sábado, 29 de janeiro de 2011

lição de política

Filhos ingratos, Joana e Jaime Roque recusaram-se ontem a sair à rua na companhia da mãe e a participar na ronda de compras, preferindo as lições do mestre Vaquinhas. Por trás da porta do escriptorio – encabeçada por uma placa de ferro em contornos montanhosos, onde o seu nome completo figurava por leitosas letras esmaltadas, sobre um fundo azul índigo – a cavernosa voz matutina do mestre Vaquinhas pronunciou as seguintes palavras: “A lição de hoje é dedicada à classe política. Tremei, rebeldes infiéis apartidários. Haveides de querer fruta e não haveides de comê-la, o partidarismo político é um osso duro de roer, sem caroço nem tremoço.” Joana e João correram para a mesa do escriptorio, sentaram-se nas cadeirinhas de anões e aguardaram. Penteado, escanhoado, engravatado, encamisado, engomado, enchumaçado, escovado e engraxado da cabeça aos sapatos, mestre Vaquinhas levantou-se do cadeirão (que estava de costas para a mesa dos alunos), levou um par de indicadores aos lábios, varreu a tribuna com as pestanas a meia haste e depois de um gelado sorriso de campanha fixou o olho direito na audiência, enquanto o esquerdo mirava um molhe de folhas brancas (no cimo do qual se encontrava a lista de compras, esquecida por Vera São Roque). “Quem foge da protectora saia plissada partidária fica condenado à errância mais irada, porque estando certo fica errado e errando, não pode estar certo. Julgueis porventura encontrar-me eu a judiar com as vossas ignaras cabeças inocentes? “Siim”, responderam os irmãos. “Insolentes”, replicou de viva voz o mestre Manoel Rodrigues Vaquinhas. “Que sabeis vós do verbo judiar?” Os irmãos pousaram a cabeça no tampo da mesa (ou melhor, Jaime imitou a irmã nesta posição reflexiva e que para ele constituía um gesto de envergonhada sujeição). “A política é a ferramenta do sentido de estado, e o estado, para o político (podem olhar-me no papel de ministro, para causar mais efeito)… Sou eu! Este é o meu corpo, bebei da teta do Vaquinhas. Aprendiz Jaime, quereis arranjar trabalho? “Não.” “Pudera! E emprego, satisfá-lo o emprego do tempo?” “Sim.” “Espertalhão às dúzias. E tu aprendiz Joana, diga de sua mercê. Pretende dar de comer aos pobres e os ricos que trabalhem?” De queixo tremido e dentes a baterem, Joana agitou a cabeça em angustiado assentimento. Os lábios ficaram roxos. “Ó funesta, ó pécora! O estado, doravante”, e apontou com o dedo, “sois vós!” Desatando aos berros, Jaime e Joana saltaram das cadeiras, abriram a porta de casa e desceram os degraus dois a dois. O mestre aproximou-se da janela e franzindo o sobrolho contemplou duas crianças muito atinadas que, à falta de mãos livres, se agarraram à cesta de compras da mãe.

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