Porquê escrever tanto, e
tão bem, ao ponto da anulação humana? Admirar com fervor David Foster Wallace não
é difícil. O escritor imenso rivaliza com a personagem trágica. Difícil é
conciliar o superhomem da palavra com a superfragilidade de quem escrevia.
Catorze anos depois de “Infinite Jest” (o romance que transplantou um coração
para o corpo frio e irónico e autoconsciente do pós-modernismo), dois anos após
a sua morte, DFW continua inédito em Portugal e há tanto por onde escolher…
“Estou aqui.”
A frase mais curta de um
escritor é como o seu mistério. Bem podia servir-lhe de lápide. Para o caso, não
importa o contexto em que foi escrita [1]. São duas palavras, uma unidade de
sentido absoluta. Onde estás, David?
“Estou…”
Agora não. Espera um
momento. Antes que David Foster Wallace diga onde está, comecemos por explicar
porque razão interessa semelhante conhecimento. No dia 12 de Setembro fez dois
anos que se enforcou. Deixou um livro inacabado [2] e depois. Depois não está
traduzido em português. Este artigo é uma ternurenta forma de pressão (de que
estão à espera, miseráveis?) [3]. Poderíamos acrescentar, como argumento, as
primeiras adaptações ao teatro e cinema [4], a colecção de filmes que uma
galeria em Nova Iorque apresentou duma personagem sua [5], a vaga de estudos
académicos em redor da sua obra [6], o fervor dos leitores [7], as descobertas
disponíveis on-line desde que o seu arquivo pessoal foi aberto [8] e tudo isto
são factos. Mergulhemos primeiro no coração apoquentado da sua obra. Na ausência
de um mapa, é normal que nos venhamos a perder [9]. Boa sorte.
Um mês a mergulhar
na escrita de David Foster Wallace é como estar perdido numa ilha de coral. A
diversidade de formas e espécies coloridas, as correntes de água, cada uma com
a sua temperatura, o borbotar de nascentes de água doce ramificando pela massa
de água salgada, as setas de luz entrechocando-se em efeitos de refracção, a
sucessão de galerias ramificadas umas nas outras através de aberturas
surpreendentes chegam a fazer esquecer que... Entra aqui luz e água e ar, em
cada frincha abre-se um horizonte de encantamento e não há como sair deste belo
mundo!
A vida contemporânea
nas suas contradições de espectáculo e tédio, de aventura e medo, de
egocentrismo e anulação do eu, de egocentrismo e horror à solidão, de suplantar
o êxtase e descer ainda mais fundo no horror, de querer viver a vida e não
querer a vida que se leva. O trabalho como recompensa absoluta e o vazio que
lhe sucede, alheio a recompensas. A vida numa colecção de vícios, dependências,
de não-vida, de tentar entendê-la, dissecá-la controlá-la até ficar isolada (a
vida) num marasmo interior de solipsismo, de negação, depressão, desespero,
pulsão de morte, suicídio. DFW sentiu o pulso da sua geração no papel. O que
ele fez com a literatura é enorme, o preço foi aterrador: uma vida emparedada a
escrever o que é estar vivo.
A escrita ou a vida?
A impressão que fica, pela sua biografia, e por aquilo que escreveu, é a de
alguém submetido à necessidade de glória, de destacar-se, de criar uma aura de
acontecimento e de ficar em relevo nela e só então recusar isso tudo para
voltar a descer à terra. O ténis representou o protótipo desse combate em que a
escrita resgata a insuficiência da vida entregue a si mesma:
Tennis, trigonometry and
tornadoes, a midwestern boyhood [10] é o texto em que DFW revisita os anos de
tenista adolescente, até descobrir as suas limitações para atingir a alta
competição. O seu talento para fazer complicadas equações mentais em relação
aos acidentes do terreno e ao vento e prever os efeitos das bolas não chegou
para compensar a pequena estatura e a falta de força. Num parágrafo memorável,
o último, grandiosidade e pequenês são convocadas para que seja um ciclone “sem
o funil” a decidir do seu futuro. Treinava com o seu parceiro habitual, Gil
Antitoi, e não queria parar, estava zangado com o seu corpo, queria magoá-lo,
cansá-lo. Quando uma onda sacudiu a paisagem e passou pelo court, DFW mandou a
bola ao ar para perceber a direcção do vento. Ao correr atrás da bola,
ultrapassou-a e bateu-a num salto. Estava ainda com os pés no ar quando foi
projectado contra a cerca. Antitoi deslocou a retina e o quadriculado da cerca
de arame ficou marcado no corpo de ambos. Amy, a irmã, disse-lhe que parecia um
waffle. Depois, “o ténis de Antitoi continuou a melhorar, mas o meu não.”
