Dois contos oitocentistas sobre vampiros: O horror! O humor!
No início de “O Vampiro” (1941) há um diálogo… em rigor o que há é um
discurso e o jovem protagonista, Runévski, escuta uma velha senhora que compara
o passado ao presente: “Nos nossos tempos não era como hoje: os jovens exibiam
menos as modas e davam mais ouvidos aos velhos; não usavam as casacas curtas,
mas não se vestiam nada pior do que vós. Bem, não é para te censurar, mas olha
para ti, com as tuas caudas! Nem pássaro nem homem!”
Aleksei Konstantinovitch Tólstoi (1817-1875) o mais velho e o menos
lembrado dos escritores com apelido Tólstoi, concentrou a sua produção literária
na poesia e no teatro (é autor duma trilogia histórica dedicada aos czares
Ivan, o Terrível, Fiódor Ioanovitch e Boris). Ainda jovem publicou um conto de
vampiros, 56 anos antes do “Dracula” de Bram Stoker, e 22 anos depois de “O vampiro”
de John Polidori (inicialmente atribuído a Lord Byron, que também fez uma
incursão pelo tema em “Fragment of a novel”).
Apesar dos contos
em que aborda o assunto, Aleksei Tólstoi parece pouco interessado em vampiros.
Entalado entre os dois grandes movimentos estéticos que agitaram o século XIX,
nem “pássaro” romântico nem “homem” realista, o seu interesse aponta antes na
direcção duma paródia ao fascínio dos românticos pelo horror e pelos temas
caros à novela gótica britânica. O seu foco é o das pessoas de sociedade
suficientemente desocupadas para
se divertirem e apoquentarem com temas tão picantes (sentido literal) como o
dos vampiros.
O horror é uma
espécie de divertimento radical a que os jovens se entregavam à época. “Nem pássaros
nem homens”, também não pareciam estar nem acordados nem a dormir. É nesse
estado intermediário que os vampiros atacam. Os episódios mais assustadores
acontecem em sonhos inconscientes de serem sonhos, “a que os franceses chamam cauchemar. São sonhos que, muitas vezes, se prolongam
depois de acordarmos”, e se fazem acompanhar de “uma sensação opressiva no
peito. A característica principal deste estado onírico é a semelhança absoluta
com a realidade”.
É a rodopiar, ao
som de uma “barulhenta valsa” num baile em Moscovo, que o primeiro parágrafo
arranca. Somos apresentados aos protagonistas: Runévski, o jovem influenciável
e, ainda incógnito mas já transtornado, Ribarenko, que mais à frente narrará
como é que os vampiros (ou “upires”, como lhes chama) voaram da pequena cidade
italiana de Como para a Rússia. Mas por agora impera o bom humor: “Estava
encostado à lareira e olhava para um canto da sala com tanta atenção que não
notou que uma aba da sua casaca aflorara o fogo e começava a fumegar”. Runévski
aproxima-se dele: “O senhor, pelos vistos, está à procura de alguém - disse -,
mas, a propósito, parece-me que daqui a pouco o seu fato vai arder.”
Esta forma de
estruturar as cenas em “gags”, servirá também para desmontar a ilusão de
fantasmas, figuras animadas que saltam do interior de quadros, etc. O pavor
depressa revela a matéria usada na sua fabricação, como no episódio em que a
amada de Runévski, Dacha, surge “pálida
e bela” sentada numa poltrona, a mão só ossos: “O que lhe parecera fantasma não
era mais do que uma libré colorida lançada no espaldar da poltrona e que, de
longe, era possível tomar por uma mulher sentada. Runévski não percebia como
fora possível enganar-se daquela maneira. Os seus acompanhantes, porém, não se
atreviam a entrar no quarto.”
O fantástico é abordado
com ligeireza e distanciamento. Não é o autor que fabrica os vampiros; é a
imaginação das suas personagens! Trata-se de uma fantasia muito ao gosto
barroco, com cenas encadeadas umas nas outras, e que atinge o seu delírio (nos
dias de hoje utilizaríamos o adjectivo psicadélico) na Villa d’Urgina, a “casa
do diabo”. Mas se o escritor encara o tema como um licencioso divertimento
teatral, isso não impede Ribarenko de se encontrar à beira da loucura: “Trabalhei
com aplicação, aquele esforço distraía-me; mas a mais pequena recordação da
minha estada em Como continuava a fazer-me arrepiar de pavor. Acredite que
ainda hoje me acontece não ter sossego e não saber como fugir dessa recordação!
Persegue-me por todo o lado, rói-me a mente como um verme, há momentos em que
estou mesmo tentado a pôr termo à vida só para me livrar dela!”
“A família do
vampiro”, escrito dois anos antes, obedece ao mesmo dispositivo distanciador:
um velho marquês, numa recepção em casa duma princesa em Viena, entretém as
convidadas com aventuras da sua juventude, mais propriamente a da sua paixão
por Zdenka, uma bela camponesa sérvia que conheceu durante uma campanha de
trabalho nos Balcãs. Neste conto menos elaborado, há uma óbvia influência do
folclore alusivo ao tema, mas o que parece importar a Tólstoi é o espírito
setecentista de um avozinho galante, com um “feitio puramente juvenil” e que
ainda se lembra de como eram os tempos antes da Revolução Francesa: “Naquela época,
a mitologia fascinava todas as mentes, e também eu não tinha a pretensão de me
adiantar ao meu século. Desde então tudo mudou, e nos tempos bastante recentes a Revolução, ao suprimir as
recordações do paganismo, juntamente com a fé cristã, colocou no seu lugar a
deusa Razão.”
É exactamente essa dita supressão das recordações do paganismo que é
satirizada. Em ambas as narrativas, Tólstoi está perfeitamente consciente de
que na sociedade por ele habitada o intervalo entre as ideias da “deusa razão”
e as crenças de um imaginário desacreditado, seja ele pagão ou cristão, é
suficientemente largo para os “vurdalaques” invadirem as aldeias e os “upires”
estalarem a língua nos bailes de sociedade.
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