quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Manuel António Araújo: o rapaz que lia Rimbaud


O apocalipse de uma personagem sem libido por mulheres, ou o calvário do sexo



É pouco depois do 25 de Abril e antes da entrada de Portugal na CEE que se dão os acontecimentos de “O rapaz que lia Rimbaud” (Lugar da palavra editora), mas como é dito logo na primeira página, “a televisão em frente noticiava o país sem som”. As 140 páginas deste romance, que li de um fôlego, em quinze horas, apenas darão os factos, concretos-concrentos-concretos, da infernal caminhada para o anulamento de si mesmo de Eduardo Pavorosa, um adolescente filho de dois psicopatas que o submetem aos três tempos da dor: a antecipação do sofrimento, o castigo e os efeitos da humilhação.
Em “A Aldeia das mulheres”, o seu romance anterior, Manuel António Araújo (n. Rebordelo, Vinhais, 1956) efabulava a crónica de uma revolução sexual confinada numa pequena aldeia transmontana. Sem nunca abandonar o seu universo pícaro (a linguagem desbragada; as suas personagens lúbricas, viciosas, pervertidas; os instintos primários como matéria principal da construção das cenas), o que o autor agora aborda é o reverso da libertação sexual.
Os pequenos vícios, mentiras e obsessões de Eduardo ainda adolescente resultam como etapas de aprendizagem, que atenuam um permanente estado de pânico: “Subiu para casa com uma sensação de alívio por saber que [o pai] não lhe iria bater. Meteu a mão no bolso, retirou a prata para se certificar que tinha o cigarro da noite. Fumava sempre quando a cama dos pais rangia e, graças a Deus, a cama rangia quase todas as noites. Naquela noite não rangeu. Esperou, roidinho de vício, havia mais de dez horas que não fumava. Levantou-se da cama e pôs-se à escuta, a desejar como nunca que o pai fodesse a mãe. Mas nada. Nas outras noites, àquela hora, já tinha fumado e já estava deitado, quase a dormir. A cama rangia com os movimentos normais deles, e Eduardo, baixinho e em pensamento, incitava-os. Não aguentou mais. Abriu a porta do quarto e disse do corredor que ia fazer cocó. Fumou à pressa, porque não deixara os pais entretidos. Com quatro, cinco passas, consumiu o cigarro. No regresso ao quarto, ouviu a puta da cama a chiar. Ora foda-se! Podia ter fumado o cigarro em paz!”
Acompanhar um jovem que nunca chega a descobrir a sua sexualidade, porque nem chega a descobrir quem é, torna-se numa experiência de leitura estarrecedora. Transitamos de um registo meio-burlesco, meio-drama adolescente, até irmos dar à mais desapiedada e desoladora miséria: a de um jovem tão belo quanto Rimbaud que troca os anos de estudo em Coimbra pela deriva, pela mendicidade, pelo isolamento, a aparência monstruosa e finalmente uma doença incurável que haverá de lhe arrancar os últimos vestígios de humanidade que ainda exibia.
De humilhação em humilhação, o seu percurso é o do aniquilamento, o de um apocalipse privado. O verso “É urgente o amor” de Eugénio de Andrade é por ele invertido em “É urgente morrer”. As suas orações noturnas são pedidos para ser levado deste mundo e o cansaço torna-se um sintoma de prazer: “voltou a sentir a sensação de que iria desmaiar, uma sensação boa, e sorriu ao imaginar a cara do pai se ele caísse no passeio.”
A psicologia da personagem é dada pelo recurso constante à repetição de um tema ou acontecimento: “Uma das ilusões trágicas de Eduardo é que namorava com as raparigas sem elas saberem” (pg. 28); “Eduardo tinha a infeliz capacidade de se apaixonar sem nunca falar com as raparigas”. (pg. 38). Nesta circularidade vão-se acumulando pequenos traumas, a dor a tornar-se uma manifestação da sua impotência. Mas este recurso estilístico, em que o narrador regressa à acção anteriormente abordada um pouco como os obsessivos-compulsivos voltam a meter a chave na porta que acabaram de trancar, vai estabelecendo a gravidade de cada acontecimento, o efeito de devastação que está a exercer sobre a personagem.
É só no capítulo 13, numa altura em que Eduardo já abandonou Coimbra e vive num parque de Campismo na Figueira da Foz, que surge uma tal de Jeanne, em peregrinação sexual pelo país, que lhe oferece “Une saison en enfer” (que Mário Cesariny traduziu por “Uma cerveja no inferno”). A leitura de Rimbaud pontuará o calvário da personagem. Torna-se a sua âncora, na tentativa de identificar-se, de ter um sentimento de pertença. É também com Jeanne que os solilóquios de Eduardo dão lugar à sua primeira confidência: “Às vezes apetece-me o suicídio. Não cometê-lo como habitualmente se comete (…) entra-me uma ideia agradável de poder ser bom, começa longe, caminha para mim, e quando se instala, acho que a morte deverá saber bem. Queria provar o meu suicídio, ando a ver se descubro a forma de provar a minha morte.”
Num processo que encena a sua retirada de um lugar entre as pessoas, torna-se capital a cena de um assalto que em rigor não é assalto nenhum: é a aparência progressivamente assustadora de Eduardo, a viver na rua há anos, que causa o pânico a quem se julga assaltado: “Naquela noite entrou e mal entrou sorriu; ninguém lhe viu o sorriso porque não se lhe via o rosto, mas, por detrás daquele incrível matagal houve uma boca que sorriu. Sorriu porque achou graça ao medo. Nunca achara tanta graça ao medo. Ninguém como ele sabia como a humanidade tinha medo (…) apenas aparecia, olhava e tudo era seu.”
“O Rapaz que lia Rimbaud” devolve-nos com grande intensidade a esses anos perplexos em que uma sociedade profundamente isolada da Europa moderna se expõe a uma nova vaga de valores e comportamentos que actuarão como um vírus sobre modos de vida eminentemente rurais. A grande arte deste livro reside na forma como poupa o leitor a generalizações e contextualizações, concentrando-se antes na sua poética, eventualmente rude e provinciana, mas com uma vitalidade e uma crença absoluta no testemunho do seu olhar. Manuel António Araújo segue Eduardo Pavorosa de perto, e quando o perde de vista estabelece uma rede de ligações com outras personagens que lhe permitam tê-lo de volta. As páginas dedicadas à vidente cega Juliana, às experiências de sexo gore de Lavínia, ou ao prisioneiro Malaquias, são desvios do enredo principal. Mas o desaparecimento de Eduardo depois de ser preso estabelece uma elipse que permite manter intacta a natureza da sua sexualidade, o conhecimento que afinal tem de si mesmo, e ao mesmo tempo dar a dimensão trágica da sua exposição a algo para que nunca esteve preparado. A doença vem agraciá-lo com a experiência de morte que tanto ambicionara: “Não havia corpo. Debaixo da colcha havia um montículo, uma saliência só possível de ser feita por um corpo de criança. Não havia braços, nem pescoço. Apenas aqueles olhos (…) O branco tingira-se de azul, o azul colorira-se do picante do mar, como quando os dois, no Morris vermelho, fumavam e falavam com os olhos para lá da rebentação."
(2012)

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