Em 1996 publica um longo
artigo na Esquire sobre Michael Joyce, promessa do ténis americano, que
acompanha ao Open do Canadá, em Montreal. É um retrato em que sobrevêm as
implicações do que implica lutar para ser um dos melhores. A sua melhor prosa,
no contexto jornalístico, vai sempre parar às notas de rodapé:
“É maravilhoso o ar
dele quando fala daquilo que o ténis representa para si (…) quando fala de ténis
e da sua carreira fica de olhos arregalados, as pupilas dilatam-se e há amor no
olhar. Não o amor que se sente pelo trabalho ou por uma amante ou não importa
qual fogueira de paixão que a maioria de nós escolhe para dizer que ama. É o
amor que lemos nos olhos das pessoas de idade casadas e felizes juntas há
dezenas e dezenas de anos, ou naqueles crentes de tal maneira crentes ao ponto
de dedicarem a sua existência à fé: um amor que se mede naquilo que custou, no
que foi preciso renunciar por ele. Que tenha havido uma ‘escolha’ ou não deixa
de ter importância… é precisamente a renúncia a si mesmo e ao poder de escolher
que dá forma a esse amor.”
Reparem como o olhar
de DFW reconstrói uma infância sacrificada ao ténis:
“Quando a direita de
Joyce encontra a bola, a sua mão esquerda abre-se atrás dele, como se tivesse
deixado cair qualquer coisa, num gesto ornamental que não afecta em nada a
pancada. Michael Joyce ignora que a mão esquerda dele abre-se durante o
impacto: é um fenómeno inconsciente, um tique estético aparecido na infância
que agora é inseparável de um gesto inconsciente de Joyce”.
Estes temas explodem
no mega-romance Infinite Jest,
em que Hal Incandenza é uma jovem promessa do ténis à beira do colapso. Aliás, é
entre a expectativa de algo grandioso e o colapso, nessa lógica de competição
predadora em que ser o melhor é deixar de ser humano, e fechar-se em si mesmo,
e ser humano é aceitar perder, e desaparecer na multidão, que parece jogar-se
vida e obra de DFW, mas também o seu fascínio pelo ténis: “Convido-os a
tentarem imaginar como é que seria estar entre os cem melhores do mundo em
alguma coisa. Seja no que for. Eu já tentei; é difícil..” DFW fez mais do que
imaginar. Mas regressemos ao ténis. No seu último grande texto sobre o assunto,
“Roger Federer as a religious experience”, a propósito daquele que é
considerado o maior jogo de todos os tempos: Federar v. Nadal, Wimbledon, 9 de
Julho, 2006. Para DFW quanto mais alguém percebe de ténis, mais intensa se
torna a experiência de observar os feitos de Federer. O artigo resulta numa espécie
de ampliação de termos e questões técnicas, até os microdetalhes ganharem
visibilidade para um leigo:
“Imagina que és uma
pessoa com reflexos, coordenação e velocidade sobrenaturais, e que jogas um ténis
de alto nível. A tua experiência, quando jogas, não é a de quem possui reflexos
e velocidade fenomenais; aquilo que te vai parecer é que a bola é enorme, e que
tens muito tempo para batê-la. Ou seja, não vais ter nada que se pareça com a
experiência (empiricamente real) de rapidez e habilidade que o público te
atribui”.
