segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

o jornal Lá de casa

Afixado no painel de cortiça pendurado na cozinha, Fronteira Óptica é o jornal doméstico em que Roberto de Deus Severo assume o papel de cronista do quotidiano familiar. Iniciadas com o nascimento de Joana, as suas crónicas constituem paródias ao modo de expressão e às técnicas de escrita jornalísticas, mas também à sua agenda: que temas podem ser considerados de interesse geral no contexto duma família humilde? Reforçando a vocação ficcional de qualquer narrativa, mesmo quando ‘baseada em acontecimentos reais’, RDS substitui o apelido austero da família, Severo, por outro igualmente simbólico: Silvestre. A troca é uma homenagem à fábula medieval duma mulher que se traveste de homem para poder combater nas cruzadas, que RDS descobriu num filme de João César Monteiro, com a personagem de Silvestre a ser interpretada por Maria de Medeiros ainda adolescente.
Joana Severo: “Durante a nossa infância, chamávamos-lhe o jornal do o-ó, não por adormecermos com ele a ler-nos as suas histórias (também acontecia), mas porque o ‘o’ de fronteira e o ‘ó’ de óptica, para nós duas letras diferentes, foram a primeira coisa que aprendemos a ler. Mesmo quando alterados pela paródia que tantas vezes me exasperava, os relatos desses episódios acabaram por nos dar uma consciência do que fazíamos. A opinião de terceiros era-nos indiferente, mas não o efeito que podíamos causar.”
Infelizmente, os textos redigidos em duas décadas de vida familiar perderam-se na sua grande maioria. O computador, que comprara em segunda mão, foi atacado por um vírus que lhe apagou a memória do disco rígido sem que ele tivesse feito cópias e nos primeiros anos usava ainda a sua velha máquina de escrever. Os textos de Fronteira Óptica eram tratados como dum jornal de grande tiragem se tratasse: perdida a actualidade, boa parte deles acabaram no lixo e muitos perderam-se no meio de outros papéis arrumados ao acaso. “Só com o desaparecimento do meu irmão se tornaram preciosos.”
Passado e futuro são concomitantes, interceptam-se mutuamente e dão lugar a curvas, buracos e camadas de um tempo paradoxal. Fronteira Óptica constitui-se no exercício da sua apropriação. As crónicas da primeira série não foram escritas a pensar num livro, mas os textos em que RDS faz o luto pelo filho vêm iluminar de forma arrepiante o alcance de um título inventado vinte anos antes. Fronteira Óptica representou uma estratégia de educação dos filhos: as histórias deles são mais importantes do que a imagem mediatizada das histórias dos outros. A morte de Jaime Roque vem reabrir o vazio do espaço doméstico e o universo televisivo por ele deplorado serve-lhe as imagens de que necessita para reanimar a sua memória (ver A arte perdida da fumigação e A ilha do povo Dogonutee). Joana Severo: “A imagem mais chocante que guardo do meu pai durante o último ano é vê-lo em frente à televisão como que sob o efeito de um sedativo. Quando o Jaime era vivo gostava de sentar-se ao lado da televisão a olhar para nós e só espreitava para o ecrã quando algo em nós o deixava curioso.”
Os retratos de João Silvestre retomam o formato da crónica e descrevem episódios que estiveram na origem de fotografias de reportagem (só três destas fotografias existem mesmo, a imaginação do autor completa o portfolio). Mas para além da terceira série de Fronteira Óptica, onde o recurso à fotografia se torna temático, há uma relação hipnótica com a imagem no seu trabalho que me assusta. A hipnose “é um estado de sonolência provocado por artifícios de sugestão durante o qual o hipnotizador exerce um controlo considerável sobre a vontade e o pensamento.” É sob este estado que o autor parece querer deixar quem o lê.
O efeito hipnótico da fotografia cria a ilusão de que o presente está a ser moldado pelas condições criadas no instante em que a imagem foi produzida. A fotografia enquanto cavalo de Tróia do passado. Quando os dados da história não existem, imprimem-se os pormenores contingentes da imagem que lhes dá sombra. À semelhança dos retratos, a ideia que fazemos do passado corresponde a uma imagem fixa, mas o presente, à semelhança de quem o habita (e da memória que os acompanha) encontra-se em movimento. Permitam-me um interlúdio pessoal.
Aos doze anos fiz uma sessão de polaróides com o meu irmão na piscina dos bombeiros da Agualva. Na primeira fotografia tentei captá-lo a mergulhar: ele desapareceu, deixando atrás de si uma língua de espuma. Na segunda tentei retratá-lo em busto à beira da piscina, mas um colega vindo de trás emergiu da piscina: lá está ele, a zombar para a câmara, com o meu irmão desfocado a virar-se e a touca a escorregar-lhe pelo cabelo acima. Já em casa dos meus pais, na noite de consoada tentei imortalizar a minha tia Alice numa poltrona de camurça na sala de jantar dos meus pais. O meu irmão, que teimou em esquivar-se na sessão que lhe dediquei, pulou da cadeira em que estava sentado (fora do enquadramento) e saiu da sala. Tapado pela enormidade do aparelho, um modelo da Kodak que me tapava integralmente a cara, sem deixar qualquer perspectiva para além do visor, cliquei. O resultado final é o eclipse da minha tia, a seguir o movimento de fuga do meu irmão, fixado em plena correria.
RDS parece deliciar-se inteiramente com as incoerências que definem uma idade transitiva, apaixonada pela infância e incapaz levar avante uma vida independente. A sua geração, ou pelo menos a parte que lhe importou, é composta de adolescentes-tardios seduzidos pela aura de falhanço e sobre o assunto eu teria muito por onde passear. A magia é a ciência dos sonhadores (“I am a good man, I’m just a bad wizard”, explica o Feiticeiro de Oz, depois de ser apanhado por trás dum biombo no sonho de Dorothy). Observemos a magia que se eleva nos gestos daquele indivíduo, aquele ali, independentemente das gaiolas em que terá de ir debicar.
Já viram, podemos continuar? Já aqui falei do subúrbio, do imaginário adolescente, do permanente movimento entre espaço e tempo das suas personagens e da imagem fotográfica. São os eixos do seu trabalho. Existe ainda um quinto elemento, do qual só me apercebi quando andava entretido a pescar passagens em que a sua mulher, Vera São Roque, aparece. Trata-se da personagem-sombra. Eu sei que deveria ao menos explicar o que entendo por “personagem-sombra”, mas o facto de estar seguro da sua existência não me torna mais qualificado para propor uma definição.
A mãe da Joana e do Jaime é uma personagem esquiva nas crónicas familiares de Fronteira Óptica e parece ser também a única com capacidade para “penetrar aquele espaço exclusivo” a que RDS alude na penúltima crónica dos retratos de João Silvestre, e que tanto parece interessar ao autor.

