Uma exposição que é uma tomada de poder, primeiro simbólica,
depois definitiva, da mulher representada na pintura. Em “Heroínas” – no Museu
Thyssen, Madrid – os arquétipos do feminino herdados de um mundo de homens são
reunidos, revisitados, desconstruídos e reconstruídos para dar a ver a Cidade
das Mulheres.
À frente de uma grande mulher haverá sempre pequenos homens a
querer fixá-la. Ser mulher não basta: “Gaston Lachaise tinha um Deus”, disse
Louise Bourgeois, “esse Deus era uma mulher, a mulher dele, que pôs num
pedestal, literalmente e figurativamente”. A versão figurativa dessa mulher
adorada – Isabel Dutaud Nagle, por quem o escultor francês emigrou para os Estados Unidos
em 1906 – está agora com uma mão na coxa e a outra na anca. Imponente, altiva,
contempla-nos do alto do seu pedestal, à esquerda de quem entra na sala de
exposições temporárias do Museu Thyssen-Bornemisza, em Madrid. Esta Mulher de
Pé (1932) em bronze, rebaptizada Heroína, faz figura de porteira na exposição
das “Heroínas” (até 5 de Junho).
Partindo de arquétipos femininos da Grécia Antiga, transfigurada
pelo símbolo, pela máscara, pelo trabalho, pelo carácter, pelas acções, pelo
rumo da história, ou tão somente pelo acto de se auto-retratar, o feminino é
exposto obedecendo a sub-temas: ela é solitária, cariátida, ménade, atleta,
couraçada, amazona, maga, mártir, mística, leitora e pintora.
O objectivo da exposição, nas palavras do seu director artístico
Guillermo Solana, é dar a ver “imagens que sejam uma fonte de poder para as
mulheres”. “A história de arte ocidental abunda em imagens de mulheres
sedutoras, complacentes, submissas, submetidas. ‘Heroínas’ é uma antologia de
mulheres fortes: activas, independents, criadoras, triunfantes”, explica Solana,
para quem a condição primeira da heroína é a solidão.
Na primeira sala, dedicada às solitárias, apenas se encontra um
homem entre as visitantes. A vintena de mulheres que o sitiam são adolescentes,
adultas, sexagenárias e contemplam três mulheres de mão no queixo: uma Ifigénia
de Feuerbach, uma Penélope em bronze de Bourdelle e outra de Lord Frederick
Leighton. Do lado esquerdo, há um Entardecer (1888) de Munch: uma mulher de
chapéu de palha na cabeça, mãos juntas sobre os joelhos, olhar absorto: é Laura,
a irmã mais nova do pintor (onze anos antes de voltar a ser pintada num asilo,
onde foi internada com um diagnóstico de histerismo).
Na parede que faz esquina, Quarto de hotel (1931) de Hopper:
sentada na cama, em combinação, as malas no chão e o vestido sobre o sofá, uma
mulher de cabelo curto lê o horário de transportes. Há ainda uma fotografia de
Sarah Jones, da série Camilla (1999). Uma mulher jovem sentada na cama
debruça-se para a frente e olha para baixo. Parece hesitar perante o abismo.
A sala das solitárias foi concebida em volta do tema “nostos”, que
na literatura grega clássica se configura em dois papéis: o do herói ausente e
o da mulher que o espera, mas no caso de Munch ou Jones as mulheres não
esperam. A sua relação é com a ausência. A escolha do quadro de Hopper resulta
assim numa síntese: a mulher está à espera, mas tornou-se agente do seu
destino: é ela que vai partir.
