sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

lição de literatura

Mestre Vaquinhas estava sentado no chão com o queixo em cima do tampo da mesa. Sentados em cadeirinhas proporcionais ao seu tamanho de anões, a Joaninha (muito direita, olhos escancarados, lábios apertados um no outro, em sinal de certeira concentração) e o Jaimito (rabujento, sonolento, macilento, pálpebras de peneirento). O mestre dirigiu-se à janela da sala de aula e mirando-se no reflexo do vidro espremeu um quisto sebáceo no pescoço. Jaimito fez uma expressão de nojo e a cabeça tombou no tampo. Acto contínuo, Joaninha deu um caldo no irmão para se manter direito. “A literatura francesa é a expressão mais alta e jamais atingida por qualquer outra língua. As causas do seu aparecimento, desenvolvimento e amadurecimento foram as conquistas napoleónicas, o enriquecimento das classes sociais, cumuladas de herdeiros ociosos, e relações humanas em trânsito, desejosas de impressionarem o estrangeiro incauto pela opulência da aparência, pelas meias das grandes ideias, pela beleza da sua fineza, pelos excrementos dos bons sentimentos e pela inutilidade da sua musicalidade. Também se deu a decadência, motivada pela perda da inocência, mas esta surge em anexo.” Contemplando uma prateleira de livros, o mestre puxou um volume pela lombada e voltou a pô-lo no lugar, limpando às calças o pó que se agarrou aos dedos. “A força motriz da produção e recepção literária concentrou-se na burguesia, mas os valores, o sentido de excelência, de grandiosidade, o requinte do estilo, foram uma directa influência da aristocracia em pousio”. Perante a expressão de alarme de Jaimito, desperto do seu devaneio infantil por via dos z a que o seu ouvido era particularmente sensível, Mestre Vaquinhas explicou-se: “Zio, pousio. Não havendo guerras, os nobres passeiam-se por salões e jardins. O aristocrata exibe… zibe… exibe as boas maneiras, o filho da alta burguesia… zia, burguesia observa pois é dotado pelos sentidos (ver, ouvir, cheirar, tactear, degustar) e carece de saúde para o trabalho. Quanto aos pretensiosos admiram-se, porque estão cheios de inveja e ambicionam parecer comme il faut… Joaninha, pare de rabiscar e ouça apenas… Jaimito, tire o macaco que meteu debaixo da mesa e volte a pô-lo no nariz… O aristocrata tem joie de vivre, o filho anémico tem sensibilidade e a cambada vai atrás. O ser excepcional é solitário, o ser vulgar é gregário… Jaimito! não seja sectário! Só o talento está em condições de reconhecer que é na vulgaridade que os actos de excepção acontecem. O homem de virtude aborrece-nos, enquanto aquele…” Joaninha fez uma expressão acabrunhada. Jaimito esfregava uma borracha com sabor a morango no nariz. O mestre deu um caldo em Jaimito, que poisou a borracha, fez uma vénia a Joanita e retomou o discurso: “… enquanto aquela a quem não se reconhecem qualidades poderá sempre vir um dia a surpreender-nos. Ócio, tédio, desejo e exibicionismo são as etapas que antecedem o prazer… zer, prazer literário. Em todas estas etapas sentimos uma atracção pela parcela de divertimento a que temos direito. A aula acabou, vão brincar lá para fora.”

Sem comentários:

Enviar um comentário