Paul Verhoeven (Amesterdão, 1938) deve a sua notoriedade ao período em que trabalhou em Hollywood, onde realizou três filmes de grande sucesso (Robocop, Instinto fatal, Desafio total), duas super-produções (Starship troopers, O homem transparente) e um filme de culto (Showgirls). Em 1986, começou a assistir às conferências do Jesus Seminar, constituído por 77 professores catedráticos de teologia, filosofia, linguística e história da bíblia. Tornou-se membro com direiro de voto e participou nas reuniões durante vinte anos. O objectivo inicial era preparar-se para fazer um filme sobre o Jesus histórico – afinal escreveu este livro, em colaboração com o seu biógrafo Rob van Scheers.
Segundo
Verhoeven, no cinema “não houve ninguém que quisesse retratar Jesus apenas como
homem”. Pasolini “encontrou uma solução simpática” entre uma interpretação
literal do evangelho de Mateus e um olhar marxista; quanto ao “filme de terror”
de Mel Gibson, “conta-nos tudo sobre Mel Gibson, mas absolutamente nada sobre
Jesus”.
O
livro “Jesus de Nazaré” (ed. Guerra e Paz, trad. Arie Pos) resulta de um
trabalho de depuração entre o que é o material histórico e o material teológico-político-literário-linguístico
encontrado nos evangelhos. As suas fontes, a sua capacidade de argumentação e
de fundamentação e o seu raciocínio céptico são clarificadores, mas é a
desconstruir e a remontar a narrativa que tem maior credibilidade. Nela,
Verhoeven apresenta um Jesus mais transparente e realista.
O
seu “apego à realidade visível” exerce um efeito de gravidade que devolve a
história ao plano terreno. Verhoeven compara a rebeldia de Jesus à de Che
Guevara e a sua visão à de Van Gogh, encontrando uma série de paralelismos com
o político e o artista. O enquadramento socio-político da Palestina ocupada em
que Jesus se moveu faz entender melhor a agressividade da sua actuação e das
suas ilusões quanto ao papel de Deus na transformação do mundo, mas a grande
conquista de Verhoeven é a forma como encena o roteiro de Jesus a partir de
cenas que nos Evangelhos se encontram ou em elipse, ou trocadas (o Evangelho não
sinóptico de João é quem lhe fornece mais dados geográficos).
Quem
depende do sagrado para crer em Jesus encontrará neste livro o calvário da sua
fé: Maria, de virgem, passa a engravidar como resultado de uma violação, de um
adultério ou de um engate; a ascendência de Jesus descrita por Mateus revela
heroínas judaicas adúlteras ou promíscua; ele relaciona-se com prostitutas, etc…
Entre
o pacifista que se julgava o mensageiro da vinda do reino de Deus, a figura
angustiada com uma missão escatológica, e o rebelde que passou a acreditar na luta armada, quem mais Verhoeven
valoriza é o pregador inspirado de parábolas que “abre janelas” para a presença
de Deus na terra, e que “foi ocultado do pensamento cristão”.
No
capítulo “Jesus, o exorcista”, a iconografia cristã começa a ficar de pernas
para o ar. Revela-se irado, severo, bufa, rosna, berra, cospe nos olhos dos
cegos para curá-los, “expele os demónios à pancada”. “O comportamento de Jesus
nos exorcismos é de tal modo extremo, que a sua família pensava que tinha
enlouquecido”. A forma como reinterpreta à luz de um ritual indiano uma história
no evangelho de Marcos, de como Jesus tratou um paralítico que entrou pelo
telhado, é outra maravilha de engenho interpretativo.
A
popularidade do exorcista e orador messiânico fê-lo antipático ao regime. Criou
inimigos. Alguns desses inimigos, que excluiu do reino de Deus, ainda estão
vivos. São os ricos. “Muitos cristãos tentaram inventar uma interpretação que
atenuasse a sua essência. Porém, não podem existir dúvidas sobre a
autenticidade destas palavras de Jesus: a hipérbole do camelo que tem de passar
pelo fundo de uma agulha é tipicamente Jesus, é a sua ‘propriíssima voz’, ipsissima
vox.”
O
capítulo dedicado a Lázaro é o mais original e comovente. Visualizamos o filme
que Verhoeven, com 73 anos, dificilmente fará. A sua tese é que não houve
milagre de ressurreição. Sendo informado de que “aquele que amava” tinha sido
capturado, Jesus, depois de uma crise de confiança que durou dois dias, decidiu
entregar-se para evitar que Lázaro fosse torturado. Acreditava que a sua morte
era um Plano de Deus, mas “a sua confiança inabalável de que o Reino de Deus se
espalhasse a curto prazo por Israel tinha sido desmentida pelos factos”. Foi
neste contexto que se deu a última ceia com os seus doze discípulos.
Lázaro
morreu e Jesus ficou sem razão para entregar-se. “O ‘sinal’ que Jesus pensara
enxergar nunca existiu”, “estava abandonado à sua sorte. Tinha de encarar a
dura realidade apenas como ser humano. Deus mantinha o silêncio.” Jesus aderiu à
luta armada. Por pouco tempo. “A realidade caótica e banal era, porém, que
Jesus foi preso quando não o esperava e pensava estar seguro.”
A
traição de Judas é interpretada como uma invenção que cita o Samuel do antigo
testamento, com Jesus no papel de David e Judas no de Aitofel (o papel do
traidor teria sido uma forma dos evangelhistas se vingarem por Judas ter
renegado a fé em Cristo; teria sido ainda uma solução de economia narrativa, já
que era desconhecido quem entregou Jesus às autoridades).
Quanto
aos 12 discípulos nenhum o acompanhava na noite em que foi capturado! Estava
com outros seguidores, armados, e todos foram crucificados. As últimas palavras
de Cristo antes de morrer é outro mito que rejeita: “É uma ideia absurda que
alguém, durante um dos mais terríveis suplícios que o homem alguma vez
inventou, tenha sido sequer capaz de proferir uma frase inteira.”
Haverá
crentes que encontram neste tipo de investigações uma heresia. Ignoram que o
milagre de maior alcance de Jesus foi o uso que deu à palavra. É esse dom que
faz Verhoeven deplorar a veracidade da ressurreição de Cristo. As frases por
ele proferidas depois de morrer nada têm que ver com o orador inspirado em
vida: “Onde está a acutilância das suas palavras, a perspicácia das suas
observações, o humor das suas hipérboles inteligentes? Será este o mesmo homem
que inventou as belas parábolas, que se esforçava por uma renovação radical da ética
judaica? ‘A paz esteja convosco…? Tendes alguma coisa para comer…? Põe a mão
nas minhas feridas…? Não me toques…?’ Isto parece mais um zombie do que uma
pessoa viva.”
Há
ainda um apêndice hilariante, dedicado ao “Evangelho secreto de Marcos”, em que
Verhoeven aborda o caso de um documento descoberto por um investigador em 1958
que dá a conhecer um Jesus gay, que ensina o segredo do reino de Deus a um jovem
que passou a noite com ele. O documento provavelmente era falso, a falsificação
é deliciosa.
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