domingo, 23 de janeiro de 2011

roberto de deus severo, depoiS silvestre

No ano lectivo de 1977/78, eu e o meu irmão frequentámos a primeira classe na escola primária de Barbacena, Alto Alentejo. Havia um rapaz da quarta classe conhecido por Tó que ia para a escola a cavalo e tinha por hábito dar uns estalidos com a língua cuja onomatopeia correspondia ao seu diminutivo, “tó”. Não era todos os dias que o “tó” se fazia ouvir. Passavam-se semanas sem o ver montado, mas a identidade dele ficou marcada por aqueles dois signos, ao ponto de o julgar ausente da escola quando não o via a cavalo ou não lhe escutava o estalido. Este som consiste em fazer vácuo entre a língua e o palatino por trás do maxilar superior, sacando-a com uma enérgica tensão muscular. O estalido que aprendi a imitar trazia consigo a memória do Tó, cujo rosto não fixei nem saberia reconhecer. Só depois de ouvi-lo a fazer o mesmo som, já adulto, é que descobri que Roberto de Deus Severo e o misterioso Tó da minha infância eram a mesma pessoa.
Roberto de Deus Severo nasceu no Cacem, em casa dos avós maternos, a 4 de Setembro de 1968 (no dia em que Salazar foi “operado ao hematoma cerebral causado pela queda de uma cadeira de lona” ), e foi registado na conservatória de Queluz no mesmo dia. Apesar de não lhes ter encontrado laços familiares, era homónimo de um jogador de futebol popularizado pelo diminutivo Beto (campeão nacional pelo Sporting em 2000 e 2002).
Descendente duma família de proprietários rurais, o pai, Manuel Severo, fez a recruta em Mira Sintra, conheceu Rosa de Deus (mais conhecida por Rosarinho) num baile de Carnaval, engravidou-a e casou-se com ela por procuração, quando já se encontrava a cumprir o serviço militar em Angola. Em 1971, RDS é baptizado in extremis na igreja da Agualva, a 27 de Julho (na mesma semana, as capas de revistas da época celebravam a graciosa aparição em Lisboa de Inger Nilsson, a intérprete de Pipi das meias altas). No dia seguinte mãe e filho partem para Luanda. O regresso acontece três anos depois, com o 25 de Abril. Nesse mesmo ano RDS entra para a escola em Barbacena e aprende a montar na coudelaria do avô António Severo.
Com a separação dos pais, fica decidida a sua continuação em Barbacena, na casas do avós paternos, até ao fim do ano lectivo. Depois da mãe partir, bate com a cabeça numa pedra a mergulhar na pequena barragem da propriedade e é enviado para Lisboa em risco de perder uma vista. As consequências são imediatas: é-lhe diagnosticado astigmatismo (sem relação com o acidente), passa a usar óculos e a viver com a mãe no Cacem, onde termina a quarta classe.
Rosarinho atribui a esse período o crescente desinteresse do filho pela escola e foi com algum sentimento de culpa que me mostrou um desenho que guardou numa caixa de pau-preto, feito na véspera do quarto aniversário da revolução. O 25 de Abril significava para ele o regresso a Portugal, a vida no campo e o contacto com os cavalos: desenhou um picadeiro, o avô ao centro segurando o cavalo por uma corda e ele a aprender a montar. A professora pendurou no quadro de honra os melhores trabalhos alusivos ao tema e RDS, então com nove anos, chegou a casa furioso por ter sido menosprezado. Os desenhos escolhidos representavam soldados, tanques de guerra e cravos enfiados em metralhadoras, imagens que ele, excepção feita aos cravos, relacionava com os últimos dias que passou em Nova Lisboa, antes de voltar a Portugal.
O ensino secundário corresponde à sua fase problemática. No nono ano é condenado a três dias de suspensão. Três alunos sentados na última fila da sala, entre os quais ele, são acusados de atingir na cabeça uma professora estagiária com o apagador e os paus de giz. Ela baixou-se para apanhá-los e voltou a ser alvejada, desta vez com uma cadeira. Nesse ano, chumba pela primeira vez.
