segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Heroínas: ser mulher não basta


Uma exposição que é uma tomada de poder, primeiro simbólica, depois definitiva, da mulher representada na pintura. Em “Heroínas” – no Museu Thyssen, Madrid – os arquétipos do feminino herdados de um mundo de homens são reunidos, revisitados, desconstruídos e reconstruídos para dar a ver a Cidade das Mulheres.

À frente de uma grande mulher haverá sempre pequenos homens a querer fixá-la. Ser mulher não basta: “Gaston Lachaise tinha um Deus”, disse Louise Bourgeois, “esse Deus era uma mulher, a mulher dele, que pôs num pedestal, literalmente e figurativamente”. A versão figurativa dessa mulher adorada – Isabel Dutaud Nagle, por quem o escultor francês emigrou para os Estados Unidos em 1906 – está agora com uma mão na coxa e a outra na anca. Imponente, altiva, contempla-nos do alto do seu pedestal, à esquerda de quem entra na sala de exposições temporárias do Museu Thyssen-Bornemisza, em Madrid. Esta Mulher de Pé (1932) em bronze, rebaptizada Heroína, faz figura de porteira na exposição das “Heroínas” (até 5 de Junho).
Partindo de arquétipos femininos da Grécia Antiga, transfigurada pelo símbolo, pela máscara, pelo trabalho, pelo carácter, pelas acções, pelo rumo da história, ou tão somente pelo acto de se auto-retratar, o feminino é exposto obedecendo a sub-temas: ela é solitária, cariátida, ménade, atleta, couraçada, amazona, maga, mártir, mística, leitora e pintora.
O objectivo da exposição, nas palavras do seu director artístico Guillermo Solana, é dar a ver “imagens que sejam uma fonte de poder para as mulheres”. “A história de arte ocidental abunda em imagens de mulheres sedutoras, complacentes, submissas, submetidas. ‘Heroínas’ é uma antologia de mulheres fortes: activas, independents, criadoras, triunfantes”, explica Solana, para quem a condição primeira da heroína é a solidão.
Na primeira sala, dedicada às solitárias, apenas se encontra um homem entre as visitantes. A vintena de mulheres que o sitiam são adolescentes, adultas, sexagenárias e contemplam três mulheres de mão no queixo: uma Ifigénia de Feuerbach, uma Penélope em bronze de Bourdelle e outra de Lord Frederick Leighton. Do lado esquerdo, há um Entardecer (1888) de Munch: uma mulher de chapéu de palha na cabeça, mãos juntas sobre os joelhos, olhar absorto: é Laura, a irmã mais nova do pintor (onze anos antes de voltar a ser pintada num asilo, onde foi internada com um diagnóstico de histerismo).
Na parede que faz esquina, Quarto de hotel (1931) de Hopper: sentada na cama, em combinação, as malas no chão e o vestido sobre o sofá, uma mulher de cabelo curto lê o horário de transportes. Há ainda uma fotografia de Sarah Jones, da série Camilla (1999). Uma mulher jovem sentada na cama debruça-se para a frente e olha para baixo. Parece hesitar perante o abismo.         
A sala das solitárias foi concebida em volta do tema “nostos”, que na literatura grega clássica se configura em dois papéis: o do herói ausente e o da mulher que o espera, mas no caso de Munch ou Jones as mulheres não esperam. A sua relação é com a ausência. A escolha do quadro de Hopper resulta assim numa síntese: a mulher está à espera, mas tornou-se agente do seu destino: é ela que vai partir.                               
