Manuel
António Araújo (n. Rebordelo, Vinhais, 1956) é um professor do ensino secundário
em Chaves. Em 2006 publicou os romances "É tão cruel ter memória"
(ed. Colibri) e "A cidade do patriarca" (Pé de Página) e em 2008 o
ensaio “A Emancipação da literatura infantil” (Campo das letras). “A aldeia das
mulheres” (ed. Lugar da Palavra) é a crónica de uma pequena povoação em meados
do século passado onde só vivem duas personagens masculinas: um padre
sexualmente activo e o sacristão, um bufo da Pide que sofre de gaguez e ejaculação
precoce. Abandonadas pelos maridos emigrados no Brasil, as fémeas da aldeia “agreste”
de Pousos levarão a cabo, à sua maneira, uma revolução sexual que não se fará
sem mortes e mistérios, alguma maledicência, rancores e angústias.
“Tudo
seria mais fácil se soubessem dos segredos uns dos outros” e o maior de todos é
o prazer. Há uma tal de Cremildinha cujo trabalho é dar “um jeito nos cabaços
rebentados”, isto é, em raparigas desvirginadas antes do casamento. Isso deixa
de ser importante quando os homens desaparecem e as mulheres se deitam a achar “a
cama um mar” e a descobrirerm o que é um orgasmo: “Começou aí a morrer,
lentamente, a saudade”.
Vão-se
os homens, ficam as mulheres a serem “comidas pelo tempo” e a reflectirem no
pecado: “Minha mãe contava que um dia, estava uma mulher ajoelhada em frente de
Nossa Senhora da Penha a pedir-lhe que lhe desse força para aguentar os calores
que sobem da xica, abrasam as pernas, direitos ao umbigo (…) O menino Jesus, ao
colo da Senhora, sorriu, contava minha mãe, a mulher repreendeu-o dizendo-lhe
que não sorrisse, seu mucoso de merda, tu não sabes o que são as necessidades
de mulheres, e nessa altura a senhora da penha sorriu para ela, acenando com a
cabeça”.
As
mulheres têm necessidades, os homens desconhecem-nas e as mulheres descobrem-se
livres depois de serem abandonadas. Falemos de Julieta e Custódia: “Com a saia
em baixo e sem cuecas, Julieta oferecia o rabo duro e disponível. Custódia
ajoelhou-se e pode ver o negro da amiga, um matagal irregular e hirsuto com
duas tonalidades diferentes, um negro arruçado que começava num fiozinho desde
o umbigo, e que se sombreava à medida que invadia as virilhas e ladeava a fenda
já babada e a latejar; visto de baixo era um negro espesso que exalava um
cheiro salgado e forte (…) passou as mãos pelo grelo enorme e teso, prendeu-o
entre o indicador e o polegar e começou a fazê-lo rodar, a apertar e a fazê-lo
rodar (…) as duas começaram então a dizer palavrões, a insultarem-se, acabando
Custódia por se levantar e bater na cara de Julieta, as lambadas tiveram um
efeito caótico, começando a ter orgasmos múltiplos”.
Há
ainda a história de uma rapariga ingénua que descobre o amor e o sexo com um
pastor, e que num dos mais bonitos capítulos do livro prolonga os orgasmos no
eco de uma gruta, antes de ingerir uma planta alucinogénica e fazer uma
caminhada até à morte; a mesma rapariga descobre o bufo da aldeia a fornicar
uma égua empoleirado num banquinho; o bufo tenta suicidar-se e julga ir dar ao
reino dos mortos por não entender as consequências de uma arma encravada; e
Maria Rosa, depois de escutar o sermão do padre interroga-se se trair o marido
ausente com o irmão dele foi pecado…
Nem
só de sexo vive a aldeia das mulheres: lá as portas são mantidas abertas, em
memória de duas crianças que morreram queimadas numa casa fechada à chave; um
padre foi descoberto morto, e pendurado numa árvore, e depois posto com a língua
de fora para um maior “efeito de autenticidade”; e Norberto Facadas, depois de
gastar 50 contos em fogo de artifício e ser preso e interrogado e torturado
pela Pide, “morreu de medo, morreu de espanto e morreu do sangue que mijava”.
E
também há a história de um coronel misógino com um cancro na próstata, cuja
noiva, Clarisse, o ajuda a urinar num quarto de hospital: “levantou o lençol,
baixou-lhe o pijama e tentou localizar o pénis, sumido entre os testículos.
Pegou na arrastadeira, tentou introduzir o pénis dentro, mas não havia pénis, não
havia, era incrível, uma pele engelhada e mínima, perdida entre os pêlos e os
testículos.”
“A
única forma de nos libertarmos da vontade é a total renúncia”, escuta o padre
Julião de um bispo que acredita tanto em Deus como os cegos acreditam um dia
poder ver. E “enquanto ele rezava em voz baixa, Magda pensou se deveria ou não
tirar as cuecas. Ao fundo do quarto, aninhado numa almofada dormia o gato.
Magda pediu licença para apagar a luz.”
Escrito num estilo
ora vigoroso, ora grosseiro, cambaleando entre parágrafos de grande fulgor e
passagens mal cuidadas, onde não está ausente um vocabulário substantivo e
muito colorido (galhetas, milhã, machorra, brochas, garrotilho, chambaril,
cortelho, lento, rebusco, carpins, regueifa, cortinha, carcela, coanheiro, mamões,
piroca, crucho, negrilho, estrefogueiro, bilhós, compasso, estalotes,
dedaleira) o livro avança e tropeça sujeito aos estados de ânimo do autor. “A
aldeia das mulheres” parece resultar de uma vontade de fazer literatura tão
solitária a ponto de nenhuma passagem disfarçar nem os momentos de exaltação e
grande rigor, nem de saturação e alguma negligência em que foi escrito.
O
isolamento parece ser tão desanimador para a vida intelectual do autor como
para o padre Julião em “Aldeia das mulheres”. Na única vez em que a sua
personagem principal se ausenta de Pousos a conversa que tem com o bispo
merece-lhe esta reflexão: “Já precisava de conversar um pouco a este nível.
Sentia o cérebro ferrugento. Meses e meses a lidar com a gente analfabeta e néscia
das aldeias punham-no também um pouco analfabeto. (…) achava de si próprio que
se movia como se calçasse socos, com passos inestéticos.”
Os
defeitos e virtudes de Araújo residem nesta atmosfera telúrica e abrutalhada. Há
momentos de grandeza e vivacidade na sua escrita, é quando transforma as
necessidades das suas personagens em momentos de gozo literário.
Sem comentários:
Enviar um comentário