acordei, estava às cavalitas dele a passear num campo de penedos que tapavam a luz da tarde, em frente a uma colina que parecia uma barriga com sobreiros em volta do umbigo. Os cavalos pastavam na forragem amarela do sol e pareciam ter sido estampados no tecido liso da encosta”.
O desprezo que nutria pela televisão era proporcional ao ressentimento duma paixão não correspondida. Joana Severo: “Estou convencida de que os jogos e brincadeiras em que nos envolvia, a mim e ao meu irmão, resultavam duma estratégia para nos manter afastados o mais tempo possível da sua influência”. De acordo com Rosarinho, na sua juventude “passava horas infinitas” a ver televisão e durante as refeições recusava sentar-se à mesa se estava a dar algum programa do seu interesse. Joana Severo: “É provável que nos quisesse educar de maneira diferente. Preferia ver-nos como protagonistas duma história nossa a ser espectadores passivos das histórias dos outros”.
Tinha pelos filhos um interesse sem autoridade e os amigos deles eram recebidos em casa com simpatia. Quer dizer, com simpatia à sua maneira. Joana Severo: “Quando vínhamos acompanhados, era capaz de refugiar-se no escriptorio de mestre Vaquinhas . De surpresa, preparava-nos um lanche especial, depois batia à porta do quarto e quando abríamos a porta já ele tinha desaparecido. Restava o tabuleiro com a comida, onde costumava deixar um poema cómico, uma gravação com música excêntrica ou um arranjo floral tão esquisito que quase sempre nos fazia rir, como um molho de malmequeres enfiados numa boneca sem cabeça ou uma rosa com a haste cheia de picos mergulhada numa garrafa de betadine”.
A relação com a mulher aparentemente era distante e cordial. Joana Severo: “Nunca consegui perceber se ele a escutava com atenção ou apenas se limitava a suportá-la em silêncio, mas surpreendi-o por diversas vezes a fazer-lhe massagens.” Este padrão de comportamento repetia-se com os filhos: “Os carinhos e brincadeiras que nos dedicava aconteciam sempre longe da vista de terceiros”. Os seus gestos, a sua forma de olhar, eram demasiado racionais para se parecerem com ternura. “Parecia estar sempre a analisar os prós e os contras dum problema. Em momentos de irritação a minha mãe imitava uma expressão da minha tia [meia-irmã de RDS da parte do pai] e acusava-o de ser recalcado. Ele limitava-se a sorrir ou a ignorá-la, o que a deixava furiosa”.
Embora nunca lhe tenha escutado um queixume, não chegou a exercer a profissão para a qual estudou. No final do curso a universidade ofereceu-lhe um estágio no Diário de Notícias. Recusou. Fez parte da primeira geração de portugueses a frequentar massivamente o ensino superior e o excesso de licenciados em estudos humanísticos gerou um desequilíbrio no mercado de trabalho. Apesar desse período ter assistido a uma explosão de novas publicações e ao surgimento dos canais privados, a maioria não chegou a ter uma carreira relacionada com a sua área.
Os trabalhos que arranjava eram pequenos serviços e empregos de ocasião. Sobrava-lhe tempo para ajudar a mulher, que era florista e decoradora de interiores, assim como a mãe, que se dedicava a pequenos negócios de compra-e-venda. Ao fim de vários anos a enviar currículos para as redacções (recusou um contacto meu para trabalhar no Jornal de Sintra), inscreveu-se na secção de pessoal da CP apenas com o certificado de 12º ano. Ainda fez testes para ser maquinista, mas uma tendinite na mão direita impediu-o de acabar a formação.
Trabalhou durante um ano como fiscal na Linha de Sintra até Rosarinho o convencer a demitir-se, depois de ser atacado por um bando de delinquentes sem bilhete. Vera também não gostava de vê-lo naquele trabalho e depois de vê-lo furar o passe duma passageira julgando que era o bilhete passou a evitar ir a Lisboa de comboio quando ele estava de serviço. Eu próprio fui testemunha da sua distracção, numa viagem em que ele picou o meu bilhete e respondeu “estou” depois de lhe perguntar como é que estava. Um vigoroso aperto de mão fez-me estalar o dedo mindinho, mas a ajuizar pelo seu comportamento até mudar de carruagem estou certo que não me reconheceu, nem tão pouco estranhou cumprimentar um desconhecido.