As cariátides, na arquitectura grega, são as colunas em forma de mulher que sustentam a cobertura do templo de Erecteion. A sala que lhes é dedicada é a mais celebratória, apesar de só incluir motivos rurais. Há quatro pinturas, todas do séc. XIX, em que os modelos figuram de braços erguidos: há uma camponesa de Bouguereau, a afiar a lamina da sua “Segadeira” (1872) e outras três pintadas por Jules Breton: num rochedo à beira-mar com uma bilha na cabeça, “Na fonte” (1892); com uma braçada de trigo e uma bilha de água ao ombro, ao “Amanhecer” (1896); com uma saca à cabeça e a foice na cintura, à luz do crepúsculo onde brilha Vénus, “A estrela do pastor (1887). Há ainda a “Aguadeira” de Goya (1810), uma “Camponesa com dois molhes de feno” de Pissarro (1883), a “Rapariga com um pau vermelho” de Malévitch (1933) e uma “Cariátide” de Janine Antoni (2003), em que a autora se auto-retrata com uma ânfora na cabeça. A fotografia, em fundo branco, está invertida. À frente da moldura, no chão, jazem os cacos de uma ânfora. Esta desconstrução pós-moderna de motivos clássicos define o dispositivo da totalidade das salas.
Na sala dedicada às Ménades, destaca-se uma estátua de bronze de Rodin suspensa no ar. É “Íris, mensageira dos deuses (figura em voo)”, 1891: o braço direito de um corpo sem cabeça e sem braço esquerdo a segurar no pé, com o joelho por baixo da axila; na sala das atletas, apesar do jogo de rimas entre duas arqueiras (“Lisa Lyon” de Mapplethorpe, 1982; “As belas arqueiras” de William Powell Frith, 1872), impõe-se a espiralada volumetria de Rubens em “Diana caçadora”,1620.
Na sala das encouraçadas, surge a primeira de três fotografias de e com Marina Abrámovitch. Ela é a “virgem guerreira - Pietá com Jan Fabre” (2005), a rimar com “Tancredo baptizando Clorinda” (1600), de Tintoretto. Tancredo e Clorinda é uma tragédia de Torquato Tasso sobre dois amantes que se encontram numa batalha entre cristãos e sarracenos. Vestem armaduras, não se reconhecem e lutam entre si até Tancredo ferir Clorinda mortalmente (na história ressoa a guerra dos balcãs que fragmentou as diversas regiões e povos da Ex-Jugoslávia, onde Abrámovitch nasceu); ela encerra a exposição no Museu Thyssen, com “O herói II” (2008), em que monta um cavalo branco e empunha uma bandeira branca; já na Fundación Caja Madrid, na sala dedicada às místicas, surge a levitar numa homenagem a Santa Teresa d’Ávila em “A cozinha I” (2009, trabalho que pertence à colecção BESart).
O tema das virgens guerreiras inclui uma Atenea (1659) de Rembrandt cujo esplendor ensombrece as Joana d’Arc de Rubens (1640) e Dante Gabriel Rossetti (1882). A história do quadro é um jogo de máscaras. Antes de ser adquirido por Calouste Gulbenkian, integrou a colecção do Ermitage, em São Petersburgo, cujo primeiro catálogo o identificou como figurando Palas (Palas Ateneia, a deusa grega da guerra). Mas no inventário da colecção Badouin, de onde procedia a obra, tinha o título “Retrato de Alexandre com a armadura de Palas”. Seguem-se outros nomes para identificar o quadro: Marte, Tito, jovem guerreiro. Afinal, trata-se de uma mulher ou de um homem? Solana resolve o dilemma com sentido de humor: “Se Rembrandt representa a deusa Palas vestida com armadura trata-se de um caso de travestismo convencional; mas se o tema for Alexandre disfarçado com a armadura de Palas estamos perante um caso de travestismo ao quadrado.
Na sala dedicada às Amazonas ribomba uma apropriação política do poder feminino através da guerra dos sexos. Os trabalhos contemporâneas da norte-Americana negra Renee Cox, da  britânica de origem palestino-libanesa Mona Hatoum, ou do colectivo russo AES+F, estão reféns de um discurso panfletário. Já Nancy Floyd e Rineke Dijkstra apresentam corpos de mulheres enquanto militares. Goya, com duas água-fortes de técnica mista que são também os trabalhos de dimensão mais pequena, problematiza o papel das mulheres na série “os desastres da Guerra” (1863) com outra subtileza: acendendo a mecha de um canhão sobre um tapete de cadáveres masculinos; lutando contra as armas de fogo dos homens com pedras, paus e facas.