O superherói do ténis
serve de metáfora da superescrita. A literatura implica o rigor da linguagem e
o golpe de um olhar poético. Só esta mistura produz uma impressão de magia.
Uma boa jogada, vista na televisão, é impressionante, mas descrita por DFW tem
outra beleza: as jogadas constroem o resultado (vencedor, derrotado), mas as
suas descrições vão criando uma trama que no final reunirá (em nota de rodapé)
dois super-atletas, um condutor de autocarro e a criança de sete anos com
cancro no fígado e que no início do jogo enviou a moeda ao ar.
DFW perseguia a
grandiosidade. Humanizado pelo ténis ainda na adolescência, a via heróica
entrou em latência: seguiram-se os anos de matemática e filosofia. A
literatura haveria de tornar-se o seu grande, grande slam. “Ele parecia que ia
aspirar tudo”. Traduzida à letra, a frase da mãe soa tão esquisita quanto
sintomática: o brilhantismo de DFW é perturbante, aflitivo: a grandiosidade da
sua escrita reside na atenção e detalhe com que sonega a banalidade daquilo que
nos é comum. Ele parece aspirar tudo. Quem sabe da dificuldade de conseguir
escrever uma frase com uma impressão mínima de real lá dentro, sabe que há algo
nisto de super-humano: a vida aspirada para dentro da escrita, e a pulsar. A
questão é: o que ficou de sobra nos bolsos, para viver fora da escrita, para além
de confusão e medo? Evitemos a resposta. Flash-back: retrato de um artista
enquanto jovem extraterrestre.
Em 1984, no primeiro
texto que publicou (para a revista da universidade de Amherst), disse a propósito
da “coisa má” (da depressão): “Um tipo vivaço disse na televisão que algumas
pessoas dizem que é como estar debaixo de água, sem que haja superfície, pelo
menos para ti, por isso aonde quer que vás, só se encontra mais água, sem água
fresca nem liberdade de movimento, só restrição e sufoco, e sem luz.” Chamou a
esse lugar Planeta Trillaphon. Primeiro parágrafo do artista enquanto jovem
consumidor de Tofranil depois de uma tentativa de suicídio:
“Ando a tomar
anti-depressivos há, quê, faz agora um ano, e suponho estar qualificado para
contar como é. São bons, a falar a sério, mas são bons da mesma maneira que
seria bom viver, digamos assim, num outro planeta igualmente quente, confortável,
com comida e água fresca: seria bom, mas não seria a mesma coisa que viver na
nossa velha Terra. Eu não ando a viver na Terra vai fazer um ano, porque não
andava a sentir-me bem na Terra. Aqui, no planeta Trillaphon, sinto-me melhor”.
DFW poderia ter
chamado ao sítio onde vivia Planeta Tofranil (antidepressivo tricíclico), mas “Trillaphon
é mais trilante e eléctrico, soa mais a como é estar lá dentro”. O
planeta anti-depressivo em que DFW habitou durante a quase totalidade da sua
vida adulta não foi o Trillaphon, nem o Tofranil, mas o Nardil. O planeta literário
de DFW também não é a mesma coisa que o cidadão DFW, mas numa obra em que a
autoreferencialidade é relevante, o virtuosismo com que a sua ficção parece
arrancada da pele, e se alicerça numa experiência que tem tanto de subjectiva
(ou padecida) como de uma sustentação maníaco-científica, está entre o
apoteótico (como é que ele consegue?) e o alarmante (olha que tu cais daí de
cima!).
Em textos mais
adultos, como The depressed person
ou Good old neon, a personagem
deprimida começa a revelar a sua face monstruosa: alguém tão mergulhado na sua
própria infelicidade, na absoluta necessidade de controlar e dissecar a sua
interioridade, ao ponto de ignorar os sintomas mais evidentes da infelicidade
alheia.