Por três vezes frequentámos as mesmas escolas, mas só em meados da década de 90 nos conhecemos. Eu era colaborador do Público, escrevia sobre música no suplemento Poprock e às quartas-feiras fazia sessões de dee-jaying (como então lhe chamávamos) no DNA, um bar da Agualva onde passava as novidades que recebia no jornal misturadas com a minha colecção particular. Salvo uma ou outra ocasião especial, o bar era pouco frequentado e acabou por estabelecer-se uma relação de cumplicidade entre os clientes habituais. Depois da hora de fecho, o DNA virava clube privado. A música alternava entre discos dos anos oitenta e as novas tendências de então (jungle, música electrónica, trip-hop). Entre saúdes com unhas de vodka, hinos geracionais, linhas de coca e charutos de haxixe, procurávamos manter-nos num permanente estado de euforia, que um ou outro incidente tornava apoteótico. Foi uma época de ternura desesperada e de felicidade ilusória, quiçá irrelevante e indiferente à sua decadência, mas deixou ao menos um rasto de extravagância que o passar dos anos deitou a perder.
Para quem nasceu ou cresceu nos subúrbios, entre paredes de betão, dificilmente se deixa convencer que há um mundo de oportunidades à sua espera. Essa é a ilusão dos pais. Embora com um modo de vida que lhe era próprio, RDS partilhou com tantos outros de nós pertencentes à sua geração essa mesma atitude passiva e individualista analisada por George Orwell num ensaio dedicado a Henry Miller (escritor que RDS detestava). À semelhança da analogia desenvolvida por Orwell, RDS também parecia habitar o interior duma baleia transparente.
Foi a primeira pessoa a quem ouvi dizer que acreditar no poder duma sociedade se transformar para melhor é apenas menos primitivo do que acreditar em super-heróis ou em deus-salvador. Suicidas, niilistas ou tão simplesmente gente desiludida concordaria com ele, mas há que seguir a origem do raciocínio. Herdeiro duma família de proprietários rurais, filho de um casal de retornados, reencontrou nos subúrbios de Lisboa comunidades inteiras de refugiados da guerra e da miséria: os mesmos que deveriam ter beneficiado com o fim do modelo colonial ou com o fim do modelo latifundiário. Para um escritor do gesto circunscrito ao quotidiano como ele, o que escapa à consciência do indivíduo gera confusão e injustiça e nenhuma mudança histórica pode servir de exemplo, nem a evitar, nem a seguir. Tal como uma das suas personagens sugere, um homem apenas se distingue quando rodeado de burros. Promover os burros à condição de homens vem dificultar a tarefa, mas não elimina a necessidade de um ou outro querer distinguir-se enquanto burro.
Muitas histórias apagam, ou não chegam a inscrever, o ponto de vista original. Quase todas no entanto começam da mesma maneira: à espreita. Recoloquemos o nosso amigo no seu modesto escritório, a porta encostada, o ruído doméstico da vizinhança ressoando através de paredes mal isoladas, a janela aberta da sala que dá para a rua.
Em 2004, a família muda-se para um rés-do-chão na rua D. José. O apartamento, sensivelmente maior do que as casas que havia habitado nos quinze anos anteriores, tem uma pequena divisão interior onde monta o seu escritório. RDS tem finalmente privacidade para escrever. Nos seus textos o autor mantém-se na sombra, mas … lá está ela! usando uma realidade a que não pertence para entrar na ficção que desenha o seu contorno.
Poucos meses antes da doença atrás relatada, e que veio a constituir um marco que alterou o rumo da sua vida, RDS acompanhou a mãe a uma consulta com uma médium, que depois de observar o filho lhe garantiu que ele tinha a “caixa fechada” (para o efeito, estava protegido de vir a tornar-se anfitrião de algum espírito ou alma penada). O diagnóstico terá afastado de Rosarinho o receio quanto ao papel dos fantasmas no comportamento do filho, mas estando a par da sua falta de disciplina ou atenção para assuntos práticos, a falta de pontualidade endémica, o desenrolar de um sonho mais urgente do que o toque de despertador, a resolução de problemas a dever-se menos à tomada de decisões do que ao desenovelar caótico do acaso, a afectividade triunfando sobre o respeito, uma torre de marfim erguida a observar fendas na máscara da realidade, espreitadas em jogos de acaso, leituras de I-ching, cartas astrológicas e substâncias alucinogénicas, a imaginação com os pés assentes na infância e a cabeça nas nuvens de um tempo instável e fugitivo… podemos decretar que RDS representa o exemplo mais puro do escritor de “caixa aberta”.
