quarta-feira, 29 de agosto de 2012

AK Tolstói: o vampiro e a família do vampiro


Dois contos oitocentistas sobre vampiros: O horror! O humor!


No início de “O Vampiro” (1941) há um diálogo… em rigor o que há é um discurso e o jovem protagonista, Runévski, escuta uma velha senhora que compara o passado ao presente: “Nos nossos tempos não era como hoje: os jovens exibiam menos as modas e davam mais ouvidos aos velhos; não usavam as casacas curtas, mas não se vestiam nada pior do que vós. Bem, não é para te censurar, mas olha para ti, com as tuas caudas! Nem pássaro nem homem!”
Aleksei Konstantinovitch Tólstoi (1817-1875) o mais velho e o menos lembrado dos escritores com apelido Tólstoi, concentrou a sua produção literária na poesia e no teatro (é autor duma trilogia histórica dedicada aos czares Ivan, o Terrível, Fiódor Ioanovitch e Boris). Ainda jovem publicou um conto de vampiros, 56 anos antes do “Dracula” de Bram Stoker, e 22 anos depois de “O vampiro” de John Polidori (inicialmente atribuído a Lord Byron, que também fez uma incursão pelo tema em “Fragment of a novel”).
Apesar dos contos em que aborda o assunto, Aleksei Tólstoi parece pouco interessado em vampiros. Entalado entre os dois grandes movimentos estéticos que agitaram o século XIX, nem “pássaro” romântico nem “homem” realista, o seu interesse aponta antes na direcção duma paródia ao fascínio dos românticos pelo horror e pelos temas caros à novela gótica britânica. O seu foco é o das pessoas de sociedade suficientemente  desocupadas para se divertirem e apoquentarem com temas tão picantes (sentido literal) como o dos vampiros.
O horror é uma espécie de divertimento radical a que os jovens se entregavam à época. “Nem pássaros nem homens”, também não pareciam estar nem acordados nem a dormir. É nesse estado intermediário que os vampiros atacam. Os episódios mais assustadores acontecem em sonhos inconscientes de serem sonhos, “a que os franceses chamam cauchemar. São sonhos que, muitas vezes, se prolongam depois de acordarmos”, e se fazem acompanhar de “uma sensação opressiva no peito. A característica principal deste estado onírico é a semelhança absoluta com a realidade”.
É a rodopiar, ao som de uma “barulhenta valsa” num baile em Moscovo, que o primeiro parágrafo arranca. Somos apresentados aos protagonistas: Runévski, o jovem influenciável e, ainda incógnito mas já transtornado, Ribarenko, que mais à frente narrará como é que os vampiros (ou “upires”, como lhes chama) voaram da pequena cidade italiana de Como para a Rússia. Mas por agora impera o bom humor: “Estava encostado à lareira e olhava para um canto da sala com tanta atenção que não notou que uma aba da sua casaca aflorara o fogo e começava a fumegar”. Runévski aproxima-se dele: “O senhor, pelos vistos, está à procura de alguém - disse -, mas, a propósito, parece-me que daqui a pouco o seu fato vai arder.”
Esta forma de estruturar as cenas em “gags”, servirá também para desmontar a ilusão de fantasmas, figuras animadas que saltam do interior de quadros, etc. O pavor depressa revela a matéria usada na sua fabricação, como no episódio em que a amada de Runévski,  Dacha, surge “pálida e bela” sentada numa poltrona, a mão só ossos: “O que lhe parecera fantasma não era mais do que uma libré colorida lançada no espaldar da poltrona e que, de longe, era possível tomar por uma mulher sentada. Runévski não percebia como fora possível enganar-se daquela maneira. Os seus acompanhantes, porém, não se atreviam a entrar no quarto.”
O fantástico é abordado com ligeireza e distanciamento. Não é o autor que fabrica os vampiros; é a imaginação das suas personagens! Trata-se de uma fantasia muito ao gosto barroco, com cenas encadeadas umas nas outras, e que atinge o seu delírio (nos dias de hoje utilizaríamos o adjectivo psicadélico) na Villa d’Urgina, a “casa do diabo”. Mas se o escritor encara o tema como um licencioso divertimento teatral, isso não impede Ribarenko de se encontrar à beira da loucura: “Trabalhei com aplicação, aquele esforço distraía-me; mas a mais pequena recordação da minha estada em Como continuava a fazer-me arrepiar de pavor. Acredite que ainda hoje me acontece não ter sossego e não saber como fugir dessa recordação! Persegue-me por todo o lado, rói-me a mente como um verme, há momentos em que estou mesmo tentado a pôr termo à vida só para me livrar dela!”
“A família do vampiro”, escrito dois anos antes, obedece ao mesmo dispositivo distanciador: um velho marquês, numa recepção em casa duma princesa em Viena, entretém as convidadas com aventuras da sua juventude, mais propriamente a da sua paixão por Zdenka, uma bela camponesa sérvia que conheceu durante uma campanha de trabalho nos Balcãs. Neste conto menos elaborado, há uma óbvia influência do folclore alusivo ao tema, mas o que parece importar a Tólstoi é o espírito setecentista de um avozinho galante, com um “feitio puramente juvenil” e que ainda se lembra de como eram os tempos antes da Revolução Francesa: “Naquela época, a mitologia fascinava todas as mentes, e também eu não tinha a pretensão de me adiantar ao meu século. Desde então tudo mudou,  e nos tempos bastante recentes a Revolução, ao suprimir as recordações do paganismo, juntamente com a fé cristã, colocou no seu lugar a deusa Razão.”
É exactamente essa dita supressão das recordações do paganismo que é satirizada. Em ambas as narrativas, Tólstoi está perfeitamente consciente de que na sociedade por ele habitada o intervalo entre as ideias da “deusa razão” e as crenças de um imaginário desacreditado, seja ele pagão ou cristão, é suficientemente largo para os “vurdalaques” invadirem as aldeias e os “upires” estalarem a língua nos bailes de sociedade.

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