Em 2007, DFW
abandonou o Nardil, que tomava desde que abandonou os estudos de filosofia em
Harvard. Fez uma tentativa de suicídio num motel, submeteu-se a mais sessões de
terapia electroconvulsiva, deixou de conseguir escrever, deixou de conseguir
dar aulas, não suportava estar com pessoas, tinha pavor de ficar sozinho.
Enforcou-se no pátio de casa durante a ausência da companheira (a artista plástica
e galerista Karen Green), quatro dias após uma sessão de quiroprática. Os
relatos existentes do seu último ano de vida descrevem um sofrimento atrozmente
inacessível. Como explicar, a quem vive de problemas concretos, que um
escritor admirado por escritores, dissecado pelos leitores com uma paixão quase
adolescente, e idolatrado pelos alunos escorregue nesta obscura, estarrecedora
caminhada?
Procuremos a
resposta numa digressão lynchiana [11]. DFW ensinava literatura na universidade
de Pomona. Quem viu o filme INLAND EMPIRE, deve ainda lembrar-se dos últimos
instantes de vida da personagem de Laura Dern, sentada num passeio, ao lado de
uma sem-abrigo, que explica a uma jovem japonesa como apanhar o autocarro para
Pomona. Em 1996, DFW fez uma reportagem-ensaio sobre Lynch para a revista
Premiere, por ocasião da rodagem de “Estrada Perdida”. O final do artigo merece
ser citado:
“Os filmes de Lynch
têm a ver com imagens e histórias que estão na cabeça dele e que ele quer
exteriorizar e tornar ‘reais’ na sua complexidade. É de uma lealdade feroz e
apaixonada, para si mesmo. Não quero fazer parecer que este tipo de coisa seja
inteiramente boa ou que Lynch é um modelo de saúde e integridade. A sua
apaixonante introspecção tem a frescura de um comportamento infantil, mas
apercebo-me que muitos poucos de nós (apesar de Michael Jackson – na verdade,
o projecto de Lynch a fazer parte da minha lista de desejos é um documentário
tipo-Crumb feito por Lynch sobre Jackson – tenho a sensação de que um deles ou
ambos podem entrar em combustão a meio do processo) optam por tornar as crianças
mais pequenas nossas amigas. E quanto à pacata indiferença no que respeita à
reacção das pessoas, apercebi-me que, embora não possa deixar de respeitar e até
certo ponto invejar a fibra de pessoas que não se deixam afectar mesmo por
aquilo que os outros pensam delas, estas pessoas deixam-me também nervoso, e
tendo a admirá-las a uma saudável distância.”
Um excerto de All
that, publicado postumamente na
revista The New Yorker, parece ilustrar o escândalo que causa essa doença que
acomete as aves enjauladas numa solidão resplandecente: “O meu pai (que claramente
gostava de mim e das minhas excentricidades) disse um dia a rir à minha mãe que
achava que eu era capaz de sofrer de um qualquer tipo de psicose benigna
chamada ‘antiparanóia’, em que eu parecia acreditar ser alvo de uma intrincada
conspiração universal para me fazer feliz que mal conseguia suportar”.
DFW detestava
elogios. “A maneira mais rápida de destruir a vitalidade de um escritor é
apresentar esse escritor à frente do seu tempo com ‘grande’ ou ‘clássico’. O
escritor torna-se para os estudantes no mesmo que os remédios ou os vegetais,
algo que as autoridades declararam fazer-lhes bem”, escreveu em “Joseph Frank’s
Dostoievsky”.
No discurso de fim
de curso que em 2005 deu aos alunos da Universidade de Kenyon, avisou-os para o
perigo de uma vida demasiado centrada neles mesmos, com a atenção ao exterior a
dar lugar ao monologar interior:
“Pensem no velho
ditado sobre a mente ser um óptimo servente mas um péssimo mestre. O valor sem
merdas da vossa educação liberal está em evitar que ao longo das vossas confortáveis,
prósperas e respeitáveis vidas adultas fiquem mortos, inconscientes, escravos
da vossa cabeça e da vossa tendência natural para andarem unicamente,
completamente, imperialmente sozinhos dia sim dia não.”A questão está em saber
qual é a maneira correcta de pensar. Segue-se um incrível escrutinar da rotina
diária, com os seus pormenores enlouquecedores, num crescendo paranóico em que
a audiência, sentindo-se identificada, se inflama. Comentário de DFW aos
aplausos: “E este é um exemplo de como não devemos pensar.”