A atenção que deu ao curso das “pequenas percepções”, das introspecções da memória e dos sonhos, acima de tudo dessa sombra projectada pelo processo criativo, viria a gerar na sua obra uma espécie de realidade fantasmagórica, com o autor no papel de tímido monstro papão, indeciso entre se esconder do elenco ou assombrar as personagens com o fantasma do passado.
Os anos passam, as pessoas mudam, as vidas dispersam-se e as amizades são conservadas, protegidas que ficam dos desentendidos causados pela rotina. A falsa esplanada à beira do lago artificial no shopping-Cacem tem sido um ponto de encontro privilegiado para retomar o contacto com relações de longa data. O lago circunda uma ilha composta de plantas tropicais. Na margem oposta à esplanada há uma praia de seixos, onde uma comunidade de tartarugas vive hipnotizada por um ondulado céu listado, ora azul, ora cinzento (o telhado é composto por um conjunto alternado de placas de betão e de plástico). As últimas vezes em que me cruzei com RDS aconteceram neste cenário.
Numa dessas ocasiões fui encontrá-lo sentado a uma das mesas de ferro que se perfilam à beira do lago, com um estojo de xadrez sobre o tampo de vidro. Pareceu-me tão atento a estudar o adversário ao ponto de me sentir ludibriado por um delírio óptico quando ao aproximar-me dele confirmei que estava sozinho (ao lado da cadeira em frente à sua, uma planta lançava uma folhagem de braços compridos e ombros largos, embora descaídos). Convidou-me a jogar consigo e explicou-me as regras da sua versão de xadrez. O objectivo era obrigar o adversário a fazer cheque ao nosso rei, comendo-lhe o mínimo de peças. “Se fizer cheque-mate perco, mas se o adversário for obrigado a fazer cheque ao meu rei e tiver comido menos peças do que eu, também não ganho.” De acordo com a sua versão, o adversário tornava-se um parceiro estratégico. Perguntei-lhe como é que lhe ocorreu a ideia. “A jogar sozinho”.
Este encontro deu-se em finais de 2004, numa altura em que eu, outra vez a viver no Cacem, ocupava o apartamento da minha avó (que morrera um ano antes) e me preparava para estrear “Elogio da classe política portuguesa”, na galeria ZDB, em Lisboa. Ainda cheguei a convidá-lo para participar na peça, mas ele não levou o convite a sério e Rui Lorga, que vivia então na Amadora e fazia leituras de Tarot na Loja da João (na Rua da Atalaia, em frente ao bar do Sr. Li, no Bairro Alto), ocupou o seu lugar.
Os encontros casuais em que deambulávamos pelas ruas, nos sentávamos à beira do lago do shopping-Cacem, ou ficávamos encostados ao balcão do DNA, desaguavam quase sempre em discussões sobre cinema, literatura ou arte em geral. Nunca me ocorreu perguntar-lhe se também escrevia, nem ele, qual parodiante a brincar às teses de “não-inscrição”, fez alguma vez menção ao seu trabalho. Ignoro se chegou a submeter algum original para avaliação profissional. Se não o fez, pergunto-me quanto mais tempo iria esperar, se ainda fosse vivo.
A 29 de Novembro de 2009, dois anos após a morte do filho num acidente de motorizada, RDS pegou no carro de Vera, entrou na IC19 em direcção a Lisboa e parou na curva de Tercena, onde Jaime teve o acidente. Saiu do carro abraçado a um ramo de gladíolos e foi apanhado por um camião. Com excepção da pancada que lhe abriu o crânio do occipital até à nuca, o corpo ficou intacto. Chovia copiosamente. Em casa, deixou o computador ligado com um documento aberto ainda por guardar, onde escreveu o poema que incluí em epígrafe às crónicas de Fronteira Óptica.
“Esta vida é uma porcaria”, comentara com a filha meses antes, ao desligar o telefone a um amigo de Jaime que não soubera do desastre e a quem não teve coragem de contar o que tinha acontecido. Olhou para Joana, desfez a sua habitual “cara de poucos amigos” e disse-lhe em jeito de justificação: “Estou a citar o Morrissey”. Joana Severo: “Disfarçou com um sorriso tão terno, tão rápido, tão encantador, ao ponto de me ocorrer que podia ter sido um homem bem bonito. Em nenhum outro retrato captei um momento assim.” Joana Severo não tinha a câmara com ela e a oportunidade sumiu-se.
