Cada artista desenvolve as suas maneiras particulares de conquistar a maturidade e de preservar também algo da juventude. No caso de Julian Barnes (n. 1946, Leicester), a sua juventude revela-se pela forma como o admirador de arte e o leitor continuam a ser mais evidentes do que o escritor. Isso acontecia já em 1984 quando publicou “O Pagagaio de Flaubert”, e continua a sê-lo com “Nada a temer” (ed. Quetzal, trad. Helena Cardoso), uma digressão sobre o envelhecimento e a morte, em que a revisitação do seu passado familiar, depois da morte dos pais, vai sendo intercalada com uma série tão brilhante quanto cansativa (e por vezes redundante) de citações relativas ao tema dos seus escritores de eleição, assim como de anedotas biográficas desses mesmos escritores. Destaca-se a presença tutelar de Jules Renard (e, claro está, Flaubert – a literatura francesa é tão estruturante na obra de Barnes quanto as viagens e o contacto com a cultura francesa o foram desde a sua infância).
Independentemente
das magníficas histórias que vai contando retiradas dos livros que leu, os
aspectos mais encantadores e originais surgem no primeiro terço de “Nada a
temer”, quando um descrente em Deus e na vida depois da morte (“a ideia de Ele
me observar enquanto eu me masturbava era absurda; ainda mais absurda era a noção
de que todos os meus antepassados mortos também podiam estar na fila a ver”)
esboça a relação com Jonathan Barnes, o seu irmão filósofo e outro descrente. O
desentendimento dos irmãos no que à memória diz respeito parte em dois o
passado que viveram juntos: “O meu irmão desconfia da verdade essencial das memórias;
eu desconfio do modo como as colorimos (…) o meu irmão pode ficar com a memória
duvidosa e as ideias gerais, enquanto eu fico com a memória fiel e as ideias
particulares.” A frase mais cómica deste diálogo é porventura dita por um
terceiro elemento, a mãe dos dois, quando faz alusão à obra dos filhos: “um dos
meus filhos [o filósofo] escreve livros que eu posso ler mas não consigo
entender, e o outro [o romancista] escreve livros que eu consigo entender mas não
posso ler.”
Barnes-leitor
começa por criar uma relação muito divertida entre a leitura que faz da morte
na literatura e a relação vivencial que teve com ela, quer em experiências íntimas,
quer na observação do processo de envelhecimento dos seus familiares e amigos.
Há uma aparência de simplicidade, matizada com subtilezas e requintes, cujo
principal efeito é atenuar o peso das emoções, das ideias, mas também da erudição
quase esmagadora do autor (a escrita de Julian Barnes avança sob o peso não só
dos seus escritores favoritos, mas também daquilo que eles disseram e
escreveram sobre o tema da morte). A sua arte revela-se nos momentos em que as
comissuras dos lábios e das pálpebras do leitor desenham o mesmo sorriso tão
característico no rosto de Barnes. É uma mistura de sentido de humor e
tristeza, de renitência e malícia.
Barnes
pode ter escandalizado o sentido de bom gosto da sua mãe quando começou a
publicar, mas não é um escritor do excesso. Ele faz antes um exercício de
equilibrismo sobre o modo de vida burguês, em que se revela um ser e um estar
feito de rotinas, gestos e hábitos familiares, que tanto corroem e envilecem as
relações, como também deixam escapar aparas de uma poética do detalhe em tom
menor. O tema das unhas, por exemplo, pontua o livro. O esmero que a mãe de
Barnes põe no seu trato leva-a dizer que preferia ficar surda a ficar cega –
deixando de ver não podia arranjá-las. No dia em que acompanha a mãe à
conservatória do registo civil, para assinar a certidão de óbito do marido, a
funcionária de serviço faz-lhe o único elogio que alguém lhe faz em 287 páginas
do livro: “Ah, mas que unhas tão bem arranjadas!” A propósito dos últimos anos
de vida do pai, Barnes escreve: “Quando me lembro do meu pai, penso muitas
vezes nas unhas encurvadas na ponta dos dedos.” E quando quer comentar a rendição
da mãe à morte que se aproxima, volta ao tema: “Via-se que passara muito tempo
desde que as arranjara; as unhas cobertas de verniz espesso, cuidadosamente
arranjadas, tinham continuado a crescer e deixado na base uns três milímetros
claros, de brancura sem verniz. As unhas que ela imaginara que arranjaria,
mesmo afundada na surdez. Ergui os olhos das cutículas: os dedos da mão e do
braço morto estavam inchados e tinham agora o tamanho e a textura de cenouras.”
Educado
por uma família meio agnóstica, meio-ateia, Julian Barnes faz aqui o relato
daquilo que é o desalento comedido e resignado de quem só espera esquecimento e
vazio depois da morte. O obituário que escreve para si mesmo na pág. 208 tem o
sentido de humor dessa inquietude: “Após um começo profissional lento e pouco
endinheirado, alcançou mais sucesso do que esperara. Após um começo emocional
lento e precário, alcançou a felicidade que a sua natureza permitia. (“Tive uma
vida feliz, eivada de desespero.”). Apesar do egoísmo dos seus genes, não
conseguiu – ou melhor, recusou – transmiti-los, porque acreditava também que
essa recusa constituía um acto de livre arbítrio face ao determinismo biológico.
Escreveu livros e depois morreu. Embora um amigo mordaz pensasse que a vida
dele se dividia entre a literatura e a cozinha (e a garrafa de vinho), havia
outros aspectos: amor, amizade, música, arte, sociedade, viagens, desporto,
humor. Era feliz na companhia de si próprio, desde que soubesse quando essa
solidão terminaria. Amava a mulher e temia a morte.”
Ainda
assim as penas da decadência são as que mais assustam o autor. Não se deixa
convencer com a serenidade trazida pela velhice: “Receio ser como aquele homem
de letras de uma cortesia inata, que conheci e que, ao ficar senil, começou a
falar constantemente à mulher nas fantasias sexuais mais extremas, como se isso
fosse o que secretamente sempre desejara fazer-lhe. Receio ser como Somerset
Maugham octogenário, que baixava as calças atrás do sofá e defecava no tapete
(apesar de isso me fazer lembrar alegremente a minha infância). Receio ser como
aquele meu amigo idoso, homem ao mesmo tempo refinado e cheio de melindres,
cujo olhar mostrava um pânico animal quando a enfermeira do lar anunciava,
diante das visitas, que era hora de mudar a fralda.”
“Nada
a temer” lê-se um pouco como se escutam as recordações magníficas de certos
velhos energéticos: encantam no início, suportam-se depois, até deixar de haver
paciência. Ele só quer a nossa atenção para nos dar a ver aquilo que tanto o
apavora e que é a redução à morte. Podia ser apavorante, mas torna-se
aborrecido.
Este Julian Barnes que tanto me encantou com os seus primeiros livros ("O PAPAGAIO DE FLAUBERT", "MESA LIMAO", "ARTHUR & GEORGE", com a idade tem vindo a tornar-se aborrecido, ´já "O SENTIDO DO FIM" tinha sido o começo da chateza e este "NADA A TEMER" que tinha para ser um bom livro é efectivamente um grande aborrecimento.
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