Robert Walser aprendeu a ver
olhando o irmão pintar. A pintura entrou-lhe na escrita, no lugar do amor.
O suiço Robert Walser (1878-1956) despertou a atenção do
público português em 2000, quando a imagem do seu cadáver estendido na neve
surgiu em “Branca de Neve”, o filme de João César Monteiro que causou escândalo
por ser quase integralmente às escuras. Nesse ano, a & etc publicou um
volume com três adaptações suas de contos infantis (a Branca de neve a que
César Monteiro deu voz, A bela adormecida e A gata borralheira). Seguiu-se “O
passeio e outras histórias” (Granito). Entretanto, a Relógio d’Água foi
publicando as suas obras de maior fôlego “O salteador”, “Jakob van Gunten: um
diário” e “O ajudante”, assim como as recolhas de contos “A rosa” e “Histórias
de amor”.
Acompanhado de reproduções dos quadros referenciados, “Histórias de
imagens” (ed. Cotovia, trad. Pedro Sepúlveda) reúne 25 textos sobre pintura.
Esta recolha inclui pinceladas encantadoras de literatura e uma malícia pequeno-burguesa
iluminada por rasgos de loucura. A propósito de “A ronda dos prisioneiros”,
acusa van Gogh de pintar “com correcção excessiva”. Mais à frente diz: “Fica-se
horrorizado quando / a arte não consegue nada mais belo / do que revelar o seu
ter, dever, querer / perante as almas que a olham.”
Walser passeia-se pelos quadros adentro e dá-nos a ver pormenores que
nos deixam perplexos com a sua perspicácia. O quadro ganha vida e continua a
ser pintado na página escrita! Foi assim, partindo de uma aguarela do seu irmão
Karl Walser (em que Robert, ainda miúdo, é modelo) que surgiu o romance “O
salteador”. Estes textos em esboço, alguns deles publicados em jornais e
revistas, parecem hesitar em dar continuidade às escorregadelas do autor. São
ensaios de vôo, com os quadros a servir de rampa para a sua imaginação.
“A Arlesiana”, também de van Gogh, deixa-lhe “uma impressão
semelhante a um conto sério”, e logo se expande a vida daquela mulher de
meia-idade. Tira-lhe “os duros traços do rosto”, os “olhos frios, quase maus”,
devolve-a à juventude e vai com ela numa rápida viagem pelo tempo, até repô-la
no quadro: “A sua vida era trabalhosa. Um dia, o pintor, que também não era
mais do que um pobre homem criador, disse-lhe que gostaria de a pintar. Ela
senta-se em frente dele, deixa-se retratar com tranquilidade.”
A arte vibrante de Walser reside numa digressão libertadora. A escrita
agita o interior da pintura e fá-la discorrer no tempo. Sem apoquentar-se com
metáforas, símbolos, códigos de linguagem ou outro bricabraque de história da
arte, ele entra na materialidade da pintura.
No caso de “O faial”, de Hodler, a pintura estremece de regresso à
natureza, antes do quadro ser devolvido e posto no lugar onde foi encontrado: “Ouve-se
explicitamente o som do raspar das folhas, no seu estado invernoso, que se pode
considerar alegre. Talvez o quadro não represente muito. Não se pode ostentar
com este faial e é talvez por isso que está exposto na mansarda, da qual se tem
uma vista fabulosa. Em baixo havia um lago que se estendia como seda, como um
vestido de senhora de uma transparência fina e foi aqui, em frente da galeria,
que reencontrei o quadro, atravessado por um vento frio de Inverno, não muito
forte.” Walser coloca-se no lugar de testemunha, e alude à realidade concreta
do quadro a ponto de iludir o leitor com algo que o quadro não mostra e que
passamos a ver: “não se vê como o frio e o vento frio estão representados no
quadro, assim como a agitação destas folhas, o bosque estende-se sob um céu de
azul invernoso, quase verde.”
A partir do retrato “Madame Cézanne com vestido vermelho” faz um
pseudo-documentário sobre a vida familiar; tem uma entrevista com a Olímpia de
Manet; conjuga ficção e ensaio para homenagear o pintor naturalista suiço
Albert Anker. A propósito do álbum de Anker: o parágrafo sobre “A pequena amiga”,
com uma criança velada pelos colegas que choram a sua morte, é de uma beleza tão
cândida, tão comovente, como o quadro referido.
A
beleza deste livro que tanto revela o carácter singelo de Walser reside no
facto da sua escrita em esboço se adequar ao território fronteiriço em que a
pintura termina e a escrita começa. Há um posfácio de Bernhard Echte que vem
contextualizar o acesso de Walser à geração de pintores da segunda metade do século
XIX, mas o que impressiona nem é a sua relação dialogante com as vanguardas de
então, mas a forma como um homem solitário e sem amor namora a pintura. Os
exemplos mais figurativo serão porventura o “Esboço sobre um quadro de
Fragonard”, em que sente o fremir causado por um beijo roubado, ou as carícias
que uma dama “aceita com prazer” num quadro de Boucher. “O que há de mais belo
que tal confiança, / tal calma prosperidade a dois”?
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