Salvato Telles Menzes e Vasco Menezes, pai e filho, estão a
traduzir uma piada, mas uma piada com mais de mil páginas. À razão de 5 páginas
por dia X 2, “Infinite Jest” de David Foster Wallace está a transformar-se em “A
piada infinita”.
Quando Salvato Telles Menezes fez a sua primeira tradução o
Filho ainda não era nascido. Quase 40 anos depois Vasco Menezes (34 anos) está
a traduzir com o Pai (63) aquele que é o trabalho mais difícil na carreira de
ambos: “Infinite Jest”. Foram precisos 16 anos para chegar à língua portuguesa,
e o trabalho ainda nem vai a meio, mas “A piada infinita” (assim se chamará, na
versão portuguesa) irá inaugurar uma série de traduções da obra de David Foster
Wallace que a Quetzal se comprometeu a publicar começando no final do ano. Até
lá, diz o Pai, “vamos ter que moer muito.”
Pai e Filho trabalham separados, o Filho em Lisboa, o Pai em
Cascais. Por agora estão os dois no pátio traseiro da Igreja de Santa Catarina,
em Lisboa. As nuvens esfumam-se com o calor, e ambos trazem casacos. O Filho
abandona o seu nos ombros da cadeira da esplanada, mas o pai cita-lhe um adágio
de uso prático e o filho volta para trás, não vá o casaco fugir. Sentam-se na
bancada de um campo de jogos, para a fotografia, e depois juntam-se ao
entrevistador à sombra de uma oliveira. Passa um avião.
Pai: “De vez em quando vamos ajustando situações mais dignas de
serem já verificadas, mas no final vamos ter que nos sentar para fazer a revisão
completa, porque nem eu tenho a experiência dele nem ele tem a minha.”
Dividiram o livro ao meio e vão avançando à razão de cinco páginas
por dia cada um.
Filho: “Estamos em sintonia.”
Pai: “Não é possível mais do que isso. É assustudar olhar para
aquilo.”
Filho: “Não é só o peso [do livro], é olhar para as páginas.”
Salvato: É texto corrido e letra minúscula. Temos de ler com uma
lupa.”
Vasco: “E as notas…”
Salvato: “É uma complicação!
Wallace, por ele mesmo, apôs ao seu romance 388 notas numeradas,
acrescentadas de mais notas anexas às notas. Os tradutores tendem a adorar as
notas de rodapé e os editores a ter-lhes pavor. E no caso dos Telles Menezes
Pai e Filho? “É uma coisa que é preciso fazer com grande parcimónia”, avisa o
Pai, logo espetando uma alfinetada no Filho, a propósito de uma tradução
anterior: “Há pessoas que escrevem notas de rodapé até para corrigir o autor.”
As 1079 páginas de “Infinite Jest” vão-se transformando em “A
Piada Infinita” com a velocidade permitida por um livro baseado em descrições,
em que cada página é uma conquista. O Pai já traduziu outros dois quebra-cabeças
da literatura norte-americana do séc. XX: “V.”, de Thomas Pynchon, e “Cidades
da noite vermelha”, que traduziu com a Mãe (Maria Dulce Guimarães da Costa).
Mas o Filho, que se estreou na tradução com os livros de Chuck Palahniuk (também
em colaboração com a Mãe,) só tem como termo aproximado de comparação Thomas
McGuane, de quem traduziu “Por um fio”: “Tem páginas com uma frase. Dá imenso
prazer a ler, mas a tradução torna-se um desafio.” Curiosamente, o primeiro
livro de McGuane traduzido em Portugal foi uma colaboração do Pai com a Mãe.
Chamava-se “O Piano Devastado” (“se bem que ‘emboscado’ fizesse mais sentido”,
corrige o Filho).
E num livro tão difícil como o de Wallace, o que é mais difícil?
Filho: “Por uma questão de procura do tom certo, que agarre aquele meio-termo
entre o técnico e a pura criação literária, talvez as partes que se poderiam
designar mais científicas ou técnicas – quando discorre sobre fusão anelar ou a
fisionomia sui generis
de uma determinada arma, mas sempre com a exuberância linguística típica nele.
A questão do fôlego também se repercute na tradução. A dimensão do livro obriga
a uma preparação (tanto intelectual como física) muito maior do que a que seria
normal. O mais importante será nunca ceder à tentação de procurar acelerar o
processo e pôr em causa a qualidade do trabalho, olhar para as poucas páginas
diárias que se traduzem como parte de um amplo work in progress.”
O Pai só leu o livro depois de aceitar o trabalho: “Se tivesse
lido antes tinha dito que não [passa um avião]… mas teria pensado duas vezes!
Aquilo que eu infelizmente não mandei pôr no contrato, mas se calhar ainda vou
ter que solicitar uma adenda, é que depois de fazer este trabalho me garantam um
mês num asilo psiquiátrico para eu poder recuperar devidamente. É um trabalho
muito pesadelo, no sentido intelectual e físico. E até espiritual.”
Para se manter em forma o Filho tenta “fazer coisas em que
consiga desligar”. Vai ao ginásio três vezes por semana e também corre. Pai: “Eu
não corro. Correr is to die fitter, not to live longer! Mas ando todos os dias uma hora. É uma
disciplina indispensável. Tornam-se mais evidentes os resultados dessas
caminhadas em ritmo intenso após a tradução. Volto com a cabeça razoavelmente
fresca. Não há outro remédio. O grau depressivo deste livro é incomparavelmente
superior. Está permanentemente presente, mesmo nos grandes momentos. Há uma
descrição muito bonita que é a primeira noite de um aluno no dormitório da academia
de ténis. Os outros estão a dormir e ele está a olhar para o escuro e a pensar.
