[publicado originalmente no suplemento do Público P2, em apresentação ao concerto de Lady Gaga no Pavilhão Atlântico, em Lisboa]
Na madrugada de segunda para terça-feira ainda havia
uma pessoa neste mundo que desconhecia Lady Gaga e a pessoa era eu. Essa pessoa
já não existe. Foi uma semana tempestuosa, com chuva e ventania. Muitos vídeos
depois, muitas entrevistas depois, muitos artigos, fotos, cuecas, alta costura,
laçarotes de cabelo e e e… Lembro-me de no ano passado um amigo meu insistir em
tocar na aparelhagem do carro um disco e de eu insistir em pôr o volume mais
baixo. Três vezes insistiu e em cada nova insistência fez forward para a próxima
canção. Lembro-me de olhar para a capa e da minha memória a apagar. Faixa 1.
Apagar. Faixa 2. Apagar. Faixa 3. Apagar. Faixa 4. Miguel por favor, desliga.
Ele nem queria acreditar. “É a Lady Gaga!” Ach! O nome! A senha! O acesso ao
mundo dos que estando vivos rejubilam! Apagar.
Como foi possível ignorar o maior acontecimento da
pop desde a morte de Michael Jackson? Nem tudo o que rejubila gaga. Já dizia o
nosso senhor: Olhai os lírios do campo. Lady Gaga, comparada com a música da
natureza (mesmo de natureza humana) é apenas um pingo grande na poça minúscula
que é a indústria musical actualmente. É esse pingo que esta noite vai cair no
Pavilhão Atlântico.
Já repararam na quantidade de vezes que ela cai?
Mais do que o tema da fama, da recém-descoberta virilidade feminina, mais do
que o piano, os chapéus-telefone, a defesa dos direitos dos gays, o modo de
estar entre “girls-just-wanna-have-fun” e “is there all there is?”, mais do que
a estética de opereta “plastic palace people” e os vestidos de estilistas
arrojados e os figurinos de carne de vaca de Franc Fernandez, ficou-me o tema
da queda. É uma recorrência nos vídeos, nos espectáculos… A queda é pose e
mensagem. Ignoremos-lhe o simbolismo e passemos à descrição.
Exemplo 1: No vídeo “paparazzi” (o sueco Jonas
Akerlund é o realizador Gaga) o enunciado da história fica estabelecido quando
o namorado de Lady Gaga, a meio de uma cena de amor, a leva para a varanda e a
empurra depois do parapeito;
Exemplo 2: Na cerimónia dos Grammy deste ano, depois
de interpretar “Poker face” (Laurie Ann Gibson é a coreógrafa Gaga), o
apresentador acusa-a de ser um “monstro”. Lady Gaga é deitada num caldeirão em
chamas - de onde sai por baixo, chamuscada, na companhia de Elton John, para um
dueto num piano siamês;
Exemplo 3: Na cerimónia dos prémios MTV de 2009, em
que interpreta “Paparazzi” (cenário a imitar um retábulo), depois de um solo de
piano, começa a sangrar do peito, até ser levada ao colo por um bailarino e
deposta no chão. Segue-se a ascensão, presa por cordas e com as rendas brancas
empapadas de vermelho.
A metáfora católica do pecado e da paixão pelo
excesso (que no fim se revela redentora) já fora explorada por Madonna (outra
católica filha de imigrantes italianos). Os anos passam, passou o Cristo de Mel
Gibson, passou o Anti-Cristo de Marilyn Manson. Em Lady Gaga há portanto uma
atmosfera gore muito devedora da estética de vaudeville que “Rocky horror
picture show” ou os concertos de Alice Cooper importaram para o rock nos anos
70.
Reconhece-se uma estratégia de choque, quer pelo
aparato visual, quer pela “montagem de atracções” constante: em aparições públicas,
mas acima de tudo nos vídeos e nos espectáculos ao vivo, a música é digamos
assim a linha que costura uma trama de acontecimentos e pormenores que visam
manter a atenção desperta. Lady Gaga parece depender duma corrente incessante
de acontecimentos. Trata-se de uma estratégia de invasão do imaginário mediático
e que depois, gota a gota, inocula individuo a indivíduo. Uma pessoa deita-se a
trautear-lhe as melodias, acorda com um olho dela incrustado de brilhantes,
ocorre-lhe a meio do dia uma linha de anca, ou o arco da púbis e descobre-se
penetrada por uma fedelha. Cada gesto, cada passo, cada apresentação sua vem
acompanhada de um acto, pequeno que seja, como se o ser humano que lhe dá corpo
não tivesse força de atracção própria para ter a atenção dos outros.