A mulher enquanto ser que constrói um mundo paralelo que só a ela lhe pertencem surge já no edifício da fundação Caja Madrid. Há um óleo de grandes dimensões (500x374cm), de Jean Jacques Scherrer, em que figura a “Entrada de Joana d’Arc em Orleães” (1887). Uma cidade inteira, com as suas diversas classes sociais, cerca a “guerreira virgem” com centenas de olhos. Há qualquer coisa de loucamente exterior à cena: é o olhar de Joana d’Arc!
O tema religioso é no entanto menos forte do que as variações profanas. São explorados os poderes espirituais de magas, mártires e místicas, estigmatizadas como bruxas, loucas ou histéricas. A estilização romântica, erótica, destes temas revela o quanto deste mundo feminino pertence a um domínio masculino.
Pela forma como a sua “Santa Catarina de Alexandria” (1597) confronta o olhar do espectador, Caravaggio, mais do que pintar a mártir, parece antes interessar-se por um corpo sitiado. Ela segura uma espada nos dedos e tem o ombro direiro apoiado numa roda – alusão aos instrumentos usados para a sua tortura e morte. Como escreve Rocío de la Villa, perante o erotismo invertido e vagamente misógino das santas decapitadas, “só Caravaggio retém o sentido político e profundamente moral da representação”. Caravaggio vem interromper o efeito de hipnose causado pela figuração do feminino: 48 dos 71 quadros até aí apresentados são trabalhos de homens!
A cidade das mulhers encenada pela exposição é afinal um exercício de colonialismo do imaginário. Marián Lopez F. Cao, autora do recente “Mulier me fecit – hacia un análisis feminista del arte y su educación”, escreve que
“é importante constatar como determinados aspectos icónicos ou formais  da imagem estão ligados a características de género (…) Enquanto pertencentes a uma sociedade que privilegia o masculino, e como seres integrados nela, a nossa visão faz-se para atender a normas privilegiadoras do masculino. Por vezes, a nossa visão tem de tornar-se masculina para compreender determinadas imagens, enquanto o contrário quase nunca acontece. Por isso, é essencial desconstruir esse olhar do poder, esse olhar discriminatório, que se opõe a nós”.
Seja na sua vertente mágica, sexualizada, ou doméstica (a sala das leitoras inclui os trabalhos mais bonitos, mais íntimos, e mais inquietantes), a mulher encontra-se sitiada. Ela é o modelo e por vezes o olhar. Mas a visão, que é patriarcal, não lhe pertence. A varanda interior do edifício na Plaza de san Martín, que fecha a exposição, é a secção em que figuram trabalhos de mulheres pintoras. É quando finalmente se compreende o verdadeiro conflito de “Heroínas”.
Não se trata de criar um frente-a-frente entre quadros de homens que fazem parte da história da pintura e de mulheres artistas a reverem essa iconografia à luz da contemporaneidade. O conflito está na forma como as mulheres se encontram colonizadas por um olhar que lhes é exterior e anterior, sejam elas pintoras ou modelos. Talvez por isso, o primeiro quadro visionário do mundo feminino é o de Artemisia Gentileschi. O seu “Autoretrato como alegoria da pintura” mostra-a a pintar um quadro que começa na margem exterior ao quadro, cuja visão está fora do nosso alcance, e que só a pintora pode ver. Os auto-retratos de Elin Danielsen-Gambogi, Charley Toorop e principalmente Lee Krasner e Frida Kahlo vêm recordar que as mulheres ainda não estavam representadas na pintura enquanto sujeitos. Serão elas a enunciar essa possibilidade. 
[artigo publicado no P2, 7 Abril 2011]

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