Cabelo castanho claro ondulado, ralo na coroa e com entradas nas têmporas, olhos azuis eternamente arregalados, lábios finos, nariz pequeno (com narinas redondas e asas carnudas). A barba escondia um queixo delicado e parecia descolar-se do rosto, à semelhança dos cromos numa velha caderneta amolecida pela humidade. De tez pálida-acinzentada (excesso de tabaco, nutrição insuficiente), dir-se-ia encarnar o lirismo duma infância naufragada. Esguio, baixo, com as pernas ligeiramente arqueadas, em andamento tinha uma tendência para projectar o pescoço e encolher as clavículas, o que lhe dava uma curvatura de pardal saltitante com as asas recolhidas. O oposto da figura imponente montada a cavalo da minha infância.
Roberto de Deus Severo nasceu no Cacem, em casa dos avós maternos, a 4 de Setembro de 1968 (no dia em que Salazar foi “operado ao hematoma cerebral causado pela queda de uma cadeira de lona” ), e foi registado na conservatória de Queluz no mesmo dia. Apesar de não lhes ter encontrado laços familiares, era homónimo de um jogador de futebol popularizado pelo diminutivo Beto (campeão nacional pelo Sporting em 2000 e 2002).
Descendente duma família de proprietários rurais, o pai, Manuel Severo, fez a recruta em Mira Sintra, conheceu Rosa de Deus (mais conhecida por Rosarinho) num baile de Carnaval, engravidou-a e casou-se com ela por procuração, quando já se encontrava a cumprir o serviço militar em Angola. Em 1971, RDS é baptizado in extremis na igreja da Agualva, a 27 de Julho (na mesma semana, as capas de revistas da época celebravam a graciosa aparição em Lisboa de Inger Nilsson, a intérprete de Pipi das meias altas). No dia seguinte mãe e filho partem para Luanda. O regresso acontece três anos depois, com o 25 de Abril. Nesse mesmo ano RDS entra para a escola em Barbacena e aprende a montar na coudelaria do avô António Severo.
Com a separação dos pais, fica decidida a sua continuação em Barbacena, na casas do avós paternos, até ao fim do ano lectivo. Depois da mãe partir, bate com a cabeça numa pedra a mergulhar na pequena barragem da propriedade e é enviado para Lisboa em risco de perder uma vista. As consequências são imediatas: é-lhe diagnosticado astigmatismo (sem relação com o acidente), passa a usar óculos e a viver com a mãe no Cacem, onde termina a quarta classe.
Rosarinho atribui a esse período o crescente desinteresse do filho pela escola e foi com algum sentimento de culpa que me mostrou um desenho que guardou numa caixa de pau-preto, feito na véspera do quarto aniversário da revolução. O 25 de Abril significava para ele o regresso a Portugal, a vida no campo e o contacto com os cavalos: desenhou um picadeiro, o avô ao centro segurando o cavalo por uma corda e ele a aprender a montar. A professora pendurou no quadro de honra os melhores trabalhos alusivos ao tema e RDS, então com nove anos, chegou a casa furioso por ter sido menosprezado. Os desenhos escolhidos representavam soldados, tanques de guerra e cravos enfiados em metralhadoras, imagens que ele, excepção feita aos cravos, relacionava com os últimos dias que passou em Nova Lisboa, antes de voltar a Portugal.
O ensino secundário corresponde à sua fase problemática. No nono ano é condenado a três dias de suspensão. Três alunos sentados na última fila da sala, entre os quais ele, são acusados de atingir na cabeça uma professora estagiária com o apagador e os paus de giz. Ela baixou-se para apanhá-los e voltou a ser alvejada, desta vez com uma cadeira. Nesse ano, chumba pela primeira vez.
Rosarinho recorda ainda o vexame que sentiu na reunião de pais em que o professor de economia (disciplina opcional) decretou que o filho era o pior aluno da turma. De entre os poucos colegas que se lembravam dele por mim contactados, consegui arrancar esta recordação: numa aula de sociologia a professora expulsou-o da sala por perturbar a lição. Ele virou-se para as colegas que estavam a conversar por trás dele, elas não se denunciaram, ele levantou-se, arrumou os livros e saiu (Marta e Clara, assim se chamavam as alunas impunes, revelou a mesma fonte, que optou pelo anonimato).
