O filósofo norte-americano Richard Rorty considerava Vladimir Nabokov e George Orwell os escritores de língua inglesa mais importantes do séc. XX. Ambos abominavam o poder (ou a crueldade subjacente ao exercício do poder) e desprezavam os idólatras do poder (“snobs” no vocabulário de Orwell, “filisteus” na versão nabokoviana). Dito isto, o percurso dos dois não podia ter sido mais oposto. Nabokov seguiu uma via apolítica e individualista, Orwell manteve-se politicamente envolvido: “Não existe literatura genuinamente desligada da política”.
Para Orwell, não existia literatura desligada da política: "A literatura é um esforço para influenciar o ponto de vista dos nossos contemporâneos, registando as nossa experiências", escreveu em "A prevenção da literatura" (publicado em 1946 e incluído na colectânea de ensaios "Livros & Cigarros", igualmente publicado pela Antígona), onde também defende que a "imaginação, à semelhança de certos animais selvagens, não vinga em cativeiro".
Dos sete textos incluídos na colectânea, cinco foram escritos depois da Segunda Guerra Mundial e o único que foi escrito durante alude a memórias anteriores à Primeira Grande Guerra! "Tenho de reconhecer que não houve nada no decurso da guerra que me tenha emocionado tanto como a perda do Titanic (...) o que mais me impressionou foi o facto de, no derradeiro momento, o Titanic se ter elevado subitamente na vertical (...) as pessoas agarradas à popa foram erguidas no ar (...) Isto causava-me na barriga uma impressão de afundamento que ainda hoje consigo sentir, ou quase. Nada do sucedido na guerra alguma vez me causou a mesma sensação."
Orwell é um escritor espantosamente vívido em imagens subjectivas. Uma simples palavra (margarina) basta para dar ideia do "horrível egoísmo das crianças", indiferentes à guerra, mas não ao estômago. Em "Assim morrem os pobres", memória de uma estadia num hospital em Paris, um pai, internado, e uma filha, de visita, reencontram-se para o aguardado gesto da "rapariga a ajoelhar junto da cama" e "a mão do velho pousando-lhe na cabeça". "Em vez disso, porém, ele limitou-se a estender-lhe o urinol, que ela lhe tomou prontamente das mãos e esvaziou para dentro do receptáculo."
O seu olhar mordaz sobre as riquezas da pobreza mantém intacta a vivacidade expedita da juventude e atinge o limite da sua maestria em "Ah, ledos, ledos dias", sobre os anos de internato em Cyprian'. Nele se revela como se molda um ser às necessidades de um império, e como, criando um eu alternativo, germina uma semente de rebelião: "uma criança aceita os códigos de conduta que lhe apresentam, mesmo quando os viola. Desde os oito anos de idade, ou antes até, a consciência do pecado nunca me abandonou por completo. Se procurava parecer insensível e desafiador, tratava-se apenas de uma fina película a cobrir uma amálgama de vergonha e desânimo. Ao longo de toda a minha meninice, habituou-me a profunda convicção de que não prestava, de que estava a desperdiçar o meu tempo, a esbanjar os meus dotes, a dar mostras de uma monstruosa loucura, maldade e ingratidão - e não havia forma de escapar a isto, parecia-me, porque vivia rodeado de leis que eram absolutas, como a lei da gravidade, mas a que não me era possível obedecer."
(2010)
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