É apenas uma placa azul com os números em branco.
Embora já tenha havido quem nela visse o reflexo de um rosto, através da superfície esmaltada, a verdade é que a única coisa visível para além da placa resulta de um erro de enquadramento. Trata-se dum chinó preso por um prego sobre a porta do nº40 na Rue des Pierres Noires. Ainda hoje me pergunto como é que não reparei num pormenor tão óbvio. Andava tão perturbada com o horror da história que queria fazer uma imagem desprovida de iconografia tanto quanto possível. A história do assassino em série que escalpelizava as suas vítimas, à semelhança dalguns guerreiros índios, prolongava-se há quatro anos e entre os belgas abundavam análises e teorias que procuravam encontrar um padrão de comportamento no assassino. Curiosamente. embora nenhuma das vítimas fosse estrangeira, o sentimento de horror estava mais presente entre os habitantes das comunidades imigrantes. Joris de Belder, um jovem botânico que encontrei num café a estudar um problema de xadrez, que também fazia a sua investigação privada sobre o caso, explicou-me que depois de conferir toda a informação disponível tinha chegado a uma conclusão simples: a quadragésima vítima haveria de ser encontrada no nº40 de uma casa com um só inquilino. A sua tesa fazia sentido: a primeira vítima fora encontrada no nº1, a segunda num nº2 e por aí em diante. Mas como evitar um crime que poderia acontecer em milhares de portas nº40? Joris, ainda não encontrara a solução. Comecei imediatamente a fotografar, com a ajuda de um mapa de Bruxelas, todas as portas nº 40. Três semanas depois de ter iniciado o trabalho (o mais rotineiro e frustrante de toda a minha carreira) fui avisada que a última vítima tinha sido encontrada. Quando cheguei ao local já havia um batalhão de fotógrafos, operadores de câmara e repórteres à entrada da rua, que entretanto fora selada. Voltei para o aparthotel, encontrei a imagem correspondente à porta nº40 na Rue des Pierres Noires e, sem ter confirmado que a tese de Joris de Belder estava correcta, enviei-a para a agência. No mesmo dia voltei a Portugal. Só quando abri o jornal no dia seguinte é que descobri que a quadragésima vítima se chamava Wauter de Belder. Seria o pai de Joris, alguém da família? Em casa de Wauter de Belder foram descobertas várias provas de que tinha sido ele o autor dos 39 crimes. A mais tenebrosa de todas era uma manta, feita com os escalpes das vítimas, a cobrir o seu corpo. O chinó, que usava para tapar a calva, tinha sido pendurado à porta de casa pelo assassino (Walter de Belder já se encontrava morto quando tirei a fotografia). Restava uma dúvida: aceitando que o autor do quadragésimo crime sabia que estava a matar o responsável pelos restantes 39, estaria ele também a par da tese de Joris?
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