“Se aprenderem a
prestar atenção, descobrirão outras opções. Terão a capacidade de enfrentar uma
situação dessas de dar cabo do juízo não apenas como significativa, mas
sagrada, com chamas tão fortes como as que produziram estrelas: amor,
camaradagen, a unidade mística das coisas profundas (…) Adorem o poder e vão
acabar a sentir-se fracos e medrosos, a precisarem de mais poder sobre os
outros para ficarem insensíveis ao medo. Adorem o vosso intelecto, serem
considerados espertos, e acabarão por sentir-se estúpidos, uma fraude”.
Ainda jovem
escritor, DFW era estupidamente invejoso do sucesso alheio. Numa carta a
Jonathan Franzen (por estes dias o escritor norte-americano em maior destaque,
desde que publicou Freedom),
confessou: “Agora mesmo, sou um jovem patético e muito confuso, um escritor
falhado aos 28 anos que é tão ciumento, tão doentiamente e ardorosamente
invejoso de ti e do [William] Vollmann e do Mark Leyner e até do
David-quesefoda-Leavitt e de qualquer outro jovem escritor que esteja neste
momento a produzir algo com o qual possa ter uma vida, e até algum
reconhecimento”.
O insucesso inicial
obrigou-o a fazer trabalhos jornalísticos, em que haveria de revelar o seu
talento perante um público menos atento à ficção. Em Ticket to the fair (reportagem à Feira do Estado do Illinois) conta a
umas senhoras que é um enviado da revista Harper’s. O espanto é tanto que uma
delas até leva a mão à cara: “As receitas são fantásticas!”, diz uma. “As
receitas são sublimes”, diz outra. “Sou então empurrado mais ou menos à força
até uma mesa com mulheres de 45 anos ou mais, apresentado como o enviado da
Harper’s, e todas trocam ares de espanto e confirmam que as receitas são de
primeira água, as mais finas, as mais deliciosas. A lembrança de um preparado
histórico envolvendo amareto e uma coisa qualquer que se chama ‘chocolate de
culinária’ é evocada e debatida até que nos altifalantes é anunciado o início
do discurso oficial de boas-vindas à imprensa.”
A propósito da
entrega do equivalente aos Óscares da indústria pornográfica, os AVN (Adult Vídeo
News), em 1998 assina uma espécie de sequela ao universo de “Boogie Nights”
[12]. Humor e sentimentalismo interpenetram-se. O artigo arranca com uma estatística:
dez a doze homens por ano são atendidos nos serviços norte-americanos de urgência
depois de se castrarem. Momento de grande literatura (em nota de rodapé):
encontro entre um crítico de filmes porno e um polícia de 60 anos, admirador do
género e do crítico. Durante a cerimónia de entrega dos prémios (no
Caesar’s Forum, Las Vegas), um rapaz de doze anos recebe o prémio para a melhor
performance gay em nome do irmão. Apoteose: DFW, que se identifica como “o
vosso correspondente”, vai ao lavabos e tem uma “experiência traumatizante” a
urinar entre dois actores porno. Nesse mesmo ano, em recensão crítica ao novo
livro de Updike [13] (a quem, juntamente com Norman Mailer e Philip Roth, chama
de Grandes Machos Narcisistas), desconstrói o fascínio pelos neurasténicos com
a virilidade em perda:
“Updike torna
claro que vê a impotência definitiva do narrador como catastrófica, como o símbolo
terminal da morte, e quer que nós a lamentemos tanto quanto Turnbull. Não me
sinto chocado nem ofendido por esta atitude; simplesmente não a entendo.