"Tirei a fotografia à entrada do quarto e por isso a minha mãe, que estava sentada ao pé da janela, está fora de campo, embora a sombra dela seja visível aqui na parede do lado direito. Não se nota bem por causa do jarro com gladíolos que está em primeiro plano, com estas flores mais descaídas a fazerem uma espécie de telhado sobre a cabeça do meu irmão ."

É isto uma personagem-sombra. Alguém que está presente e não é mais do que uma silhueta atrás de um arranjo de flores (afinal acabei mesmo a propor uma definição).
Nota final a propósito da organização: os textos originais de Fronteira Óptica foram redigidos entre 1987 e 2008. Joana Severo recuperou 142 textos em papel com relatos da família, seis dos quais se encontravam na pasta Trabalhodescrita, no computador pessoal do autor. RDS incluiu 22 desses textos na versão definitiva, que deixou na pasta Obrincompleta (estão incluídos na primeira série de Fronteira Óptica em versões reescritas); os textos da segunda série, igualmente encontrados na pasta Obrincompleta, eram desconhecidos da família; quanto aos da terceira série tinham sido enviados à filha, por ocasião do seu vigésimo-segundo aniversário; por fim, Apostasia. Penúltimo texto da segunda série dedicada ao filho, optei por excluí-lo deste volume. São pequenos ensaios teóricos que não se enquadram nos textos que compõem o volume. À semelhança do título presta-se a interpretações sumarentas, mas por agora é melhor não lhes prestar atenção.

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