quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Paul Verhoeven: Jesus da Nazaré


O realizador de Robocop dá-nos um Jesus humano, demasiado humano. De Deus, resta a palavra.


Paul Verhoeven (Amesterdão, 1938) deve a sua notoriedade ao período em que trabalhou em Hollywood, onde realizou três filmes de grande sucesso (Robocop, Instinto fatal, Desafio total), duas super-produções (Starship troopers, O homem transparente) e um filme de culto (Showgirls). Em 1986, começou a assistir às conferências do Jesus Seminar, constituído por 77 professores catedráticos de teologia, filosofia, linguística e história da bíblia. Tornou-se membro com direiro de voto e participou nas reuniões durante vinte anos. O objectivo inicial era preparar-se para fazer um filme sobre o Jesus histórico – afinal escreveu este livro, em colaboração com o seu biógrafo Rob van Scheers.
Segundo Verhoeven, no cinema “não houve ninguém que quisesse retratar Jesus apenas como homem”. Pasolini “encontrou uma solução simpática” entre uma interpretação literal do evangelho de Mateus e um olhar marxista; quanto ao “filme de terror” de Mel Gibson, “conta-nos tudo sobre Mel Gibson, mas absolutamente nada sobre Jesus”.
O livro “Jesus de Nazaré” (ed. Guerra e Paz, trad. Arie Pos) resulta de um trabalho de depuração entre o que é o material histórico e o material teológico-político-literário-linguístico encontrado nos evangelhos. As suas fontes, a sua capacidade de argumentação e de fundamentação e o seu raciocínio céptico são clarificadores, mas é a desconstruir e a remontar a narrativa que tem maior credibilidade. Nela, Verhoeven apresenta um Jesus mais transparente e realista.
O seu “apego à realidade visível” exerce um efeito de gravidade que devolve a história ao plano terreno. Verhoeven compara a rebeldia de Jesus à de Che Guevara e a sua visão à de Van Gogh, encontrando uma série de paralelismos com o político e o artista. O enquadramento socio-político da Palestina ocupada em que Jesus se moveu faz entender melhor a agressividade da sua actuação e das suas ilusões quanto ao papel de Deus na transformação do mundo, mas a grande conquista de Verhoeven é a forma como encena o roteiro de Jesus a partir de cenas que nos Evangelhos se encontram ou em elipse, ou trocadas (o Evangelho não sinóptico de João é quem lhe fornece mais dados geográficos).
Quem depende do sagrado para crer em Jesus encontrará neste livro o calvário da sua fé: Maria, de virgem, passa a engravidar como resultado de uma violação, de um adultério ou de um engate; a ascendência de Jesus descrita por Mateus revela heroínas judaicas adúlteras ou promíscua; ele relaciona-se com prostitutas, etc…
Entre o pacifista que se julgava o mensageiro da vinda do reino de Deus, a figura angustiada com uma missão escatológica, e o rebelde que passou a acreditar  na luta armada, quem mais Verhoeven valoriza é o pregador inspirado de parábolas que “abre janelas” para a presença de Deus na terra, e que “foi ocultado do pensamento cristão”.
No capítulo “Jesus, o exorcista”, a iconografia cristã começa a ficar de pernas para o ar. Revela-se irado, severo, bufa, rosna, berra, cospe nos olhos dos cegos para curá-los, “expele os demónios à pancada”. “O comportamento de Jesus nos exorcismos é de tal modo extremo, que a sua família pensava que tinha enlouquecido”. A forma como reinterpreta à luz de um ritual indiano uma história no evangelho de Marcos, de como Jesus tratou um paralítico que entrou pelo telhado, é outra maravilha de engenho interpretativo.
A popularidade do exorcista e orador messiânico fê-lo antipático ao regime. Criou inimigos. Alguns desses inimigos, que excluiu do reino de Deus, ainda estão vivos. São os ricos. “Muitos cristãos tentaram inventar uma interpretação que atenuasse a sua essência. Porém, não podem existir dúvidas sobre a autenticidade destas palavras de Jesus: a hipérbole do camelo que tem de passar pelo fundo de uma agulha é tipicamente Jesus, é a sua ‘propriíssima voz’, ipsissima vox.”
O capítulo dedicado a Lázaro é o mais original e comovente. Visualizamos o filme que Verhoeven, com 73 anos, dificilmente fará. A sua tese é que não houve milagre de ressurreição. Sendo informado de que “aquele que amava” tinha sido capturado, Jesus, depois de uma crise de confiança que durou dois dias, decidiu entregar-se para evitar que Lázaro fosse torturado. Acreditava que a sua morte era um Plano de Deus, mas “a sua confiança inabalável de que o Reino de Deus se espalhasse a curto prazo por Israel tinha sido desmentida pelos factos”. Foi neste contexto que se deu a última ceia com os seus doze discípulos.
Lázaro morreu e Jesus ficou sem razão para entregar-se. “O ‘sinal’ que Jesus pensara enxergar nunca existiu”, “estava abandonado à sua sorte. Tinha de encarar a dura realidade apenas como ser humano. Deus mantinha o silêncio.” Jesus aderiu à luta armada. Por pouco tempo. “A realidade caótica e banal era, porém, que Jesus foi preso quando não o esperava e pensava estar seguro.”
A traição de Judas é interpretada como uma invenção que cita o Samuel do antigo testamento, com Jesus no papel de David e Judas no de Aitofel (o papel do traidor teria sido uma forma dos evangelhistas se vingarem por Judas ter renegado a fé em Cristo; teria sido ainda uma solução de economia narrativa, já que era desconhecido quem entregou Jesus às autoridades).
Quanto aos 12 discípulos nenhum o acompanhava na noite em que foi capturado! Estava com outros seguidores, armados, e todos foram crucificados. As últimas palavras de Cristo antes de morrer é outro mito que rejeita: “É uma ideia absurda que alguém, durante um dos mais terríveis suplícios que o homem alguma vez inventou, tenha sido sequer capaz de proferir uma frase inteira.”
Haverá crentes que encontram neste tipo de investigações uma heresia. Ignoram que o milagre de maior alcance de Jesus foi o uso que deu à palavra. É esse dom que faz Verhoeven deplorar a veracidade da ressurreição de Cristo. As frases por ele proferidas depois de morrer nada têm que ver com o orador inspirado em vida: “Onde está a acutilância das suas palavras, a perspicácia das suas observações, o humor das suas hipérboles inteligentes? Será este o mesmo homem que inventou as belas parábolas, que se esforçava por uma renovação radical da ética judaica? ‘A paz esteja convosco…? Tendes alguma coisa para comer…? Põe a mão nas minhas feridas…? Não me toques…?’ Isto parece mais um zombie do que uma pessoa viva.”
Há ainda um apêndice hilariante, dedicado ao “Evangelho secreto de Marcos”, em que Verhoeven aborda o caso de um documento descoberto por um investigador em 1958 que dá a conhecer um Jesus gay, que ensina o segredo do reino de Deus a um jovem que passou a noite com ele. O documento provavelmente era falso, a falsificação é deliciosa.

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