A adolescência termina com uma virose que nunca chegou a ser diagnosticada. Os primeiros sintomas da doença surgem durante uma viagem ao Alentejo: “As dores no ombro alastraram-se como espirais e atingiram o máximo da minha consciência no momento de voltarem a recolher, recentrando-se na área onde a dor tinha origem. Sucedia-se outra espiral. No limite da espiral adormecia, mas a dor despertava-me e entrei nesse estado de torpor em que eu era a dor, a consciência um estado de agonia e tudo o mais em meu redor, corpo incluído, o pesadelo. Pela manhã, outra vez deitado no divã, não estava acordado nem a dormir. Desaparecera a agonia e o pesadelo, era apenas uma dor com as suas diferentes notas e tonalidades passeando-se nas cinco linhas duma pauta musical. Por trás da porta que dava para a rua, escutei passos a aproximarem-se e depois a afastarem-se na calçada, ocasionalmente coroados por uma voz. As folhas dos choupos agitavam-se do outro lado da rua, o motor de um carro despertava num tímpano, fazia piruetas no interior do crânio e alojava-se na dor.”
Depois de ser observado, primeiro no hospital de Elvas, depois nas urgências de S. José, é assistido em casa por um médico particular, que lhe debela uma septicemia: “O braço parecia uma tromba de elefante coberta de manchas. O médico surgiu-me num relance e o inchaço desapareceu no relance seguinte. A consciência regressava para uma visita, confirmava que a dor ainda lá estava e desaparecia outra vez. Numa dessas visitas à minha consciência, o meu corpo era velado pelo Rui Pereira. Encontrei-o sentado no cadeirão, ao lado da cama, a tirar notas da enciclopédia. Perguntei-lhe se tinha chegado há muito tempo. Respondeu-me que não, mas as três páginas de notas traíram-no.”
Internado no serviço de ortopedia de S. José, foge do hospital ao fim dum mês de tratamentos e dirige-se para a Festa do Avante!, onde conhece a futura mulher. Vera, que o reconhece de vê-lo nos corredores da escola, encontra-o numa tenda de discos a namorar a capa de Closer, dos Joy Division, e mete conversa. A 26 de Abril de 1987, Joana João Roque Severo nasce “de parto prematuro”. Frequenta o décimo-primeiro ano e volta a chumbar. E no ano seguinte, em que é repetente, Vera engravida outra vez. Jaime Roque nasce a 6 de Junho de 1988. Nesse Verão, RDS, semanas antes de fazer vinte anos, e Vera São Roque, um ano mais velha, casam-se sob pressão familiar e vão habitar uma pequena casa de três divisões no pátio Joaquim Dias.
Em 1989 entra para o curso de agronomia na Universidade de Évora, que não chega a frequentar, e no mesmo ano lectivo inscreve-se no curso de jornalismo da Universidade Autónoma de Lisboa (“um erro terrível”, confessaria mais tarde). Outra vez pressionado pela família, que lhe paga as propinas, termina a licenciatura, mas com excepção das aulas de Alfredo Margarido pratica o absentismo e o único trabalho colectivo que integra tem como resultado a ruptura com os colegas, por ser “completamente desprovido de espírito de grupo”. No quinto ano escreve um guião para a cadeira de Técnicas de Argumento. O exercício consiste em alterar o final de Casablanca, que tem como pano de fundo a Segunda Guerra Mundial. RDS, que detesta o filme, ignora o enredo de espionagem e a história amorosa e troca as personagens interpretadas por Bogart e Bergman por um casal africano em fuga pelo deserto, com o objectivo de se refugiar na Europa.
Entre os vizinhos, no meio familiar, recorda-se um homem reservado, tímido antipático até. Isso deve-se a uma tendência desconcertante para reagir aos bons dias de alguém com um hum acompanhado de aceno de cabeça, assim como perder-se em ans e ufs à falta de resposta para perguntas tão simples como “essa saúde” ou “os filhos estão bem?” Joana Severo recorda uma ocasião em que ia na rua de mão dada com o pai, foi abordada por uma amiga de Vera que lhe perguntou “é a tua filha” e ele respondeu, depois de fazer uma pausa, “não sei”.
A primeira memória que Joana Severo tem do pai (“e não tenho memória de outro acontecimento anterior a este”, como me escreveu) passa-se no Alentejo, na casa do bisavô António: “Durante a hora da sesta a minha mãe deitou-se ao lado do meu irmão, que ainda era bebé, e encontrei o meu pai às escuras estendido no sofá da sala. Deitei-me nas suas costas e adormeci abraçada ao pescoço dele. Quando acordei, estava às cavalitas dele a passear num campo de penedos que tapavam a luz da tarde, em frente a uma colina que parecia uma barriga com sobreiros em volta do umbigo. Os cavalos pastavam na forragem amarela do sol e pareciam ter sido estampados no tecido liso da encosta”.
