quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Milan Kundera: um encontro


O romancista é famoso. Com bonbons e granadas, o crítico é melhor.


Milan Kundera (n. Brno, antiga Checoslováquia,1929) ganhou fama com um romance adaptado ao cinema que fez uma época. Mas as suas recolhas de ensaios críticos são ainda mais apaixonantes. “Um encontro” é o quarto volume (os anteriores são “A arte do romance,”, “Os testamentos traídos” e “A cortina”) de um género híbrido a que podemos chamar romance autobiográfico de um leitor e amante de arte.
“Um encontro” (ed. D. Quixote, trad. Isabel St. Aubyn), que não chega a 200 páginas, é uma caixa de bombons misturados com granadas. O texto sobre o pintor Francis Bacon, em que estuda a fronteira “por detrás da qual um eu deixa de ser eu”, inclui uma história de 1972 (com o regresso da ortodoxia comunista à Checoslováquia, depois do Exército Vermelho destruir a Primavera de Praga), sobre uma rapariga que a polícia interrogou para obter informações sobre Kundera. Comecemos com o bonbom: “Era inteligente, cheia de espírito, sabia perfeitamente dominar as emoções, e andava sempre tão impecavelmente vestida que a roupa, tal como o comportamento, não permitia entrever a mínima parcela de nudez.” Segue-se a granada: “E de repente, o medo, qual faca afiada, dilacerara-a. Estava ali à minha frente, dilacerada, com o corpo fendido de uma vitela suspensa de um gancho num talho.”
Valendo-se de uma expressão de Bacon a propósito do seu trabalho – “alegre desespero” – Kundera escreve sobre alguns dos seus artistas favoritos para defender as linhas que unem a tradição ao modernismo, entre “a explosão da beleza” da carne e os mortos que dela escarnecem. 
O século XX, com os seus traumas e campos de batalha, onde se definiram as fronteiras de liberdade dos povos mas também dos artistas, continua a ser o cenário da sua atenção.
O espectáculo da morte “desta pequena ilha de tempo em que vivemos”, a pompa dos homens e a sua necessidade de se manterem em cena, é o eixo de uma digressão pelas obras de Céline, Philip Roth, Gudbergur Bergsson, Marek Bienczyk, Juan Goytisolo, García Marquez, Anatole France, Cioran, Carlos Fuentes, Herman Broch, Kafka, Chamoiseu, Aimé Cesaire, Depestre, Breton, Vera Linhartova, Óscar Milosz, Bouhumil Hrabal, Svorecky, Malaparte (literatura), Schoenberg, Xenakis, Janacek (música), e Ernest Breleur (pintura).
Rabelais paira sobre o livro como uma águia a planar sobre um campo de minas. Numa entrevista a Guy Scarpetta, a propósito da importância unívoca que Céline atribuía ao tratamento da língua falada em Rabelais, Kundera rectifica: “Céline ainda não podia saber que esta redução estética ao linguístico se tornaria um dos axiomas da tolice universitária futura (...) o romance também é: as personagens; a história; a composição; o estilo (o resgisto de estilos); o espírito; o carácter da imaginação. Pensa, por exemplo, no fogo-de-artitício de estilos de Rabelais: prosa, versos, enumerações burlescas, discursos científicos caricaturados, meditações, alegorias, missivas, descrições realistas, diálogos, monólogos, pantomimas... Falar de uma democratização da língua não explica nada desta riqueza de formas, virtuosa, exuberante, lúdica, eufórica e muito artificial.”
Este culto da não-seriedade e do artificialismo permite-lhe apreciar a influência do barroco na literatura latino-americana, “hipersensível à sedução da imaginação fantástica, feérica, onírica”, e também encontrar nela ligações secretas com os escritores de início do séc. XX do centro-leste europeu. Heranças secretas também as há, como é o caso da incrível influência que Breton exerceu sobre a literatura da Martinica, depois de uma passagem do “papa” do surrealismo por aquela ilha em 1941.
Os seus textos sobre música são ainda mais belos e surpreendentes, nomeadamente o que dedica a Iannis Xenakis, à “beleza limpa da sujidade afectiva” da sua música, “desprovida da barbárie sentimental”. Há que ouvir primeiro Xenakis para perceber a ressonância desta frase: “Encontrei alívio na música de Xenakis.” Ou perceber a mentalidade que governa uma sociedade comunista para entender esta: “este desencanto dizia respeito ao homem (...) com a sua crueldade mas também com o infame álibi de que se serve para dissimular esta crueldade, o homem sempre pronto a justificar a sua barbárie pelos seus sentimentos.” Ao “tomar partido pela sonoridade objectiva do mundo contra a da subjectividade de uma alma” Xenakis produz a mesma veemência que Kundera encontra ainda no livro do pós-guerra de Malaparte, “A pele”, ou seja, a da “supressão da psicologia”, trocada pela brutalidade de uma “beleza que delira” uma realidade demasiado louca para ser credível.
A propósito de Schoenberg, e da sua oratória “Um sobrevivente de Varsóvia”, uma das reflexões mais perturbantes sobre o dever de memória para com o holocausto: “Batemo-nos para que os assassinos não sejam esquecidos. E Schoenberg, esquecemo-lo”; os textos sobre o seu compatriota Janacek têm uma beleza desconcertante, talvez pelo rigor da análise, mas também pela comicidade rude das imagens propostas, quando compara a sua obra à corrida de um homem a quem falta uma perna, na sua luta solitária contra o sentimentalismo romântico.
No texto revisionista sobre Anatole France, a leitura que faz de “Os Deuses têm sede” recupera um romancista condenado pela lista negra dos surrealistas. Kundera expõe a importância do humor e do cepticismo, e reconhece na personagem de Gamelin uma espécie de percursor literário da “banalidade do mal” de Eichman, analisado por Anna Arendt.
Kundera continua portanto a escrever a sua história pessoal do século XX. E as contradições, que tanto desagradam às ideologias, no meio do horror, das divisões da guerra, continuam a diverti-lo: “Observo a foto de René Char ao lado de Heidegger. Um, celebrado como resistente contra a ocupação alemã. O outro, denegrido por causa da simpatia demonstrada, em determinado momento da vida, pelo nazismo emergente. A foto data dos anos do pós-guerra. Estão de costas; boné na cabeça, um alto, o outro baixo, caminham na natureza. Gosto muito desta fotografia.”

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