quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Alexandra Lucas Coelho: E a noite roda


Depois dos relatos de viagem “Tahrir” e “Viva México”, Alexandra Lucas Coelho volta a Portugal para apresentar “E a noite roda”. É o seu primeiro romance, e é também um regresso ao Médio Oriente e a Jerusalém, onde chegou a ser correspondente do Público. O que é que acontece ao amor, num cenário de conflito, de muros e separações? E o que é que acontece à experiência jornalística, quando é invadida pela paixão?



“Tinha pressa. Mais que pressa, urgência. Precisava de me entregar.” É já na pg.114 que a narradora de “E a noite roda” escreve esta linha, depois de em seis dias visitar um colonato em Gaza, Telavive, Ramallah e o deserto do Neguev, escrever diariamente para um jornal (nunca mencionado) e tratar de instalar-se no bairro de Musrara, em Jerusalém. Ana Blau, a jornalista catalã que narra o primeiro romance de Alexandra Lucas Coelho (Lisboa, 1967), precisa de entregar-se ao trabalho e fugir de um amor impossível. Mas no dia 10 de Agosto de 2005, depois de passar a tarde na Cidade Velha, onde assiste a um concerto dirigido por Daniel Baremboim, encontrar-se-á com León Lannonne, o jornalista belga, casado, pai de três filhos, por quem se apaixonou.
Quem acompanha as crónicas e reportagens de Alexandra Lucas Coelho no Público reconhecerá temas e lugares do seu trabalho neste livro, cujo centro nervoso é Israel e o conflito israelo-palestiniano. Mas logo nas primeiras páginas, quando o nome da narradora ainda não foi revelado, e o mundo jornalístico aguarda a morte de Yasser Araft (estamos em 2004), o leitor sabe que este livro não vai ser apenas essa mistura literária de jornalismo e narrativa de viagem dos seus livros anteriores. Desde a pg. 21, alguém dorme a seu lado, num outro quarto. Ela ainda não o conhece, mas o encontro marcará a passagem para o universo íntimo da autora (para a vida privada da experiência jornalística). Até ao final, o livro saltará fronteiras: entre o público e o privado, entre paisagens e quartos, entre um conflito político e um conflito amoroso. Entre constantes viagens de trabalho e encontros de apaixonados. Entre a Europa e o Médio oriente. Entre cenas de sexo e uma correspondência febril com trocas de livros e discos e poemas para iludir a separação.
Onde estava então Alexandra Lucas Coelho a 10 de Agosto de 2005, no dia em que Ana Blau se reencontrou com Léon no Hotel Jerusalem?
“É muito fácil perceber que há uma colagem deliberada das minhas circunstâncias como jornalista a essa personagem. Várias das reportagens que a Ana Blau fez, eu fiz essas reportagens. Interessava-me absorver essas experiências. Sinto que o romance é o género que está mais próximo de absorver tudo aquilo que me interessa. Sou jornalista há mais de 20 anos e vejo isto como um caminho. O que me interessa é sempre o real. Agora a forma como me aproximo, como tento chegar a ele, isso vai-se alterando. O que me interessa continua a ser o mesmo que me levou a fazer jornalismo.”
O encontro com Alexandra Lucas Coelho deu-se num fim de tarde à beira Tejo, com vista para um desses coloridos pôr-do-sol em que Lisboa tem sido generosa este Inverno. Acompanhando a conversa, um copo de vinho branco mal servido. Desceu a temperatura, aumentou a resistência. Acabada de chegar do Rio de Janeiro, onde actualmente vive, ALC despiu o seu comprido casaco vermelho e deu a entrevista em mangas de camisa.
“O que me interessa é o real, mas partindo de um princípio em que a poesia é a forma mais extrema do real. Se conseguires, quando estás a escrever, tornar real o real, então é isso. Quando tocas de tal forma no nervo que as coisas se tornam vivas. Apenas fui ganhando coragem  para me aproximar de uma forma finalmente livre. Se o romance pode absorver tudo, pode também absorver aquilo que me interessa na prática do jornalismo.”
O entrevistador enregelou. Talvez porque ficando calado tinha mais arrepios de frio, avançou então para uma interpretação conflituosa e caprichosa do livro, o que avivou a discussão e a circulação sanguínea. Mas a entrevistada tinha voado muitas horas e dormido poucas: “A tua questão é porque é que ela se chama Ana Blau e não Alexandra? Isto não é uma autobiografia, não estou a contar o que me aconteceu quando fui correspondente no Médio Oriente. Se a parte de amor é real ou uma fantasia?” Os mal entendidos tornam-se divertidos quando há um esforço de entendimento.
“É um jogo que estou a propôr. São materiais e experiências por que passei. Eu posso pegar nesses materiais e cruzá-los, tranfigurá-los numa outra forma. Aí há uma experiência fascinante, quase infantil, de liberdade, que é de criar vidas. Claro que a Ana Blau sou eu. Só que não faria sentido que ela fosse a Alexandra no livro. Aquilo já não sou eu. Ela tem coisas de muitas outras pessoas, absorveu muitas outras experiências. A história que viveu com o Léon é uma matéria da mesma natureza de todas as outras matérias do livro. Jerusalém, Gaza, A Mancha, Roma, Barcelona, são da mesma natureza da história de amor. Estou a trabalhar também a memória. É um todo que está ligado. Esta história não existiria sem aqueles lugares. É como se as pessoas pudessem ver uma parte [jornalística] e agora possam ver a outra parte [romanceada]. É um jogo de ocultação e desocultação. Já tinha escrito sobre Gaza, mas não assim. Há um lado de intimidade que permite ver Gaza de outra forma. As zonas de sombra e de luz aqui são diferentes.”
