segunda-feira, 31 de janeiro de 2011
a dívida ou a dúvida
Premiando a sua vocação para participar em conversas para as quais não foi convocado, nem é provido de currículo adequado, Jaime Roque recebeu um castigo exemplar da mãe, que o convidou a ficar cinco minutos ao canto da sala, virado para a parede. Jaime Roque obedeceu, na condição de ficar de costas para a parede, já que o telejornal estava a começar e a televisão se encontrava no canto oposto. Sopesando talvez os prós e os contras duma possível futura carreira política, onde os seus palpites não seriam certamente postos a um canto, fixou a atenção no telejornal, onde a palavra “dúvida” era negada pelo primeiro-ministro. Ao mesmo tempo, na sala, a palavra “dívida” era afirmada, em tom de ameaça, pela mãe, em viva discussão com o pai. Da mesma forma que não entendeu o motivo da ausência de dúvidas, também não percebeu a razão dos pais terem dúvidas, o que não o impediu se sentir-se inteiramente satisfeito. De acordo com a sua visão materialista, era preferível ter, a ter em falta, pelo que continuou a assistir ao noticiário, condoído com as insuficiências da carreira politica e genuinamente orgulhoso com a privilegiada abundância da vida domestica, onde nem dívidas faltavam, apesar da sua posição não ser a mais confortável. Mas seriam os pais, detentores de dívidas, igualmente proprietários de outros mundos e fundos tão penosamente em débito por parte da classe politica? “Ó pai”, perguntou Jaime Roque do seu canto, “tu tens muitas dívidas não é?” O pai concedeu, num gesto de falsa humildade. “E dúvidas, também tens dúvidas?” Influenciado pelo exemplo governamental, o pai ergueu o queixo e respondeu que não, dúvidas era coisa que nem ele tinha. Jaime Roque ficou perturbado, virou-se para a parede, reflectiu por mais alguns segundos e tomou uma decisão. Abandonando o seu castigo, estendeu a mão ao pai e puxou-o na direcção da porta. “Vamos comprar dúvidas, antes que fechem as lojas.”
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