Desenfreada ou flácida, a felicidade de Ben Turnbull é uma evidência desde a
primeira página. Nunca lhe ocorre, no entanto, que a razão de ser tão infeliz é
por ser um imbecil.”
Originalmente
publicado na Rolling Stone, The view from Mrs. Thompson’s é o único texto que li sobre o 11 de Setembro de
2001 que consegue estar pontilhado de pormenores hilariantes. Exemplo: a
bandeira americana que pinta com canetas de feltro, ideia de um lojista
paquistanês, depois de não conseguir comprar uma verdadeira para pôr na porta,
em sinal não sabe bem do quê, mas para evitar a desconfiança dos vizinhos. A
reportagem acontece numa cidade onde nada acontece (“a cidade está a drunfar
Benadryl”), e em que o modo de sociabilizar dos habitantes é através de
encontros nas casas uns dos outros, para verem televisão. DFW tem champô na
cabeça quando entra na casa de Mrs. Thompson para ver o “Horror” na companhia
de um grupo de cândidas senhoras …
A atenção bem
humorada ao pormenor trivial, revela pessoas, mas também o grande
escritor a burilar o estilo do seu olhar: distante e clínico, terno e caloroso.
A encomenda jornalística atinge o seu zénite a bordo do Zenith, com a grande
reportagem Shipping out, “sobre
o conforto (quase letal) de um cruzeiro de luxo” [14]. Ironicamente, chama “Nadir”
ao paquete em que viaja até às Caraíbas. São 150 páginas de comédia burlesca,
qual barco do amor em ácido, cada personagem a saltar do papel em traços de
caricatura, com excepção do empregado de mesa húngaro Tibor (cultor da perfeição)
e de Petra (a camareira quase invisível que lhe limpa o quarto se ele está fora
mais do que 30 minutos, mas que deixa tudo na mesma, caso ele se demore apenas
29).
Observando o absurdo
da instrumentalização do prazer por via do ócio, DFW desperta para a grande
fragilidade da sociedade contemporânea: o trabalho enquanto elemento
estruturador da vida das pessoas, gerando seres competitivos, egoístas,
progressivamente desligados, até se tornarem frangalhos emocionais. Numa era em
que se popularizaram expressões como inteligência emocional, DFW veio denunciar
o calcanhar de Aquiles das classes médias-altas, bem formadas, bem pagas e com
um modo de vida invejável: o horror em partilhar a intimidade (o que é frágil,
e vulnerável) e o conflito do sentimento de si consigo próprio. Preconizando um
regresso à interrogação moral, ao questionamento dos valores, cultivando ao
mesmo tempo o rigor, a importância da magia (ou da poética) e da beleza,
enquanto manifestação de algo que nos pertence, mas que não tem valor de troca,
DFW atacou o maior cancro da sociedade actual: a distância.
“A cultura artística
actual é congenitamente céptica”, disse a propósito da biografia de Dostoievski
por Joseph Frank: “A intelligentsia [actual] desconfia das crenças fortes, das
grandes convicções. As paixões materiais são uma coisa, mas a paixão ideológica
enoja-nos profundamente (…) Abandonámo-la aos fundamentalistas impiedosos cuja ânsia
julgadora mostra que não fazem ideia dos valores cristãos que tanto gostam de
impor (…) e, na academia e nas artes, ao cada vez mais absurdo dogmatismo do
movimento Politicamente correcto, cuja obsessão com as formalidades de trato e
discurso quão afectados e estilizados se tornaram os nossos melhores instintos
liberais, quão afastados do que importa – motivação, sentimento, crença.”
Em entrevista à
revista de Amherst, a universidade onde estudou, disse também que enquanto os
colegas faziam festas à sexta-feira, ele fazia serões na biblioteca até lhe
apagarem as luzes, e aos Domingos ficava à espera de lhe abrirem a porta,
depois do brunch: “Depois de formar-me em Amherst ainda levei anos a perceber
que as pessoas são bem mais complicadas e interessantes do que livros, que
quase todos sofreram secretamente os mesmos receios e inadaptações que eu,
e que o sentimento de solidão e de inferioridade era na realidade o que nos
unia a todos. Quem dera ter sido mais esperto para entender isso na adolescência”.