Talvez porque as histórias de guerra nunca acabem bem e as histórias de amor terminem quase sempre mal, a conversa tornou-se cada vez mais complicada. Enfim, não tanto como a primeira vez de Ana Blau e León. O sexo sai frustrado, mas é memorável para o leitor, pela forma como a autora se detém nas nuances do desejo, do prazer, da ansiedade, da inibição, e até pela criação de figuras de estilo (“mas logo encolhes, como um bicho de conta”).
“O que é relevante para mim é se as pessoas conseguem estabelecer uma relação com aquilo que se vê. Se consegues criar uma relação física com o texto.” Apesar das cenas de sexo serem episódicas, são como juntas que unem as disparidades de uma relação torturada, contruída em permanente trânsito, entre a Europa e o Médio Oriente. A separação do par amoroso só é interrompida quando as contingências do conflito israelo-palestiniano geram acontecimentos que proporcionam o encontro. A perversidade da experiência amorosa reside no facto da união entre Ana e Léon estar dependente de novos eventos que dão continuidade ao conflito.
“A intimidade deriva das circunstâncias, é aquele contexto que molda [a personagem], a torna possível e revela todo o seu vazio. É um beco sem saída desde o princípio. Creio que a diferença que vejo entre os dois é que ela estava disposta a segui-lo até ao fim, e ele não. Ou seja, ela acreditou e ele não. Em ambos há o desejo de paixão mais do que paixão, mas no caso dela isso podia ter passado para outra fase, e nele não.”
Uma relação de amor que não é o amor, mas a fantasia, a urgência de senti-lo, de acreditar na aventura, nem que seja por ilusão.
“A nossa história é continuarmos a atirar-nos de cabeça para a paixão. É o meu livro mais ingénuo, no sentido em que só o poderia ter escrito depois de todos os outros, depois de saber o quanto as coisas são impossíveis. Na semana passada fui com uns amigos à Mangueira visitar um sambista meu amigo, o Vadinho, e no muro da lage [terraço numa favela] dele havia uma frase que dizia ‘por ser impossível foi lá e fez’. Há um mecanismo quase infantil de encantamento que talvez só seja possível quando já vimos como a aventura é impossível, e ainda assim continuamos a cair na aventura, e a desejar a aventura. Qual é a alternativa melhor?”
Alexandra Lucas Coelho procura no iphone a fotografia com a frase que citou e apercebe-se que no original o que está escrito é “não sabendo que era impossível, foi lá e fez”. “Há quinze anos eu não sabia que era impossível, ia lá e fazia, mas agora sei que é impossível.  Mas não conheço nenhuma alternativa melhor do que fazer. Há uma espécie de ponto de não retorno em que nos podemos tornar irreversivelmente cépticos. Talvez eu tenha decidido que isso não era para mim. Ou é isto ou mais vale desaparecer. Não porque haja qualquer sentido na vida, mas justamente porque não há.”
Alexandra é portuguesa, Ana catalã e León belga. Cruzam-se em viagem. São personagens de fronteira, como é de fronteira o capital episódio de Portbou, nos Pirinéus, em que Walter Benjamin é invocado. A Catalunha é tão estranhamente visualizada pela personagem de Ana Blau como é o Médio Oriente: “Creio que a relação que Ana Blau tem com Barcelona ou a Catalunha é a mesma que eu tenho com Portugal ou Lisboa, menos a de morador constante, mais a de quem parte e volta há muito tempo. O que tentei trabalhar nessa parte do texto foi a minha própria experiência de voltar a Lisboa depois de viver em Jerusalém, que era uma coisa de flaneuse flutuante, um pouco onírica. Tanto ela como ele são gente que se desprendeu de uma pátria, gente em movimento. São gente de fronteira.”
 Em “E a noite roda” há um território sagrado em disputa por dois povos, e de igual maneira o amor é um credo impartilhável. “O real é o meu milagre. Nos últimos dez anos vivi em contextos extremamente religiosos e a minha relação com essas experiências é isso: o real é o milagre. O que me interessa são aqueles homens e o Deus na cabeça deles, não o Deus deles.”
“Tive uma noção das fragilidades que este livro implicava desde o começo. Tinha que ser assim desta forma. Hesitei muito se o publicaria e de todo sinto que encontrei a minha forma de escrever um romance. Este livro é uma experiência. Aquilo que agora tenho para fazer são coisas diferentes, embora haja sempre uma ligação com os materiais, com aquilo que são as minhas perguntas, a necessidade de tocar o real, de criar uma intensidade e de que o texto crie uma existência física, que se ouça, que se toque, que tenha um relevo.”
(Março, 2012)





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