Milan Kundera (n. Brno, antiga Checoslováquia,1929) ganhou fama com um romance adaptado ao cinema que fez uma época. Mas as suas recolhas de ensaios críticos são ainda mais apaixonantes. “Um encontro” é o quarto volume (os anteriores são “A arte do romance,”, “Os testamentos traídos” e “A cortina”) de um género híbrido a que podemos chamar romance autobiográfico de um leitor e amante de arte.
“Um encontro” (ed. D. Quixote, trad. Isabel St. Aubyn), que não chega a 200 páginas, é uma
caixa de bombons misturados com granadas. O texto sobre o pintor Francis Bacon,
em que estuda a fronteira “por detrás da qual um eu deixa de ser eu”, inclui
uma história de 1972 (com o regresso da ortodoxia comunista à Checoslováquia,
depois do Exército Vermelho destruir a Primavera de Praga), sobre uma rapariga
que a polícia interrogou para obter informações sobre Kundera. Comecemos com o
bonbom: “Era inteligente, cheia de espírito, sabia perfeitamente dominar as emoções,
e andava sempre tão impecavelmente vestida que a roupa, tal como o
comportamento, não permitia entrever a mínima parcela de nudez.” Segue-se a
granada: “E de repente, o medo, qual faca afiada, dilacerara-a. Estava ali à
minha frente, dilacerada, com o corpo fendido de uma vitela suspensa de um
gancho num talho.”
Valendo-se de uma expressão de Bacon a propósito do
seu trabalho – “alegre desespero” – Kundera escreve sobre alguns dos seus
artistas favoritos para defender as linhas que unem a tradição ao modernismo,
entre “a explosão da beleza” da carne e os mortos que dela escarnecem.
O século XX, com os seus traumas e campos de
batalha, onde se definiram as fronteiras de liberdade dos povos mas também dos
artistas, continua a ser o cenário da sua atenção.
O espectáculo da morte “desta pequena ilha de tempo
em que vivemos”, a pompa dos homens e a sua necessidade de se manterem em cena,
é o eixo de uma digressão pelas obras de Céline, Philip Roth, Gudbergur
Bergsson, Marek Bienczyk, Juan Goytisolo, García Marquez, Anatole France,
Cioran, Carlos Fuentes, Herman Broch, Kafka, Chamoiseu, Aimé Cesaire, Depestre,
Breton, Vera Linhartova, Óscar Milosz, Bouhumil Hrabal, Svorecky, Malaparte
(literatura), Schoenberg, Xenakis, Janacek (música), e Ernest Breleur
(pintura).
Rabelais paira sobre o livro como uma águia a planar
sobre um campo de minas. Numa entrevista a Guy Scarpetta, a propósito da importância
unívoca que Céline atribuía ao tratamento da língua falada em Rabelais, Kundera
rectifica: “Céline ainda não podia saber que esta redução estética ao linguístico
se tornaria um dos axiomas da tolice universitária futura (...) o romance também
é: as personagens; a história; a composição; o estilo (o resgisto de estilos);
o espírito; o carácter da imaginação. Pensa, por exemplo, no fogo-de-artitício
de estilos de Rabelais: prosa, versos, enumerações burlescas, discursos científicos
caricaturados, meditações, alegorias, missivas, descrições realistas, diálogos,
monólogos, pantomimas... Falar de uma democratização da língua não explica nada
desta riqueza de formas, virtuosa, exuberante, lúdica, eufórica e muito
artificial.”
Este culto da não-seriedade e do artificialismo
permite-lhe apreciar a influência do barroco na literatura latino-americana, “hipersensível
à sedução da imaginação fantástica, feérica, onírica”, e também encontrar nela
ligações secretas com os escritores de início do séc. XX do centro-leste
europeu. Heranças secretas também as há, como é o caso da incrível influência
que Breton exerceu sobre a literatura da Martinica, depois de uma passagem do “papa”
do surrealismo por aquela ilha em 1941.
Os seus textos sobre música são ainda mais belos e
surpreendentes, nomeadamente o que dedica a Iannis Xenakis, à “beleza limpa da
sujidade afectiva” da sua música, “desprovida da barbárie sentimental”. Há que
ouvir primeiro Xenakis para perceber a ressonância desta frase: “Encontrei alívio
na música de Xenakis.” Ou perceber a mentalidade que governa uma sociedade
comunista para entender esta: “este desencanto dizia respeito ao homem (...)
com a sua crueldade mas também com o infame álibi de que se serve para
dissimular esta crueldade, o homem sempre pronto a justificar a sua barbárie
pelos seus sentimentos.” Ao “tomar partido pela sonoridade objectiva do mundo
contra a da subjectividade de uma alma” Xenakis produz a mesma veemência que
Kundera encontra ainda no livro do pós-guerra de Malaparte, “A pele”, ou seja,
a da “supressão da psicologia”, trocada pela brutalidade de uma “beleza que
delira” uma realidade demasiado louca para ser credível.
A propósito de Schoenberg, e da sua oratória “Um
sobrevivente de Varsóvia”, uma das reflexões mais perturbantes sobre o dever de
memória para com o holocausto: “Batemo-nos para que os assassinos não sejam
esquecidos. E Schoenberg, esquecemo-lo”; os textos sobre o seu compatriota
Janacek têm uma beleza desconcertante, talvez pelo rigor da análise, mas também
pela comicidade rude das imagens propostas, quando compara a sua obra à corrida
de um homem a quem falta uma perna, na sua luta solitária contra o
sentimentalismo romântico.
No texto revisionista sobre Anatole France, a
leitura que faz de “Os Deuses têm sede” recupera um romancista condenado pela
lista negra dos surrealistas. Kundera expõe a importância do humor e do
cepticismo, e reconhece na personagem de Gamelin uma espécie de percursor literário
da “banalidade do mal” de Eichman, analisado por Anna Arendt.
Kundera continua portanto a escrever a sua história
pessoal do século XX. E as contradições, que tanto desagradam às ideologias, no
meio do horror, das divisões da guerra, continuam a diverti-lo: “Observo a foto
de René Char ao lado de Heidegger. Um, celebrado como resistente contra a ocupação
alemã. O outro, denegrido por causa da simpatia demonstrada, em determinado
momento da vida, pelo nazismo emergente. A foto data dos anos do pós-guerra.
Estão de costas; boné na cabeça, um alto, o outro baixo, caminham na natureza.
Gosto muito desta fotografia.”
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