O desprezo que nutria pela televisão era proporcional ao ressentimento duma paixão não correspondida. Joana Severo: “Estou convencida de que os jogos e brincadeiras em que nos envolvia, a mim e ao meu irmão, resultavam duma estratégia para nos manter afastados o mais tempo possível da sua influência”. De acordo com Rosarinho, na sua juventude “passava horas infinitas” a ver televisão e durante as refeições recusava sentar-se à mesa se estava a dar algum programa do seu interesse. Joana Severo: “É provável que nos quisesse educar de maneira diferente. Preferia ver-nos como protagonistas duma história nossa a ser espectadores passivos das histórias dos outros”.
Tinha pelos filhos um interesse sem autoridade e os amigos deles eram recebidos em casa com simpatia. Quer dizer, com simpatia à sua maneira. Joana Severo: “Quando vínhamos acompanhados, era capaz de refugiar-se no escriptorio de mestre Vaquinhas . De surpresa, preparava-nos um lanche especial, depois batia à porta do quarto e quando abríamos a porta já ele tinha desaparecido. Restava o tabuleiro com a comida, onde costumava deixar um poema cómico, uma gravação com música excêntrica ou um arranjo floral tão esquisito que quase sempre nos fazia rir, como um molho de malmequeres enfiados numa boneca sem cabeça ou uma rosa com a haste cheia de picos mergulhada numa garrafa de betadine”.
A relação com a mulher aparentemente era distante e cordial. Joana Severo: “Nunca consegui perceber se ele a escutava com atenção ou apenas se limitava a suportá-la em silêncio, mas surpreendi-o por diversas vezes a fazer-lhe massagens.” Este padrão de comportamento repetia-se com os filhos: “Os carinhos e brincadeiras que nos dedicava aconteciam sempre longe da vista de terceiros”. Os seus gestos, a sua forma de olhar, eram demasiado racionais para se parecerem com ternura. “Parecia estar sempre a analisar os prós e os contras dum problema. Em momentos de irritação a minha mãe imitava uma expressão da minha tia [meia-irmã de RDS da parte do pai] e acusava-o de ser recalcado. Ele limitava-se a sorrir ou a ignorá-la, o que a deixava furiosa”.
Embora nunca lhe tenha escutado um queixume, não chegou a exercer a profissão para a qual estudou. No final do curso a universidade ofereceu-lhe um estágio no Diário de Notícias. Recusou. Fez parte da primeira geração de portugueses a frequentar massivamente o ensino superior e o excesso de licenciados em estudos humanísticos gerou um desequilíbrio no mercado de trabalho. Apesar desse período ter assistido a uma explosão de novas publicações e ao surgimento dos canais privados, a maioria não chegou a ter uma carreira relacionada com a sua área.
Os trabalhos que arranjava eram pequenos serviços e empregos de ocasião. Sobrava-lhe tempo para ajudar a mulher, que era florista e decoradora de interiores, assim como a mãe, que se dedicava a pequenos negócios de compra-e-venda. Ao fim de vários anos a enviar currículos para as redacções (recusou um contacto meu para trabalhar no Jornal de Sintra), inscreveu-se na secção de pessoal da CP apenas com o certificado de 12º ano. Ainda fez testes para ser maquinista, mas uma tendinite na mão direita impediu-o de acabar a formação.
Trabalhou durante um ano como fiscal na Linha de Sintra até Rosarinho o convencer a demitir-se, depois de ser atacado por um bando de delinquentes sem bilhete. Vera também não gostava de vê-lo naquele trabalho e depois de vê-lo furar o passe duma passageira julgando que era o bilhete passou a evitar ir a Lisboa de comboio quando ele estava de serviço. Eu próprio fui testemunha da sua distracção, numa viagem em que ele picou o meu bilhete e respondeu “estou” depois de lhe perguntar como é que estava. Um vigoroso aperto de mão fez-me estalar o dedo mindinho, mas a ajuizar pelo seu comportamento até mudar de carruagem estou certo que não me reconheceu, nem tão pouco estranhou cumprimentar um desconhecido.
Por três vezes frequentámos as mesmas escolas, mas só em meados da década de 90 nos conhecemos. Eu era colaborador do Público, escrevia sobre música no suplemento Poprock e às quartas-feiras fazia sessões de dee-jaying (como então lhe chamávamos) no DNA, um bar da Agualva onde passava as novidades que recebia no jornal misturadas com a minha colecção particular. Salvo uma ou outra ocasião especial, o bar era pouco frequentado e acabou por estabelecer-se uma relação de cumplicidade entre os clientes habituais. Depois da hora de fecho, o DNA virava clube privado. A música alternava entre discos dos anos oitenta e as novas tendências de então (jungle, música electrónica, trip-hop). Entre saúdes com unhas de vodka, hinos geracionais, linhas de coca e charutos de haxixe, procurávamos manter-nos num permanente estado de euforia, que um ou outro incidente tornava apoteótico. Foi uma época de ternura desesperada e de felicidade ilusória, quiçá irrelevante e indiferente à sua decadência, mas deixou ao menos um rasto de extravagância que o passar dos anos deitou a perder.