Rosarinho recorda ainda o vexame que sentiu na reunião de pais em que o professor de economia (disciplina opcional) decretou que o filho era o pior aluno da turma. De entre os poucos colegas que se lembravam dele por mim contactados, consegui arrancar esta recordação: numa aula de sociologia a professora expulsou-o da sala por perturbar a lição. Ele virou-se para as colegas que estavam a conversar por trás dele, elas não se denunciaram, ele levantou-se, arrumou os livros e saiu (Marta e Clara, assim se chamavam as alunas impunes, revelou a mesma fonte, que optou pelo anonimato).
A adolescência termina com uma virose que nunca chegou a ser diagnosticada. Os primeiros sintomas da doença surgem durante uma viagem ao Alentejo: “As dores no ombro alastraram-se como espirais e atingiram o máximo da minha consciência no momento de voltarem a recolher, recentrando-se na área onde a dor tinha origem. Sucedia-se outra espiral. No limite da espiral adormecia, mas a dor despertava-me e entrei nesse estado de torpor em que eu era a dor, a consciência um estado de agonia e tudo o mais em meu redor, corpo incluído, o pesadelo. Pela manhã, outra vez deitado no divã, não estava acordado nem a dormir. Desaparecera a agonia e o pesadelo, era apenas uma dor com as suas diferentes notas e tonalidades passeando-se nas cinco linhas duma pauta musical. Por trás da porta que dava para a rua, escutei passos a aproximarem-se e depois a afastarem-se na calçada, ocasionalmente coroados por uma voz. As folhas dos choupos agitavam-se do outro lado da rua, o motor de um carro despertava num tímpano, fazia piruetas no interior do crânio e alojava-se na dor.”
Depois de ser observado, primeiro no hospital de Elvas, depois nas urgências de S. José, é assistido em casa por um médico particular, que lhe debela uma septicemia: “O braço parecia uma tromba de elefante coberta de manchas. O médico surgiu-me num relance e o inchaço desapareceu no relance seguinte. A consciência regressava para uma visita, confirmava que a dor ainda lá estava e desaparecia outra vez. Numa dessas visitas à minha consciência, o meu corpo era velado pelo Rui Pereira. Encontrei-o sentado no cadeirão, ao lado da cama, a tirar notas da enciclopédia. Perguntei-lhe se tinha chegado há muito tempo. Respondeu-me que não, mas as três páginas de notas traíram-no.”
Internado no serviço de ortopedia de S. José, foge do hospital ao fim dum mês de tratamentos e dirige-se para a Festa do Avante!, onde conhece a futura mulher. Vera, que o reconhece de vê-lo nos corredores da escola, encontra-o numa tenda de discos a namorar a capa de Closer, dos Joy Division, e mete conversa. A 26 de Abril de 1987, Joana João Roque Severo nasce “de parto prematuro”. Frequenta o décimo-primeiro ano e volta a chumbar. E no ano seguinte, em que é repetente, Vera engravida outra vez. Jaime Roque nasce a 6 de Junho de 1988. Nesse Verão, RDS, semanas antes de fazer vinte anos, e Vera São Roque, um ano mais velha, casam-se sob pressão familiar e vão habitar uma pequena casa de três divisões no pátio Joaquim Dias.
Em 1989 entra para o curso de agronomia na Universidade de Évora, que não chega a frequentar, e no mesmo ano lectivo inscreve-se no curso de jornalismo da Universidade Autónoma de Lisboa (“um erro terrível”, confessaria mais tarde). Outra vez pressionado pela família, que lhe paga as propinas, termina a licenciatura, mas com excepção das aulas de Alfredo Margarido pratica o absentismo e o único trabalho colectivo que integra tem como resultado a ruptura com os colegas, por ser “completamente desprovido de espírito de grupo”. No quinto ano escreve um guião para a cadeira de Técnicas de Argumento. O exercício consiste em alterar o final de Casablanca, que tem como pano de fundo a Segunda Guerra Mundial. RDS, que detesta o filme, ignora o enredo de espionagem e a história amorosa e troca as personagens interpretadas por Bogart e Bergman por um casal africano em fuga pelo deserto, com o objectivo de se refugiar na Europa.
