terça-feira, 30 de outubro de 2012

DF Wallace: Infinite jest em tradução


Salvato Telles Menzes e Vasco Menezes, pai e filho, estão a traduzir uma piada, mas uma piada com mais de mil páginas. À razão de 5 páginas por dia X 2, “Infinite Jest” de David Foster Wallace está a transformar-se em “A piada infinita”.

Quando Salvato Telles Menezes fez a sua primeira tradução o Filho ainda não era nascido. Quase 40 anos depois Vasco Menezes (34 anos) está a traduzir com o Pai (63) aquele que é o trabalho mais difícil na carreira de ambos: “Infinite Jest”. Foram precisos 16 anos para chegar à língua portuguesa, e o trabalho ainda nem vai a meio, mas “A piada infinita” (assim se chamará, na versão portuguesa) irá inaugurar uma série de traduções da obra de David Foster Wallace que a Quetzal se comprometeu a publicar começando no final do ano. Até lá, diz o Pai, “vamos ter que moer muito.”
Pai e Filho trabalham separados, o Filho em Lisboa, o Pai em Cascais. Por agora estão os dois no pátio traseiro da Igreja de Santa Catarina, em Lisboa. As nuvens esfumam-se com o calor, e ambos trazem casacos. O Filho abandona o seu nos ombros da cadeira da esplanada, mas o pai cita-lhe um adágio de uso prático e o filho volta para trás, não vá o casaco fugir. Sentam-se na bancada de um campo de jogos, para a fotografia, e depois juntam-se ao entrevistador à sombra de uma oliveira. Passa um avião.
Pai: “De vez em quando vamos ajustando situações mais dignas de serem já verificadas, mas no final vamos ter que nos sentar para fazer a revisão completa, porque nem eu tenho a experiência dele nem ele tem a minha.”
Dividiram o livro ao meio e vão avançando à razão de cinco páginas por dia cada um.
Filho: “Estamos em sintonia.”
Pai: “Não é possível mais do que isso. É assustudar olhar para aquilo.”
Filho: “Não é só o peso [do livro], é olhar para as páginas.”
Salvato: É texto corrido e letra minúscula. Temos de ler com uma lupa.”
Vasco: “E as notas…”
Salvato: “É uma complicação!
Wallace, por ele mesmo, apôs ao seu romance 388 notas numeradas, acrescentadas de mais notas anexas às notas. Os tradutores tendem a adorar as notas de rodapé e os editores a ter-lhes pavor. E no caso dos Telles Menezes Pai e Filho? “É uma coisa que é preciso fazer com grande parcimónia”, avisa o Pai, logo espetando uma alfinetada no Filho, a propósito de uma tradução anterior: “Há pessoas que escrevem notas de rodapé até para corrigir o autor.”
As 1079 páginas de “Infinite Jest” vão-se transformando em “A Piada Infinita” com a velocidade permitida por um livro baseado em descrições, em que cada página é uma conquista. O Pai já traduziu outros dois quebra-cabeças da literatura norte-americana do séc. XX: “V.”, de Thomas Pynchon, e “Cidades da noite vermelha”, que traduziu com a Mãe (Maria Dulce Guimarães da Costa). Mas o Filho, que se estreou na tradução com os livros de Chuck Palahniuk (também em colaboração com a Mãe,) só tem como termo aproximado de comparação Thomas McGuane, de quem traduziu “Por um fio”: “Tem páginas com uma frase. Dá imenso prazer a ler, mas a tradução torna-se um desafio.” Curiosamente, o primeiro livro de McGuane traduzido em Portugal foi uma colaboração do Pai com a Mãe. Chamava-se “O Piano Devastado” (“se bem que ‘emboscado’ fizesse mais sentido”, corrige o Filho).
E num livro tão difícil como o de Wallace, o que é mais difícil? Filho: “Por uma questão de procura do tom certo, que agarre aquele meio-termo entre o técnico e a pura criação literária, talvez as partes que se poderiam designar mais científicas ou técnicas – quando discorre sobre fusão anelar ou a fisionomia sui generis de uma determinada arma, mas sempre com a exuberância linguística típica nele. A questão do fôlego também se repercute na tradução. A dimensão do livro obriga a uma preparação (tanto intelectual como física) muito maior do que a que seria normal. O mais importante será nunca ceder à tentação de procurar acelerar o processo e pôr em causa a qualidade do trabalho, olhar para as poucas páginas diárias que se traduzem como parte de um amplo work in progress.”
O Pai só leu o livro depois de aceitar o trabalho: “Se tivesse lido antes tinha dito que não [passa um avião]… mas teria pensado duas vezes! Aquilo que eu infelizmente não mandei pôr no contrato, mas se calhar ainda vou ter que solicitar uma adenda, é que depois de fazer este trabalho me garantam um mês num asilo psiquiátrico para eu poder recuperar devidamente. É um trabalho muito pesadelo, no sentido intelectual e físico. E até espiritual.”
Para se manter em forma o Filho tenta “fazer coisas em que consiga desligar”. Vai ao ginásio três vezes por semana e também corre. Pai: “Eu não corro. Correr is to die fitter, not to live longer! Mas ando todos os dias uma hora. É uma disciplina indispensável. Tornam-se mais evidentes os resultados dessas caminhadas em ritmo intenso após a tradução. Volto com a cabeça razoavelmente fresca. Não há outro remédio. O grau depressivo deste livro é incomparavelmente superior. Está permanentemente presente, mesmo nos grandes momentos. Há uma descrição muito bonita que é a primeira noite de um aluno no dormitório da academia de ténis. Os outros estão a dormir e ele está a olhar para o escuro e a pensar. É de uma beleza lírica extraordinária e por trás está esse sentimento depressivo que nunca deixa nenhuma página do livro.”