Em entrevista
televisiva a Charlie Rose, após o lançamento de Infinite Jest: “Quando estava nos meus vintes, bem lá no fundo
achava que o objectivo da ficção é mostrar quão inteligente é o escritor. Acho
que ainda não sabia o que era a solidão. Agora sei ainda menos o que é isso da
arte, mas tem a ver com a solidão e com o modo de estabelecer uma conversa
entre duas pessoas.”
Uma faixa na cabeça
a tapar-lhe a testa, expressão concentrada e febril, um querer parecer
(frustrado) tão à vontade como uma estrela de rock, uma confiança tão grande
nas palavras ao ponto de fazer caretas, ou por estar espantado consigo mesmo,
ou por ter dito algo ao lado do que queria, ou por ter batido no ponto. Na
mesma entrevista a Charlie Rose:
“Alguma da tristeza
impregnada na cultura tem a ver com esta perda de sentido, de princípios
organizadores, algo que nos faça querer entregar-nos. O impulso para a dependência
que tem crescido na área cultural só é interessante porque é uma distorção óbvia
de um impulso religioso, ou pelo menos um impulso para fazer parte de algo
importante. (…) O niilismo da cultura contemporânea deve-se ao facto de nos
estarmos a preparar para o fascismo. Esvaziamo-nos de valores, de princípios
motivadores, de princípios espirituais, e criamos uma fome de algo que
finalmente nos levará a aceitar o fascismo. O que há de bom nos fascistas é que
eles dizem-nos o que devemos fazer, o que é importante.”
Havia nele demasiada
informação, demasiadas mensagens, demasiadas imagens, demasiadas vozes. Algumas
eram felizes, como neste excerto de “All that”:
Às vezes a experiência
das vozes era extasiante, ao ponto de ser de mais para mim – como quando
mordemos pela primeira vez uma maçã ou um bolo tão delicioso, causador de uma
tal inundação de saliva ao ponto de causar uma dor intensa na boca e nas glândulas
– especialmente nos fins de tarde durante a primavera e no verão, quando a luz
dos dias de sol atingiu momentos de imanência e se tornou na cor de ouro batido
e era ela própria (a luz, como se fosse paladar) tão deliciosa ao ponto de ser
insuportável, e eu deitava-me numa pilha de almofadas grandes na nossa
sala de estar e rolava para a frente e para trás numa agonia de prazer e dizia à
minha mãe, que lia sempre no sofá, que eu me sentia tão bem e tão cheio e
extasiado que mal conseguia aguentar e lembro-me dela apertar os lábios para não
rir, e dizer na voz mais seca possível que era difícil simpatizar ou ficar
preocupada com tal problema e estava confiante que eu havia de sobreviver ao êxtase,
tão intenso que eu quase tinha de reprimir um grito de prazer enquanto rolava
extasiado entre as almofadas e os livros espalhados no chão.”
Nenhum elogio de
outro escritor (e o coro é quase unânime) soa tão familiar quanto o
desinteresse de Bret Easton Ellis: “Nunca gostei de nada do que escreveu.
Tentei ler o Infinite Jest três
ou quatro vezes e nunca consegui entrar. Faço parte da minoria: também não
gostei dos ensaios. Ele faz parte de uma honestidade típica do Midwest que acho
insuportável.”
Amy Wallace, a irmã,
na cerimónia fúnebre: “O pensamento óbvio é: se ao menos ele tivesse aguentado
um pouco mais. Mas foi o que ele fez. Quantas semanas suportou em que já não
aguentava?”
Espantava-o
este paradoxo: que os clichés pudessem ser eficazes, tanto para salvar um alcoólico
da dependência, como para transformar um atleta num campeão. Porque é que a
grande arte não nos livra (para sempre) do desespero, e os lugares comuns, para
os quais as pessoas de gosto refinado não têm paciência, podem (num momento)
salvar-nos a vida? E a ele, o que é que (não) o salvou? Onde estás, David
Foster Wallace?