Entre os vizinhos, no meio familiar, recorda-se um homem reservado, tímido antipático até. Isso deve-se a uma tendência desconcertante para reagir aos bons dias de alguém com um hum acompanhado de aceno de cabeça, assim como perder-se em ans e ufs à falta de resposta para perguntas tão simples como “essa saúde” ou “os filhos estão bem?” Joana Severo recorda uma ocasião em que ia na rua de mão dada com o pai, foi abordada por uma amiga de Vera que lhe perguntou “é a tua filha” e ele respondeu, depois de fazer uma pausa, “não sei”.
A primeira memória que Joana Severo tem do pai (“e não tenho memória de outro acontecimento anterior a este”, como me escreveu) passa-se no Alentejo, na casa do bisavô António: “Durante a hora da sesta a minha mãe deitou-se ao lado do meu irmão, que ainda era bebé, e encontrei o meu pai às escuras estendido no sofá da sala. Deitei-me nas suas costas e adormeci abraçada ao pescoço dele. Quando acordei, estava às cavalitas dele a passear num campo de penedos que tapavam a luz da tarde, em frente a uma colina que parecia uma barriga com sobreiros em volta do umbigo. Os cavalos pastavam na forragem amarela do sol e pareciam ter sido estampados no tecido liso da encosta”.
O desprezo que nutria pela televisão era proporcional ao ressentimento duma paixão não correspondida. Joana Severo: “Estou convencida de que os jogos e brincadeiras em que nos envolvia, a mim e ao meu irmão, resultavam duma estratégia para nos manter afastados o mais tempo possível da sua influência”. De acordo com Rosarinho, na sua juventude “passava horas infinitas” a ver televisão e durante as refeições recusava sentar-se à mesa se estava a dar algum programa do seu interesse. Joana Severo: “É provável que nos quisesse educar de maneira diferente. Preferia ver-nos como protagonistas duma história nossa a ser espectadores passivos das histórias dos outros”.
Tinha pelos filhos um interesse sem autoridade e os amigos deles eram recebidos em casa com simpatia. Quer dizer, com simpatia à sua maneira. Joana Severo: “Quando vínhamos acompanhados, era capaz de refugiar-se no escriptorio de mestre Vaquinhas . De surpresa, preparava-nos um lanche especial, depois batia à porta do quarto e quando abríamos a porta já ele tinha desaparecido. Restava o tabuleiro com a comida, onde costumava deixar um poema cómico, uma gravação com música excêntrica ou um arranjo floral tão esquisito que quase sempre nos fazia rir, como um molho de malmequeres enfiados numa boneca sem cabeça ou uma rosa com a haste cheia de picos mergulhada numa garrafa de betadine”.
A relação com a mulher aparentemente era distante e cordial. Joana Severo: “Nunca consegui perceber se ele a escutava com atenção ou apenas se limitava a suportá-la em silêncio, mas surpreendi-o por diversas vezes a fazer-lhe massagens.” Este padrão de comportamento repetia-se com os filhos: “Os carinhos e brincadeiras que nos dedicava aconteciam sempre longe da vista de terceiros”. Os seus gestos, a sua forma de olhar, eram demasiado racionais para se parecerem com ternura. “Parecia estar sempre a analisar os prós e os contras dum problema. Em momentos de irritação a minha mãe imitava uma expressão da minha tia [meia-irmã de RDS da parte do pai] e acusava-o de ser recalcado. Ele limitava-se a sorrir ou a ignorá-la, o que a deixava furiosa”.