A passagem favorita do Filho é a descrição “dos passeios nocturnos de um drogado, Randy Lenz, a caminho do centro de reabilitação onde vive (a par da academia de ténis, é o cenário central do livro) e a descoberta de que toda a raiva/frustração/ansiedade quotidiana que sente pode ser resolvida se começar a matar animais e depois lhes disser: ‘Pronto’... Segue-se uma longa e delirante descrição dos métodos cada vez mais elaborados empregues nesta cura. É um exemplo perfeito do humor satírico (e negríssimo) do Wallace.”
Há autores cuja grandeza se pode medir pela vastidão da obra escrita. No caso de David Foster Wallace, que tinha 33 anos quando publicou “Infinite Jest”, o seu trabalho anterior parece ter sido uma lenta e caótica preparação desse espécie de romance-tudo, de romance-catedral, de nave-espacial-literária. “Infinite jest” constitui-se na história da literatura norte-americana como uma porta: uma porta que encerra a experiência pós-moderna, de hiper-intelectualização e mega-autoconsciência, com a ironia a devorar os dedos do próprio autor; e ao mesmo tempo uma porta que abre para o futuro próximo, com o capitalismo transformado numa sociedade fascista do espetáculo submetida aos grandes grupos financeiros.
Filho: “O livro escalpeliza de forma brilhante a sociedade do espectáculo em que a minha geração cresceu, com o entretenimento e o sucesso elevados a valores supremos, e nesse sentido sinto-me bastante próximo de questões abordadas, como a dificuldade de estabelecer relações humanas num mundo dominado pelos media e pela tecnologia ou a solidão e a multiplicidade de vícios que são indissociáveis da vivência do mundo contemporâneo. Dei por mim a rir e a ficar boquiaberto com a exuberância técnica, com todo aquele turbilhão de ideias, mas traduzir esses aspectos é diferente.  O pior [momento] que me ocorreu [durante o trabalho]foi precisamente a consciência dessa ‘imaterialidade’ da nossa existência contemporânea e de como ela é solitária, uma sensação que atravessa todo o livro e que uma actividade forçosamente individual como a tradução só ajuda a aumentar.”
 “Fôlego épico”, chama-lhe o Pai. “Do ponto de vista das opções que tomou, aquilo que ele queria só podia ser resolvido com uma coisa que tivesse este fôlego. É uma grande panorâmica sobre uma série de coisas que vão desde a literatura à experiência da vida. É uma visão particularmente sarcástica e negra da nossa contemporaneidade. Antes de ler o livro não tinha ideia de ser possível organizar tão bem estas preocupações todas, com resultados não vou dizer sempre brilhantes, mas a esmagadora maioria das páginas são mesmo brilhantes. E há momentos de um lirismo tal que chega a ser comovente.”
Pai: “A tradução é um trabalho que dá satisfação. Quando fiz a minha primeira tradução [Os Sumérios], fiz aquilo com dedicação profissional mas não retirei dali nenhum gozo. Eu era como os heróis da literatura negra americana: mandavam-me cumprir uma tarefa e eu executava-a da melhor maneira possível. A partir daí é que fui descobrindo que é possível obter pura satisfação com o trabalho. Encontrar a solução para um dilema é um momento de iluminação.” O filho consegue imaginar-se a retirar prazer de traduzir no futuro, mas a sua perspectiva por agora “é essencialmente pragmática”. Pai: “Deve ser da idade. Eu ainda convivi com os românticos, ele já só conviveu com os os pós-modernistas.”
O filho também nunca chegou a trabalhar em colaboração com o gato da casa dos pais. Pai: “Quando se está a escrever, usa-se um daqueles candeeiros baixos em cima da mesa, e há folhas, e os gatos adoram subir para cima das secretárias, porem-se debaixo da luz e aconchegarem-se nas folhas. Quando começam a ronronar parecem um dínamo e aquele barulho é muito agradável para quem está a trabalhar.” Passa outro avião. Filho: “Faz falta, para dinamizar a actividade.” As crianças de uma escola ao lado saem em algazarra para o recreio.
O Pai, administrador delegado da Fundação D. Luís I, antigo director de programação do extinto festival de cinema de Tróia, antigo crítico de cinema no extinto O Diário, já vai antecipando as novas traduções que o esperam, quando acabar a sua metade de “A Piada Infinita”: “Mason & Dixon” de Thomas Pynchon e “Walk on the wildside”, de Nelson Algren. E vai surfando num velho sonho: uma tradução comentada, em que possa estabelecer a partir de um só texto várias possibilidades de tradução: “Encontrar diversas possibilidades, com algumas já a forçar a própria nota. Ir para lá daquilo que seria legítimo é uma coisa que me agradaria fazer.” Com que escritor? Yates, Eliot, talvez o Stevenson de “A Ilha do Tesouro” (Riem-se os dois). “São escritores que trabalham sobre a língua, não se limitam a contar histórias. Há uma dimensão de elaboração que tem a ver com a própria compreensão da língua e nem todos os escritores têm esta consciência.” O Filho, que também foi crítico de cinema, e teve uma loja com artigos de cinema no Bairro Alto, não nega as liberdades que a interpretação permite, mas prefere concentrar-se na voz do autor: “Tem de ficar o mais intacta possível.”
(Junho 2012)












       



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