É de uma beleza lírica extraordinária e por trás está esse sentimento
depressivo que nunca deixa nenhuma página do livro.”
A
passagem favorita do Filho é a descrição “dos passeios nocturnos de um drogado,
Randy Lenz, a caminho do centro de reabilitação onde vive (a par da academia de
ténis, é o cenário central do livro) e a descoberta de que toda a raiva/frustração/ansiedade
quotidiana que sente pode ser resolvida se começar a matar animais e depois
lhes disser: ‘Pronto’... Segue-se uma longa e delirante descrição dos métodos
cada vez mais elaborados empregues nesta cura. É um exemplo perfeito do humor
satírico (e negríssimo) do Wallace.”
Há autores cuja grandeza se pode medir pela vastidão da obra
escrita. No caso de David Foster Wallace, que tinha 33 anos quando publicou “Infinite
Jest”, o seu trabalho anterior parece ter sido uma lenta e caótica preparação
desse espécie de romance-tudo, de romance-catedral, de nave-espacial-literária.
“Infinite jest” constitui-se na história da literatura norte-americana como uma
porta: uma porta que encerra a experiência pós-moderna, de hiper-intelectualização
e mega-autoconsciência, com a ironia a devorar os dedos do próprio autor; e ao
mesmo tempo uma porta que abre para o futuro próximo, com o capitalismo
transformado numa sociedade fascista do espetáculo submetida aos grandes grupos
financeiros.
Filho: “O livro escalpeliza de forma brilhante a sociedade do
espectáculo em que a minha geração cresceu, com o entretenimento e o sucesso
elevados a valores supremos, e nesse sentido sinto-me bastante próximo de questões
abordadas, como a dificuldade de estabelecer relações humanas num mundo
dominado pelos media e pela tecnologia ou a solidão e a multiplicidade de vícios
que são indissociáveis da vivência do mundo contemporâneo. Dei por mim a rir e
a ficar boquiaberto com a exuberância técnica, com todo aquele turbilhão de
ideias, mas traduzir esses aspectos é diferente. O pior [momento] que me ocorreu [durante o trabalho]foi
precisamente a consciência dessa ‘imaterialidade’ da nossa existência contemporânea
e de como ela é solitária, uma sensação que atravessa todo o livro e que uma
actividade forçosamente individual como a tradução só ajuda a aumentar.”
“Fôlego épico”,
chama-lhe o Pai. “Do ponto de vista das opções que tomou, aquilo que ele queria
só podia ser resolvido com uma coisa que tivesse este fôlego. É uma grande
panorâmica sobre uma série de coisas que vão desde a literatura à experiência
da vida. É uma visão particularmente sarcástica e negra da nossa
contemporaneidade. Antes de ler o livro não tinha ideia de ser possível
organizar tão bem estas preocupações todas, com resultados não vou dizer sempre
brilhantes, mas a esmagadora maioria das páginas são mesmo brilhantes. E há
momentos de um lirismo tal que chega a ser comovente.”
Pai: “A tradução é um trabalho que dá satisfação. Quando fiz a
minha primeira tradução [Os Sumérios], fiz aquilo com dedicação profissional
mas não retirei dali nenhum gozo. Eu era como os heróis da literatura negra
americana: mandavam-me cumprir uma tarefa e eu executava-a da melhor maneira
possível. A partir daí é que fui descobrindo que é possível obter pura satisfação
com o trabalho. Encontrar a solução para um dilema é um momento de iluminação.”
O filho consegue imaginar-se a retirar prazer de traduzir no futuro, mas a sua
perspectiva por agora “é essencialmente pragmática”. Pai: “Deve ser da idade.
Eu ainda convivi com os românticos, ele já só conviveu com os os pós-modernistas.”
O filho também nunca chegou a trabalhar em colaboração com o
gato da casa dos pais. Pai: “Quando se está a escrever, usa-se um daqueles
candeeiros baixos em cima da mesa, e há folhas, e os gatos adoram subir para
cima das secretárias, porem-se debaixo da luz e aconchegarem-se nas folhas.
Quando começam a ronronar parecem um dínamo e aquele barulho é muito agradável
para quem está a trabalhar.” Passa outro avião. Filho: “Faz falta, para
dinamizar a actividade.” As crianças de uma escola ao lado saem em algazarra
para o recreio.
O Pai, administrador delegado da Fundação D. Luís I, antigo
director de programação do extinto festival de cinema de Tróia, antigo crítico
de cinema no extinto O Diário, já vai antecipando as novas traduções que o
esperam, quando acabar a sua metade de “A Piada Infinita”: “Mason & Dixon”
de Thomas Pynchon e “Walk on the wildside”, de Nelson Algren. E vai surfando num velho sonho: uma tradução comentada, em que
possa estabelecer a partir de um só texto várias possibilidades de tradução: “Encontrar
diversas possibilidades, com algumas já a forçar a própria nota. Ir para lá
daquilo que seria legítimo é uma coisa que me agradaria fazer.” Com que
escritor? Yates, Eliot, talvez o Stevenson de “A Ilha do Tesouro” (Riem-se os
dois). “São escritores que trabalham sobre a língua, não se limitam a contar
histórias. Há uma dimensão de elaboração que tem a ver com a própria compreensão
da língua e nem todos os escritores têm esta consciência.” O Filho, que também
foi crítico de cinema, e teve uma loja com artigos de cinema no Bairro Alto, não
nega as liberdades que a interpretação permite, mas prefere concentrar-se na
voz do autor: “Tem de ficar o mais intacta possível.”
(Junho 2012)
(Junho 2012)
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