Embora nunca lhe tenha escutado um queixume, não chegou a exercer a profissão para a qual estudou. No final do curso a universidade ofereceu-lhe um estágio no Diário de Notícias. Recusou. Fez parte da primeira geração de portugueses a frequentar massivamente o ensino superior e o excesso de licenciados em estudos humanísticos gerou um desequilíbrio no mercado de trabalho. Apesar desse período ter assistido a uma explosão de novas publicações e ao surgimento dos canais privados, a maioria não chegou a ter uma carreira relacionada com a sua área.
Os trabalhos que arranjava eram pequenos serviços e empregos de ocasião. Sobrava-lhe tempo para ajudar a mulher, que era florista e decoradora de interiores, assim como a mãe, que se dedicava a pequenos negócios de compra-e-venda. Ao fim de vários anos a enviar currículos para as redacções (recusou um contacto meu para trabalhar no Jornal de Sintra), inscreveu-se na secção de pessoal da CP apenas com o certificado de 12º ano. Ainda fez testes para ser maquinista, mas uma tendinite na mão direita impediu-o de acabar a formação.
Trabalhou durante um ano como fiscal na Linha de Sintra até Rosarinho o convencer a demitir-se, depois de ser atacado por um bando de delinquentes sem bilhete. Vera também não gostava de vê-lo naquele trabalho e depois de vê-lo furar o passe duma passageira julgando que era o bilhete passou a evitar ir a Lisboa de comboio quando ele estava de serviço. Eu próprio fui testemunha da sua distracção, numa viagem em que ele picou o meu bilhete e respondeu “estou” depois de lhe perguntar como é que estava. Um vigoroso aperto de mão fez-me estalar o dedo mindinho, mas a ajuizar pelo seu comportamento até mudar de carruagem estou certo que não me reconheceu, nem tão pouco estranhou cumprimentar um desconhecido.
Por três vezes frequentámos as mesmas escolas, mas só em meados da década de 90 nos conhecemos. Eu era colaborador do Público, escrevia sobre música no suplemento Poprock e às quartas-feiras fazia sessões de dee-jaying (como então lhe chamávamos) no DNA, um bar da Agualva onde passava as novidades que recebia no jornal misturadas com a minha colecção particular. Salvo uma ou outra ocasião especial, o bar era pouco frequentado e acabou por estabelecer-se uma relação de cumplicidade entre os clientes habituais. Depois da hora de fecho, o DNA virava clube privado. A música alternava entre discos dos anos oitenta e as novas tendências de então (jungle, música electrónica, trip-hop). Entre saúdes com unhas de vodka, hinos geracionais, linhas de coca e charutos de haxixe, procurávamos manter-nos num permanente estado de euforia, que um ou outro incidente tornava apoteótico. Foi uma época de ternura desesperada e de felicidade ilusória, quiçá irrelevante e indiferente à sua decadência, mas deixou ao menos um rasto de extravagância que o passar dos anos deitou a perder.
Para quem nasceu ou cresceu nos subúrbios, entre paredes de betão, dificilmente se deixa convencer que há um mundo de oportunidades à sua espera. Essa é a ilusão dos pais. Embora com um modo de vida que lhe era próprio, RDS partilhou com tantos outros de nós pertencentes à sua geração essa mesma atitude passiva e individualista analisada por George Orwell num ensaio dedicado a Henry Miller (escritor que RDS detestava). À semelhança da analogia desenvolvida por Orwell, RDS também parecia habitar o interior duma baleia transparente.