Para quem nasceu ou cresceu nos subúrbios, entre paredes de betão, dificilmente se deixa convencer que há um mundo de oportunidades à sua espera. Essa é a ilusão dos pais. Embora com um modo de vida que lhe era próprio, RDS partilhou com tantos outros de nós pertencentes à sua geração essa mesma atitude passiva e individualista analisada por George Orwell num ensaio dedicado a Henry Miller (escritor que RDS detestava). À semelhança da analogia desenvolvida por Orwell, RDS também parecia habitar o interior duma baleia transparente.
Foi a primeira pessoa a quem ouvi dizer que acreditar no poder duma sociedade se transformar para melhor é apenas menos primitivo do que acreditar em super-heróis ou em deus-salvador. Suicidas, niilistas ou tão simplesmente gente desiludida concordaria com ele, mas há que seguir a origem do raciocínio. Herdeiro duma família de proprietários rurais, filho de um casal de retornados, reencontrou nos subúrbios de Lisboa comunidades inteiras de refugiados da guerra e da miséria: os mesmos que deveriam ter beneficiado com o fim do modelo colonial ou com o fim do modelo latifundiário. Para um escritor do gesto circunscrito ao quotidiano como ele, o que escapa à consciência do indivíduo gera confusão e injustiça e nenhuma mudança histórica pode servir de exemplo, nem a evitar, nem a seguir. Tal como uma das suas personagens sugere, um homem apenas se distingue quando rodeado de burros. Promover os burros à condição de homens vem dificultar a tarefa, mas não elimina a necessidade de um ou outro querer distinguir-se enquanto burro.
Muitas histórias apagam, ou não chegam a inscrever, o ponto de vista original. Quase todas no entanto começam da mesma maneira: à espreita. Recoloquemos o nosso amigo no seu modesto escritório, a porta encostada, o ruído doméstico da vizinhança ressoando através de paredes mal isoladas, a janela aberta da sala que dá para a rua.
Em 2004, a família muda-se para um rés-do-chão na rua D. José. O apartamento, sensivelmente maior do que as casas que havia habitado nos quinze anos anteriores, tem uma pequena divisão interior onde monta o seu escritório. RDS tem finalmente privacidade para escrever. Nos seus textos o autor mantém-se na sombra, mas … lá está ela! usando uma realidade a que não pertence para entrar na ficção que desenha o seu contorno.
Poucos meses antes da doença atrás relatada, e que veio a constituir um marco que alterou o rumo da sua vida, RDS acompanhou a mãe a uma consulta com uma médium, que depois de observar o filho lhe garantiu que ele tinha a “caixa fechada” (para o efeito, estava protegido de vir a tornar-se anfitrião de algum espírito ou alma penada). O diagnóstico terá afastado de Rosarinho o receio quanto ao papel dos fantasmas no comportamento do filho, mas estando a par da sua falta de disciplina ou atenção para assuntos práticos, a falta de pontualidade endémica, o desenrolar de um sonho mais urgente do que o toque de despertador, a resolução de problemas a dever-se menos à tomada de decisões do que ao desenovelar caótico do acaso, a afectividade triunfando sobre o respeito, uma torre de marfim erguida a observar fendas na máscara da realidade, espreitadas em jogos de acaso, leituras de I-ching, cartas astrológicas e substâncias alucinogénicas, a imaginação com os pés assentes na infância e a cabeça nas nuvens de um tempo instável e fugitivo… podemos decretar que RDS representa o exemplo mais puro do escritor de “caixa aberta”.
A atenção que deu ao curso das “pequenas percepções”, das introspecções da memória e dos sonhos, acima de tudo dessa sombra projectada pelo processo criativo, viria a gerar na sua obra uma espécie de realidade fantasmagórica, com o autor no papel de tímido monstro papão, indeciso entre se esconder do elenco ou assombrar as personagens com o fantasma do passado.