As cariátides, na arquitectura grega, são as colunas em forma de
mulher que sustentam a cobertura do templo de Erecteion. A sala que lhes é dedicada é a mais celebratória, apesar de
só incluir motivos rurais. Há quatro pinturas, todas do séc. XIX, em que os
modelos figuram de braços erguidos: há uma camponesa de Bouguereau, a afiar a
lamina da sua “Segadeira” (1872) e outras três pintadas por Jules Breton: num
rochedo à beira-mar com uma bilha na cabeça, “Na fonte” (1892); com uma braçada
de trigo e uma bilha de água ao ombro, ao “Amanhecer” (1896); com uma saca à
cabeça e a foice na cintura, à luz do crepúsculo onde brilha Vénus, “A estrela
do pastor (1887). Há ainda a “Aguadeira” de Goya (1810), uma “Camponesa com
dois molhes de feno” de Pissarro (1883), a “Rapariga com um pau vermelho” de
Malévitch (1933) e uma “Cariátide” de Janine Antoni (2003), em que a autora se
auto-retrata com uma ânfora na cabeça. A fotografia, em fundo branco, está
invertida. À frente da moldura, no chão, jazem os cacos de uma ânfora. Esta
desconstrução pós-moderna de motivos clássicos define o dispositivo da
totalidade das salas.
Na
sala dedicada às Ménades, destaca-se uma estátua de bronze de Rodin suspensa no
ar. É “Íris, mensageira dos deuses (figura em voo)”, 1891: o braço direito de
um corpo sem cabeça e sem braço esquerdo a segurar no pé, com o joelho por
baixo da axila; na sala das atletas, apesar do jogo de rimas entre duas
arqueiras (“Lisa Lyon” de Mapplethorpe, 1982; “As belas arqueiras” de William
Powell Frith, 1872), impõe-se a espiralada volumetria de Rubens em “Diana
caçadora”,1620.
Na
sala das encouraçadas, surge a primeira de três fotografias de e com Marina
Abrámovitch. Ela é a “virgem guerreira - Pietá com Jan Fabre” (2005), a rimar
com “Tancredo baptizando Clorinda” (1600), de Tintoretto. Tancredo e Clorinda é
uma tragédia de Torquato Tasso sobre dois amantes que se encontram numa batalha
entre cristãos e sarracenos. Vestem armaduras, não se reconhecem e lutam entre
si até Tancredo ferir Clorinda mortalmente (na história ressoa a guerra dos
balcãs que fragmentou as diversas regiões e povos da Ex-Jugoslávia, onde
Abrámovitch nasceu); ela encerra a exposição no Museu Thyssen, com “O herói II”
(2008), em que monta um cavalo branco e empunha uma bandeira branca; já na
Fundación Caja Madrid, na sala dedicada às místicas, surge a levitar numa homenagem
a Santa Teresa d’Ávila em “A cozinha I” (2009, trabalho que pertence à colecção
BESart).
O
tema das virgens guerreiras inclui uma Atenea (1659) de Rembrandt cujo
esplendor ensombrece as Joana d’Arc de Rubens (1640) e Dante Gabriel Rossetti
(1882). A história do quadro é um jogo de máscaras. Antes de ser adquirido por
Calouste Gulbenkian, integrou a colecção do Ermitage, em São Petersburgo, cujo
primeiro catálogo o identificou como figurando Palas (Palas Ateneia, a deusa
grega da guerra). Mas no inventário da colecção Badouin, de onde procedia a
obra, tinha o título “Retrato de Alexandre com a armadura de Palas”. Seguem-se
outros nomes para identificar o quadro: Marte, Tito, jovem guerreiro. Afinal,
trata-se de uma mulher ou de um homem? Solana resolve o dilemma com sentido de
humor: “Se Rembrandt representa a deusa Palas vestida com armadura trata-se de
um caso de travestismo convencional; mas se o tema for Alexandre disfarçado com
a armadura de Palas estamos perante um caso de travestismo ao quadrado.
Na sala dedicada às Amazonas ribomba uma apropriação política do
poder feminino através da guerra dos sexos. Os trabalhos contemporâneas da
norte-Americana negra Renee Cox, da
britânica de origem palestino-libanesa Mona Hatoum, ou do colectivo
russo AES+F, estão reféns de um discurso panfletário. Já Nancy Floyd e Rineke
Dijkstra apresentam corpos de mulheres enquanto militares. Goya, com duas
água-fortes de técnica mista que são também os trabalhos de dimensão mais
pequena, problematiza o papel das mulheres na série “os desastres da Guerra”
(1863) com outra subtileza: acendendo a mecha de um canhão sobre um tapete de
cadáveres masculinos; lutando contra as armas de fogo dos homens com pedras,
paus e facas.