Foi a primeira pessoa a quem ouvi dizer que acreditar no poder duma sociedade se transformar para melhor é apenas menos primitivo do que acreditar em super-heróis ou em deus-salvador. Suicidas, niilistas ou tão simplesmente gente desiludida concordaria com ele, mas há que seguir a origem do raciocínio. Herdeiro duma família de proprietários rurais, filho de um casal de retornados, reencontrou nos subúrbios de Lisboa comunidades inteiras de refugiados da guerra e da miséria: os mesmos que deveriam ter beneficiado com o fim do modelo colonial ou com o fim do modelo latifundiário. Para um escritor do gesto circunscrito ao quotidiano como ele, o que escapa à consciência do indivíduo gera confusão e injustiça e nenhuma mudança histórica pode servir de exemplo, nem a evitar, nem a seguir. Tal como uma das suas personagens sugere, um homem apenas se distingue quando rodeado de burros. Promover os burros à condição de homens vem dificultar a tarefa, mas não elimina a necessidade de um ou outro querer distinguir-se enquanto burro.
Muitas histórias apagam, ou não chegam a inscrever, o ponto de vista original. Quase todas no entanto começam da mesma maneira: à espreita. Recoloquemos o nosso amigo no seu modesto escritório, a porta encostada, o ruído doméstico da vizinhança ressoando através de paredes mal isoladas, a janela aberta da sala que dá para a rua.
Em 2004, a família muda-se para um rés-do-chão na rua D. José. O apartamento, sensivelmente maior do que as casas que havia habitado nos quinze anos anteriores, tem uma pequena divisão interior onde monta o seu escritório. RDS tem finalmente privacidade para escrever. Nos seus textos o autor mantém-se na sombra, mas … lá está ela! usando uma realidade a que não pertence para entrar na ficção que desenha o seu contorno.
Poucos meses antes da doença atrás relatada, e que veio a constituir um marco que alterou o rumo da sua vida, RDS acompanhou a mãe a uma consulta com uma médium, que depois de observar o filho lhe garantiu que ele tinha a “caixa fechada” (para o efeito, estava protegido de vir a tornar-se anfitrião de algum espírito ou alma penada). O diagnóstico terá afastado de Rosarinho o receio quanto ao papel dos fantasmas no comportamento do filho, mas estando a par da sua falta de disciplina ou atenção para assuntos práticos, a falta de pontualidade endémica, o desenrolar de um sonho mais urgente do que o toque de despertador, a resolução de problemas a dever-se menos à tomada de decisões do que ao desenovelar caótico do acaso, a afectividade triunfando sobre o respeito, uma torre de marfim erguida a observar fendas na máscara da realidade, espreitadas em jogos de acaso, leituras de I-ching, cartas astrológicas e substâncias alucinogénicas, a imaginação com os pés assentes na infância e a cabeça nas nuvens de um tempo instável e fugitivo… podemos decretar que RDS representa o exemplo mais puro do escritor de “caixa aberta”.
A atenção que deu ao curso das “pequenas percepções”, das introspecções da memória e dos sonhos, acima de tudo dessa sombra projectada pelo processo criativo, viria a gerar na sua obra uma espécie de realidade fantasmagórica, com o autor no papel de tímido monstro papão, indeciso entre se esconder do elenco ou assombrar as personagens com o fantasma do passado.
Os anos passam, as pessoas mudam, as vidas dispersam-se e as amizades são conservadas, protegidas que ficam dos desentendidos causados pela rotina. A falsa esplanada à beira do lago artificial no shopping-Cacem tem sido um ponto de encontro privilegiado para retomar o contacto com relações de longa data. O lago circunda uma ilha composta de plantas tropicais. Na margem oposta à esplanada há uma praia de seixos, onde uma comunidade de tartarugas vive hipnotizada por um ondulado céu listado, ora azul, ora cinzento (o telhado é composto por um conjunto alternado de placas de betão e de plástico). As últimas vezes em que me cruzei com RDS aconteceram neste cenário.
