sábado, 5 de março de 2011
o díptico
A Roménia é famosa pela negligência a que são votadas as suas crianças e idosos desfavorecidos. A segurança social desagregou-se com o fim da ditadura comunista mas há outro dado estatístico: é a população mais jovem da Europa. A minha estadia resumiu-se a uma semana em Bucareste, não sem que antes me tivesse apercebido de uma contradição: o carinho que os seus habitantes nutrem pelos sem-abrigo. Não é raro ver uma senhora vinda do mercado, abrir o saco das compras para oferecer uma peça de fruta ou um pacote de bolachas. Os idosos passam o dia encostados a uma parede a ler um livro de orações e sempre que recebem uma esmola aligeiram o peso das almas como recompensa. Juntamente com as igrejas, que abundam pela cidade, escondidas nas traseiras das grandes avenidas e artérias, esses reformados sem reforma são os intermediários vivos entre a religião e a crença. A fé da população é aferida pela sobrevivência daqueles que vivem na rua e as crianças perseguem os peões mais distraídos, aqueles que abdicaram da sua consciência e viram a cara para as montras. Este díptico reflecte essa dupla participação divina no quotidiano de miséria que pauta a vida da cidade. Na imagem do lado esquerdo podemos ver dois turistas a serem assediados por um bando de crianças na Calea Floreasca, uma rua que atravessa o centro da cidade e onde se concentra boa parte do seu comércio. Os miúdos puxam-lhes pela roupa, tentam enfiar as mãos nos seus bolsos ou simplesmente estendem-lhes as mãos abertas. Mas no momento em que disparei o turista de barba tentou libertar-se de uma criança que se tinha pendurado no seu braço e num gesto brusco empurrou-a para fora do passeio. O carro que vai a passar por pouco não a atropela. A imagem do lado direito passa-se na Calea Carol I, junto ao metro da Universidade. O cabo de electricidade desprendeu-se de um poste e ficou pendurado a menos de meio metro de altura do chão. Estas duas crianças divertem-se usando-o para saltar à corda. Por trás delas está um casal de namorados e tive sorte em ter apanhado a rapariga também suspensa no ar, no momento em que o namorado, bem mais alto do que o seu par, pegou nela e lhe deu um beijo. Mais à esquerda fica esta velhota acocorada junto à parede. Dir-se-ia que o carro da imagem da esquerda, depois de não ter acertado no miúdo empurrado para fora do passeio, acelera em direcção a ela, agarrada a um ícone como única defesa.
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