Os anos passam, as pessoas mudam, as vidas dispersam-se e as amizades são conservadas, protegidas que ficam dos desentendidos causados pela rotina. A falsa esplanada à beira do lago artificial no shopping-Cacem tem sido um ponto de encontro privilegiado para retomar o contacto com relações de longa data. O lago circunda uma ilha composta de plantas tropicais. Na margem oposta à esplanada há uma praia de seixos, onde uma comunidade de tartarugas vive hipnotizada por um ondulado céu listado, ora azul, ora cinzento (o telhado é composto por um conjunto alternado de placas de betão e de plástico). As últimas vezes em que me cruzei com RDS aconteceram neste cenário.
Numa dessas ocasiões fui encontrá-lo sentado a uma das mesas de ferro que se perfilam à beira do lago, com um estojo de xadrez sobre o tampo de vidro. Pareceu-me tão atento a estudar o adversário ao ponto de me sentir ludibriado por um delírio óptico quando ao aproximar-me dele confirmei que estava sozinho (ao lado da cadeira em frente à sua, uma planta lançava uma folhagem de braços compridos e ombros largos, embora descaídos). Convidou-me a jogar consigo e explicou-me as regras da sua versão de xadrez. O objectivo era obrigar o adversário a fazer cheque ao nosso rei, comendo-lhe o mínimo de peças. “Se fizer cheque-mate perco, mas se o adversário for obrigado a fazer cheque ao meu rei e tiver comido menos peças do que eu, também não ganho.” De acordo com a sua versão, o adversário tornava-se um parceiro estratégico. Perguntei-lhe como é que lhe ocorreu a ideia. “A jogar sozinho”.
Este encontro deu-se em finais de 2004, numa altura em que eu, outra vez a viver no Cacem, ocupava o apartamento da minha avó (que morrera um ano antes) e me preparava para estrear “Elogio da classe política portuguesa”, na galeria ZDB, em Lisboa. Ainda cheguei a convidá-lo para participar na peça, mas ele não levou o convite a sério e Rui Lorga, que vivia então na Amadora e fazia leituras de Tarot na Loja da João (na Rua da Atalaia, em frente ao bar do Sr. Li, no Bairro Alto), ocupou o seu lugar.
Os encontros casuais em que deambulávamos pelas ruas, nos sentávamos à beira do lago do shopping-Cacem, ou ficávamos encostados ao balcão do DNA, desaguavam quase sempre em discussões sobre cinema, literatura ou arte em geral. Nunca me ocorreu perguntar-lhe se também escrevia, nem ele, qual parodiante a brincar às teses de “não-inscrição”, fez alguma vez menção ao seu trabalho. Ignoro se chegou a submeter algum original para avaliação profissional. Se não o fez, pergunto-me quanto mais tempo iria esperar, se ainda fosse vivo.
A 29 de Novembro de 2009, dois anos após a morte do filho num acidente de motorizada, RDS pegou no carro de Vera, entrou na IC19 em direcção a Lisboa e parou na curva de Tercena, onde Jaime teve o acidente. Saiu do carro abraçado a um ramo de gladíolos e foi apanhado por um camião. Com excepção da pancada que lhe abriu o crânio do occipital até à nuca, o corpo ficou intacto. Chovia copiosamente. Em casa, deixou o computador ligado com um documento aberto ainda por guardar, onde escreveu o poema que incluí em epígrafe às crónicas de Fronteira Óptica.
“Esta vida é uma porcaria”, comentara com a filha meses antes, ao desligar o telefone a um amigo de Jaime que não soubera do desastre e a quem não teve coragem de contar o que tinha acontecido. Olhou para Joana, desfez a sua habitual “cara de poucos amigos” e disse-lhe em jeito de justificação: “Estou a citar o Morrissey”. Joana Severo: “Disfarçou com um sorriso tão terno, tão rápido, tão encantador, ao ponto de me ocorrer que podia ter sido um homem bem bonito. Em nenhum outro retrato captei um momento assim.” Joana Severo não tinha a câmara com ela e a oportunidade sumiu-se.
Cabelo castanho claro ondulado, ralo na coroa e com entradas nas têmporas, olhos azuis eternamente arregalados, lábios finos, nariz pequeno (com narinas redondas e asas carnudas). A barba escondia um queixo delicado e parecia descolar-se do rosto, à semelhança dos cromos numa velha caderneta amolecida pela humidade. De tez pálida-acinzentada (excesso de tabaco, nutrição insuficiente), dir-se-ia encarnar o lirismo duma infância naufragada. Esguio, baixo, com as pernas ligeiramente arqueadas, em andamento tinha uma tendência para projectar o pescoço e encolher as clavículas, o que lhe dava uma curvatura de pardal saltitante com as asas recolhidas. O oposto da figura imponente montada a cavalo da minha infância.
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