Numa dessas ocasiões fui encontrá-lo sentado a uma das mesas de ferro que se perfilam à beira do lago, com um estojo de xadrez sobre o tampo de vidro. Pareceu-me tão atento a estudar o adversário ao ponto de me sentir ludibriado por um delírio óptico quando ao aproximar-me dele confirmei que estava sozinho (ao lado da cadeira em frente à sua, uma planta lançava uma folhagem de braços compridos e ombros largos, embora descaídos). Convidou-me a jogar consigo e explicou-me as regras da sua versão de xadrez. O objectivo era obrigar o adversário a fazer cheque ao nosso rei, comendo-lhe o mínimo de peças. “Se fizer cheque-mate perco, mas se o adversário for obrigado a fazer cheque ao meu rei e tiver comido menos peças do que eu, também não ganho.” De acordo com a sua versão, o adversário tornava-se um parceiro estratégico. Perguntei-lhe como é que lhe ocorreu a ideia. “A jogar sozinho”.
Este encontro deu-se em finais de 2004, numa altura em que eu, outra vez a viver no Cacem, ocupava o apartamento da minha avó (que morrera um ano antes) e me preparava para estrear “Elogio da classe política portuguesa”, na galeria ZDB, em Lisboa. Ainda cheguei a convidá-lo para participar na peça, mas ele não levou o convite a sério e Rui Lorga, que vivia então na Amadora e fazia leituras de Tarot na Loja da João (na Rua da Atalaia, em frente ao bar do Sr. Li, no Bairro Alto), ocupou o seu lugar.
Os encontros casuais em que deambulávamos pelas ruas, nos sentávamos à beira do lago do shopping-Cacem, ou ficávamos encostados ao balcão do DNA, desaguavam quase sempre em discussões sobre cinema, literatura ou arte em geral. Nunca me ocorreu perguntar-lhe se também escrevia, nem ele, qual parodiante a brincar às teses de “não-inscrição”, fez alguma vez menção ao seu trabalho. Ignoro se chegou a submeter algum original para avaliação profissional. Se não o fez, pergunto-me quanto mais tempo iria esperar, se ainda fosse vivo.
A 29 de Novembro de 2009, dois anos após a morte do filho num acidente de motorizada, RDS pegou no carro de Vera, entrou na IC19 em direcção a Lisboa e parou na curva de Tercena, onde Jaime teve o acidente. Saiu do carro abraçado a um ramo de gladíolos e foi apanhado por um camião. Com excepção da pancada que lhe abriu o crânio do occipital até à nuca, o corpo ficou intacto. Chovia copiosamente. Em casa, deixou o computador ligado com um documento aberto ainda por guardar, onde escreveu o poema que incluí em epígrafe às crónicas de Fronteira Óptica.
“Esta vida é uma porcaria”, comentara com a filha meses antes, ao desligar o telefone a um amigo de Jaime que não soubera do desastre e a quem não teve coragem de contar o que tinha acontecido. Olhou para Joana, desfez a sua habitual “cara de poucos amigos” e disse-lhe em jeito de justificação: “Estou a citar o Morrissey”. Joana Severo: “Disfarçou com um sorriso tão terno, tão rápido, tão encantador, ao ponto de me ocorrer que podia ter sido um homem bem bonito. Em nenhum outro retrato captei um momento assim.” Joana Severo não tinha a câmara com ela e a oportunidade sumiu-se.
Cabelo castanho claro ondulado, ralo na coroa e com entradas nas têmporas, olhos azuis eternamente arregalados, lábios finos, nariz pequeno (com narinas redondas e asas carnudas). A barba escondia um queixo delicado e parecia descolar-se do rosto, à semelhança dos cromos numa velha caderneta amolecida pela humidade. De tez pálida-acinzentada (excesso de tabaco, nutrição insuficiente), dir-se-ia encarnar o lirismo duma infância naufragada. Esguio, baixo, com as pernas ligeiramente arqueadas, em andamento tinha uma tendência para projectar o pescoço e encolher as clavículas, o que lhe dava uma curvatura de pardal saltitante com as asas recolhidas. O oposto da figura imponente montada a cavalo da minha infância.

1 comentário:

  1. Ola Bom Dia. Era possivel fornecer-me o contacto do tarologo Rui Lorga. Obrigado. E-mail: amigaco1981@gmail.com

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