terça-feira, 25 de janeiro de 2011

No dia 24 de Abril, meia dúzia de minutos antes da meia-noite, na paragem que antecede o tabuleiro da ponte sobre o Tejo em direcção a Almada (frequentada por agentes da brigada de trânsito em operações stop), Vera São Roque, empregada de balcão, pariu espontaneamente com um mês de antecedência uma fedelha que viria a ser registada no dia seguinte com o nome de Joana João Roque Silvestre. O pai da criança conduzia um velho Fiat 127 branco com uma poça de água sob os pedais, resultado duma infiltração no ventilador, e com uma folga no volante que obrigava o condutor a girá-lo sensivelmente cinco centímetros antes das rodas dianteiras corresponderem com uma mudança de direcção. Depois de jantar no Monte Abraão em casa dos pais da futura mãe, o casal dirigiu-se ao parque de Monsanto. Encontravam-se os dois por cima um do outro a testar a qualidade das molas no banco de trás quando à moça lhe rebentaram as águas. Descendo pela Duarte Pacheco numa faixa intermédia, Roberto de Deus Silvestre foi surpreendido por uma carrinha que se atravessou à frente. Para evitar a colisão, desviou no sentido oposto, em direcção à ponte. Não fosse o descontrolo causado por dois imprevistos sucessivos (a namorada que entra em trabalho de parto no momento em que dela esperava um orgasmo; a iminência de ver-se obrigado a atravessar o rio quando urgia chegar à maternidade na direcção oposta) e lembrar-se-ia que lhe restava um desvio à esquerda, na direcção da Praça de Espanha. Roberto de Deus Silvestre ainda viu a placa informativa no último instante, mas a sola molhada do sapato escorregou no pedal do travão e a folga do volante traiu-lhe a direcção, acabando a resvalar pela berma, que lhe trilhou a roda dianteira do lado esquerdo. Quando chegou à paragem antes da ponte tinha o pneu vazio. A paragem antes da ponte tinha um acesso ao bairro da Tapadinha (reservado às autoridades) e Roberto de Deus Silvestre apressou-se a mudar a roda, de forma a tomar de urgência esse caminho que o faria descer até Alcântara e daí subir a Avenida de Ceuta, em direcção à maternidade. Encontrava-se a desapertar as porcas quando a namorada abriu a porta e ficou com as pernas no ar. Roberto de Deus Silvestre só teve tempo de despir o casaco e estendê-lo à frente dela. A parturiente tombou para fora do carro, pôs-se de cócoras e levou as mãos ao chão. A criança nasceu tão naturalmente como um fruto que se desprende dum ramo de árvore. Nas duas margens do rio o fogo de artifício coloria o céu*. Depois dum intervalo sem movimento, o trânsito voltou a cruzar a ponte. Roberto de Deus Silvestre conseguiu interromper a marcha dum carro, onde seguia um grupo de amigos a caminho de Lisboa, três dos quais ficaram apeados para dar lugar à ensanguentada recém-nascida envolvida num casaco enlameado, à sua esvaída mãe de cabeça tombada no ombro do parceiro e ao estupor no rosto do pai, arrepelado em mangas de camisa e a tremer do queixo no banco de trás.

* Joana Severo nasceu a 26 de Abril, mas Joana Silvestre nasce na véspera do 25 de Abril, certamente para ser bem-vinda pelo fogo de artifício que celebra a Revolução de 74.

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