No seu livro de ensaios “Menos que um” (1986), Joseph Brodsky diz que Nabokov “está para Platónov como um malabarista da corda bamba para um montanhista que tenha escalado o Evereste.” “Quando lemos Platonov, temos a sensação de que existe um absurdo constante e implacável que faz parte da linguagem, e de que, em cada enunciação, esse absurdo se aprofunda ainda mais (…) ele tendia para levar as suas palavras até a um fim lógico – isto é, absurdo, totalmente paralisante. Ao contrário de qualquer outro escritor russo antes ou depois dele, Platónov veio revelar o elemento auto-destrutivo, escatológico, contido na própria língua, e isto, por sua vez, tinha consequências altamente reveladoras para a escatologia revolucionária que a história lhe forneceria como tema.” “Ao contrário de Kafka, Joyce e Beckett, que narram tragédias bastante naturais dos seus alter egos, Platonov fala de uma nação que se tornou vítima da sua própria língua; ele conta a história dessa língua, que revela um mundo fictício e se torna depois gramaticalmente dependente dele. Por causa disso, Platonov parece intraduzível.”
António Pescada desenterra Platónov da sua russa intraduzibilidade e fá-lo com a eloquência de um português estonteante. Não estou habilitado para tecer considerações sobre o que a tradução preserva ou não do segundo e último romance do escritor soviético Andrei Platonov (1899-1951), mas a sua leitura é a experiência mais alucinante daquilo que posso conceber como universo romanesco, talvez porque a língua portuguesa também permita essa auto-destruição a que Brodsky alude. As personagens pavoneiam-se com um jargão revolucionário que tortura e finalmente destrói a própria ideia de linguagem, e são elas mesmas destroçadas pela mesma paisagem linguística que habitam.
O editor, na angústia de encontrar um género onde enfiar esta “escavação” linguística que é o universo literário de Platónov, acena com o romance distópico e propõe uma parceria com “Nós” de Zamiatine e “Mil novecentos e oitenta e quatro” de Orwell. A propósito de “A escavação” (1930), mas também de “Tchevengur” (o seu primeiro romance), disse o mesmo Brodsky que “estes dois livros são indescritíveis. O poder de devastação que exercem sobre o seu tema excede de longe qualquer exigência de crítica social, e só pode ser medido por um padrão que tem muito pouco a ver com a literatura enquanto tal.”
A personagem volante do livro, Voschev (que acabará por se afundar num pântano em que as restantes personagens também sossobram) começa por ter a aparência de um Job, aqui na angústia do silêncio de um sentido para a revolução ou para a vida (ambas se tornam uma só, ou coisa nenhuma). Mas as suas imparáveis dúvidas e questionamentos depressa se transformam numa paródia existencialista. Voschev vive atormentado pelo absurdo dos fenómenos que se lhe deparam, mas é um filósofo corrido a tratos de polé pelo inclemente optimismo da revolução, que o faz trabalhar e deambular sem que se perceba que construção é aquela em que participa.
As restantes personagens correspondem ao desfiar do rosário da administração e do aparelho soviético num lugarejo inóspito, com os seus miseráveis operários, orfãos e camponeses a serem “deskulakizados” e “kolkhozificados” à força. É um rancho de gente desvairada pela fome, pela miséria e pela mais profunda ignorância do que anda a fazer, e que, no seu desespero e exaustão, tem ainda por cima “o dever da alegria”. “Desafio-o”, diz um socialista receoso do entusiasmo perdido entre os membros do Partido, “a participar na competição para uma maior felicidade do estado de espírito.”
O horizonte dessa felicidade reside numa construção que albergará os homens e mulheres do futuro. “A Escavação” (ed. Antígona) do título é o trabalho nas fundações desse edifício mirífico. E porque quanto maior o edifício, maior a felicidade e o entusiasmo, na pg. 83 o “presidente do conselho sindical da região” tem uma ideia luminosa: em vez de alargar a escavação inicial para quatro vezes mais, como mandou o “dirigente revolucionário da cidade”, exige ao engenheiro para aumentar seis vezes o tamanho, “para ter a certeza de satisfazer e de se adiantar à linha do Partido”!
Mesmo quando dorme, o corpo do proletariado disfarça mal tanta felicidade: “Eram todos magros como mortos; o apertado espaço entre a pele e os ossos de cada um deles era ocupado pelas veias, e atendendo à espessura das veias percebia-se a quantidade de sangue que elas deixariam passar durante o esforço do trabalho. (…) Voschev examinou o rosto daquele que dormia ali mais perto – para ver se exprimia a felicidade resignada de um homem satisfeito.”
Os trabalhadores, para além de não saberem o que fazer em tão colossal obra, estão cansados e mal nutridos, e têm ainda de enfrentar os formalismos burocráticos do aparelho. Reparem no processo de inscrição num “quadro de mobilização”: “Tchíklin começou a dizer-lhe os seus dados e, ao fim de uma hora, o activista tinha-o inscrito no quadro”.
Chegada a noite, nada pode perturbar “a propriedade socializada nem o silêncio da consciência colectiva”. E assim, uma das personagens pergunta a um cadáver se está aborrecido, enquanto ao outro deitado ao lado lhe pergunta se ainda pensa levantar-se! A vela pelos mortos arrasta-se pela noite: “Mesmo que toda a classe morra, eu ficarei a substituí-la, sozinho, e cumprirei todas as suas tarefas no mundo! De qualquer maneira não sei como viver só para mim!”
Enquanto isso outra personagem, “cujo coração pulsava em conformidade com a lei”, observa a migração antecipada das gralhas “para horizontes mais quentes”: “desejavam partir antes do tempo, a fim de passarem o Outono da organização kolkhoziana numa região ensolarada e regressarem depois para uma geral acalmia institucionalizada.”
Há um parágrafo assombroso sobre cavalos socializados pelo sentido kolkhoziano da vida; há um homem (ex-proprietário de um desses cavalos) tão magro que teme levantar voo, e a quem a mulher ata o samovar à barriga; há outro que estremece num caixão enquanto aguarda pela morte e que apenas se aquieta para “agradar às autoridades”; e há ainda uma mulher que morre às escondidas para que a sua filha não seja acusada de ser uma orfã da burguesia. “A Escavação” é menos a história da construção de um país do que da destruição do seu povo: “O homem contrói uma casa, mas destrói-se a si mesmo. Quem viverá então?”
(2011)
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