sábado, 5 de março de 2011
o beijo
O avião em que viajei para chegar a Grozny era de pequena fuselagem e fazia muito barulho lá dentro. Sentia os tímpanos obstruídos quando aterrei, nem a minha voz conseguia escutar. O percurso de carro fez-se em silêncio e como nevava fiquei com uma sensação de quietude, apesar do estado de destruição na cidade. A neve cobre os monumentos e as desgraças de igual maneira, à semelhança do creme de chantili que tanto barra um bolo magnífico como outro que ficou enqueijado. Os edifícios em ruínas ganham formas muito interessantes sob as camadas da neve. A arquitectura torna-se onírica, como se tivesse sido moldada por grutas. As construções não estão sujeitas às leis da geometria e a princípios de equilíbrio, antes parecem nacos de carne pendurados num talho de miudezas, pedaços de pão ratado, dentes cariados, aparas de queijo seco, cestinhas de requeijão, pastéis comidos pela metade com o recheio a sair para fora, fatias esmigalhadas de bolo com fruta cristalizada, bolos de arroz com o papel rasgado, suspiros, cavacas, etc. Comecei a escutar os primeiros sons ao entrar numa loja para me aquecer (sons ocos, depois rilhados). Num armário por trás da bancada reparei numas estatuetas de madeira: eram em forma de bustos, mas os rostos cujas faces eram muito bem delineadas e polidas estavam sem nariz, no seu lugar havia uma espécie de ranhura, como se o nariz tivesse sido esculpido não para fora da cara, mas para dentro. Outra particularidade eram as bocas, constituídas por lábios superiores exageradamente desenvolvidos e carnudos (se é que se pode utilizar esta palavra para uma estátua de madeira), enquanto o inferior nem existia (ou melhor, existia, mas ao contrário: eram lábios côncavos). A dona da loja ficou muito feliz por lhe ter comprado uma das estátuas (pela forma como lhe limpou o pó deduzi que era a primeira cliente) e só não me senti tentada a comprar mais uma por serem tão pesadas. Não me demorei muito tempo em Grozny, depois de me aperceber que estava a ser perseguida. O meu perseguidor andava enrolado num manto e por mais que os rufias que o seguiam a ele o empurrassem e lhe puxassem os braços ele não largava algo que tinha escondido por baixo do manto. Um dos tratantes passou-lhe uma rasteira, ele caiu desamparado, a estatueta que trazia escondida soltou-se e veio parar aos meus pés, deslizando pela superfície escorregadia do chão gelado. Pegou na estátua e estendeu-a na minha direcção. Afastei-me e acenei que não, julgando que queria vender-ma. Ele encostou o rosto de madeira na cara dele, enfiou o seu enorme nariz naquela espécie de ranhura e beijou a estatueta, encaixando o seu grosso lábio inferior na superfície côncava correspondente ao lábio. O pormenor mais comovente do beijo provocou a risada nos rapazes: a carícia na bochecha de madeira, pelos dedos amputados das falangetas.
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