A pequena (155cm) Stefani Joanne Angelina
Germanotta, nascida em 1986 em Nova Iorque, que frequentou um colégio católico
(Convent of the sacred Heart, o mesmo de Paris Hilton) e estudou música e
teatro, é a linha que cose a entrapada Lady Gaga. Os figurinos que tira e põe
durante os espectáculos, o constante vestir-despir entre apresentações públicas,
a chuva de nomes de estilistas que assinam a sua roupa, a maquilhagem a fazer
lembrar os anos de glitter-rock fazem passar para segundo plano a parte que lhe
compete, mas o alinhavar da personagem não é menos interessante.
Lady Gaga resulta numa criatura polissémica, cujo
discurso, pose e tom de voz se alteram de acordo com o contexto. Lady Gaga não é
uma voz ao nível de Mariah Carey, mas tecnicamente é correcta (para cantora
branca está acima da média) e desde Annie Lennox que não sei de outra estrela
feminina da pop sozinha ao piano. Como bailarina, enfim, tem um suf -, mas onde
se destaca é a falar.
Tem um sentido de humor afinado, dá respostas
cortantes e desde Mae West (ou seja, desde há oitenta anos), que não reconhecia
uma figura popular feminina a ter uma presença tão penetrante, viril mesmo, na
abordagem do imaginário sexual. Camille Paglia acusou-a de ser uma recicladora
e que de sexy não tem nada, mas as pessoas sexy dão espectáculos horríveis. São
as pessoas horríveis que fazem espectáculos sexy. Há um nome para isso: “drag”.
A cultura “queer” desmontou o imaginário feminino para voltar a vesti-lo, em
versão postiça. Conceptualmente Lady Gaga faz algo parecido: assume o
artificialismo da iconografia feminina enquanto mulher.
No programa “Friday night” da BBC, o (sempre muito
provocador) Jonathan Ross perguntou-lhe sobre o rumor de que ela tinha um pénis.
Foi com uma “poker face” que respondeu “tenho de facto uma pila de burro enorme”.
Respostas em que nivelou por cima a baixa curiosidade de Ross: “Por que é que
havia de casar-me com um futebolista?”; “Tenho uma aparência surpreendentemente
fresca, quando acordo pela manhã”; “preferia morrer a ser vista pelos meus fãs
sem um par de saltos altos – isto é o mundo do espectáculo”.
Sobre o vestido rijo de látex que levou ao programa
dela, Ellen DeGeneres perguntou-lhe se era confortável, se conseguia respirar? “É
a moda” – como quem diz: julgavas que era um pijama? A argumentação
determinista sobre a relação
adolescente-freak-que-vira-artista-libertadora-de-freaks aborrece, mas quando
diz “[quando és jovem] queres ser como toda a gente, mas não é bem assim, por
dentro queres ser como o Boy George”, e o público se ri, e ela reage “eu pelo
menos queria”, uma pessoa interroga-se se ela não é ainda mais divertida do que
as cassetes que lhe dão a engolir sempre que muda de público alvo.
Em conversa com Jay Leno, que lhe perguntou quais
eram as suas influências, respondeu Judy Garland e Led Zepellin, numa resposta
a fazer lembrar as colagens de Andy Wahrol, quando criou Drella (Drácula +
Cinderela). E quando Leno quis saber que tipo de canções cantava na adolescência,
respondeu “cantava sobre o amor, coisas que deixaram de me interessar”.
O efeito de surpresa, no programa matutino “Good
Morning America”, não foi ter aparecido com um vestido da Chanel, mas ter
tirado os óculos, um gesto de cortesia para com a entrevistadora (que tinha
quase o dobro da sua idade) e dizer “aspiro a ser uma professora para os jovens
que se sentem tal como eu me sentia quando era mais nova”. A diferença em relação
às outra entrevistas esteve no uso da palavra “professora”.
Na primeira aula de arte dramática que teve, “o
Germe” (alcunha das colegas de liceu) aprendeu a beber café de uma caneca
imaginária. “Também consigo sentir a chuva quando não está a chover, e consigo
provocar mentalmente um orgasmo a mim mesma”.
Será genuína ou uma fabricação? Não há mistério.
Lady Gaga é uma genuína fabricação (quando lhe perguntaram se o nome dela era
mesmo Lady Gaga respondeu “sim”), mas dentro do artifício há uma pessoa a
controlar as aparências que encarna. A justificação política que deu para usar
o vestido de carne de vaca nos prémios MTV foi reles e sem piada, mas pedir à
Cher para segurar-lhe a bolsa feita com um bife argentino, mesmo reles, teve
piada.
Último exemplo alusivo ao tema da queda. Num espectáculo
em que cantou “Speechless” sentada num piano pendurado a cerca de cinco metros
de altura, com um vestido vermelho de cauda, uma gorjeira ao pescoço e uns
inacreditavelmente inúteis sapatos de salto alto, o que me pareceu mais
intrigante foi a verve da actuação e a fria indiferença aos abanões do banco. A
possibilidade de uma criatura irreal cair não é real.
[artigo publicado no P2, em 2010]
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