“Estou aqui.”
[1]
Não importa ali em cima, mas importa cá em baixo: “Infinite Jest” (1996),
segundo e último romance que David Foster Wallace publicou em vida.
[2]
The
Pale King.
Organização de Michael Pietsch e Bonnie Nadell. Lançamento previsto para 15 de
Abril de 2011. DFW trabalhou 12 anos neste projecto. Os protagonistas trabalham
num departamento de impostos. É o mundos dos números em conflito com a
realidade lá fora, e as estratégias dos contabilistas para sobrevirem ao tédio
de uma vida abstracta. A Harper’s e The New Yorker publicaram excertos, mas a
parte que tem causado maior curiosidade é o capítulo introdutório em que DFW
fala da sua experiência (apócrifa) de trabalho no IRS, depois de ser confundido
com outro David Wallace que ocupava um cargo de influência. Esta opção por um
tema tão desinteressante deve tomar em linha de conta o seu afecto por temas
impossíveis, à semelhança dos escolhidos por Kafka, um autor em que admirava o
sentido de humor, como notou num ensaio que lhe dedicou:
“A
luta horrível para criar um si humano resulta num si cuja humanidade é
inseparável dessa luta horrível. A nossa busca impossível e sem fim até casa é
já a nossa casa (…) este desespero de querer entrar, de bater, de pontapear e
fazer estrondo. Finalmente a porta abre-se… e abre-se para fora – estivemos
sempre dentro daquilo em que queríamos entrar. Das ist komisch”.
[3] Em França, onde a obra de
DFW tem vindo a ser publicada, Infinite Jest permanece inédito (é preciso um louco para traduzir
um trabalho de loucos).
[4]
Em
Hideous Men,
Dylan McCullough encenou doze pseudo-entrevistas do livro de contos Brief interviews
with hideous men
(1999); o comediante John Krasinski também adaptou ao cinema algumas destas
histórias, em 2009
[5]
A failed entertainment, na LeRoy Neiman Gallery, onde um grupo de artistas tornou
reais alguns dos filmes do realizador James O. Incandenza, a partir de uma
filmografia em nota de rodapé no romance Infinite Jest
[6]
Consider
David Foster Wallace: critical essays (ed. Side Show Media Group, 2010), editado por
David Hering, a partir de um ciclo de conferências na universidade de
Liverpool; Understandig David Foster Wallace (Univ.
South carolina Press, 2009), de Marshal Boswell; menos académico, David
Lipsky publicou Although
of course you end up becoming yourself, entrevista-em-viagem a DFW durante a digressão
para promover Infinite
Jest.
Originalmente era uma encomenda da Rolling Stone, que acabou por não ser
publicada.
[7]
Clube de leitores on-line de Infinite jest: infinitesummer.org (4310 membros no Facebook); há
ainda um blog, supposedlyfunthings.wordpress.com, com textos inspirados nos
ensaios, artigos e reportagens de DFW.
[8]
O arquivo pessoal de DFW está disponível no Harry Ranson Center (Univ. Texas,
Austin); informação actualizada dedicada a estudos e trabalhos sobre DFW:
thehowlingfantods.com
[9]
Ó êxtase! Ó fantasia! A verdade queima!
[10]
Derivative
Sport in Tornado Alley, é o título do mesmo texto, na recolha de reportagens e ensaios
A
supposedly fun thing I will never do again (1997)
[11]
David Lynch era a grande referência geracional de DFW, em particular Veludo Azul
[12]
Originalmente publicado na Premiere, e incluído na colectânea Consider the
Lobster
(2005) sob o título Big
red son,
[13]
Toward
the end of time,
de John Updike; o artigo de DFW foi publicado no New York Observer, em 1998, e
incluído na compilação Consider
the Lobster.
[14]
Publicado na Harper’s em 1998; re-intitulado “A supposedly fun thing I’ll never
do again” em formato de livro.
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