A mulher enquanto ser que constrói um mundo paralelo que só a ela
lhe pertencem surge já no edifício da
fundação Caja Madrid. Há um óleo de grandes dimensões (500x374cm), de Jean
Jacques Scherrer, em que figura a “Entrada de Joana d’Arc em Orleães” (1887).
Uma cidade inteira, com as suas diversas classes sociais, cerca a “guerreira
virgem” com centenas de olhos. Há qualquer coisa de loucamente exterior à cena:
é o olhar de Joana d’Arc!
O
tema religioso é no entanto menos forte do que as variações profanas. São
explorados os poderes espirituais de magas, mártires e místicas, estigmatizadas
como bruxas, loucas ou histéricas. A estilização romântica, erótica, destes
temas revela o quanto deste mundo feminino pertence a um domínio masculino.
Pela
forma como a sua “Santa Catarina de Alexandria” (1597) confronta o olhar do
espectador, Caravaggio, mais do que pintar a mártir, parece antes interessar-se
por um corpo sitiado. Ela segura uma espada nos dedos e tem o ombro direiro
apoiado numa roda – alusão aos instrumentos usados para a sua tortura e morte.
Como escreve Rocío de la Villa, perante o erotismo invertido e vagamente
misógino das santas decapitadas, “só Caravaggio retém o sentido político e
profundamente moral da representação”. Caravaggio vem interromper o efeito de
hipnose causado pela figuração do feminino: 48 dos 71 quadros até aí
apresentados são trabalhos de homens!
A
cidade das mulhers encenada pela exposição é afinal um exercício de
colonialismo do imaginário. Marián Lopez F. Cao, autora do recente “Mulier me
fecit – hacia un análisis feminista del arte y su educación”, escreve que
“é importante constatar como determinados aspectos icónicos ou formais da imagem estão ligados a características de género (…) Enquanto pertencentes a uma sociedade que privilegia o masculino, e como seres integrados nela, a nossa visão faz-se para atender a normas privilegiadoras do masculino. Por vezes, a nossa visão tem de tornar-se masculina para compreender determinadas imagens, enquanto o contrário quase nunca acontece. Por isso, é essencial desconstruir esse olhar do poder, esse olhar discriminatório, que se opõe a nós”.
“é importante constatar como determinados aspectos icónicos ou formais da imagem estão ligados a características de género (…) Enquanto pertencentes a uma sociedade que privilegia o masculino, e como seres integrados nela, a nossa visão faz-se para atender a normas privilegiadoras do masculino. Por vezes, a nossa visão tem de tornar-se masculina para compreender determinadas imagens, enquanto o contrário quase nunca acontece. Por isso, é essencial desconstruir esse olhar do poder, esse olhar discriminatório, que se opõe a nós”.
Seja
na sua vertente mágica, sexualizada, ou doméstica (a sala das leitoras inclui
os trabalhos mais bonitos, mais íntimos, e mais inquietantes), a mulher
encontra-se sitiada. Ela é o modelo e por vezes o olhar. Mas a visão, que é
patriarcal, não lhe pertence. A varanda interior do edifício na Plaza de san
Martín, que fecha a exposição, é a secção em que figuram trabalhos de mulheres
pintoras. É quando finalmente se compreende o verdadeiro conflito de
“Heroínas”.
Não
se trata de criar um frente-a-frente entre quadros de homens que fazem parte da
história da pintura e de mulheres artistas a reverem essa iconografia à luz da
contemporaneidade. O conflito está na forma como as mulheres se encontram colonizadas
por um olhar que lhes é exterior e anterior, sejam elas pintoras ou modelos.
Talvez por isso, o primeiro quadro visionário do mundo feminino é o de
Artemisia Gentileschi. O seu “Autoretrato como alegoria da pintura” mostra-a a
pintar um quadro que começa na margem exterior ao quadro, cuja visão está fora
do nosso alcance, e que só a pintora pode ver. Os auto-retratos de Elin
Danielsen-Gambogi, Charley Toorop e principalmente Lee Krasner e Frida Kahlo
vêm recordar que as mulheres ainda não estavam representadas na pintura
enquanto sujeitos. Serão elas a enunciar essa possibilidade.
[artigo publicado no P2, 7 Abril 2011]
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