A expressão inglesa “pay the deeds”, que “prestar homenagem”, ou “pagar
dividendos” não traduzem com rigor, designa a necessidade de um artista de sucesso
repartir os louros com aqueles que maior influência exerceram sobre o seu
trabalho. Não sei se foi essa a intenção de Ricardo Araújo Pereira,
quando
deu o seu nome à colecção de livros de humor da Tinta da China, mas é o que
parece acontecer com este livro. O norte-americano Robert Benchley (1889-1945)
não é apenas um mestre para o humorista português. Segundo ele escreve no
prefácio de “Wit”, já o era para Groucho Marx e continuou a sê-lo para
sucessivas gerações de humoristas norte-americanos, até Woody Allen. “Foi um
humorista a quem os mestres chamavam mestre”. E não é apenas uma referência
estilística: Benchley começou por ser um jornalista (com humor), escreveu crónicas
(de humor), livros (de humor), escreveu argumentos e realizou filmes (de humor)
e participou como actor (humorista) em algumas comédias musicais. De resto, em
1935 ganhou um Óscar para a curta metragem “How to sleep” (que viria a gerar a
série “How to…”). Quem se interessa pelo ofício de fazer rir os outros tem aqui
matéria de luxo para estudar.
Mas “Wit” é também literatura. E Robert Benchley escreve bem (aliás, é
traduzido por um bom tradutor, Júlio Henriques, que não sendo especialista em humor, utiliza o
português com eficácia).
Benchley sabe, por exemplo, utilizar a retórica das convenções de linguagem.
Depois de descrever uma paisagem “exótica”, conclui que “é de facto uma vista
magnífica, a não ser que estejamos a olhar na direcção errada”.
A repetição é uma das ferramentas principais do humor (consiste em
repetir algo que em si não tem piada, e que a repetição torna hilariante). Na
crónica “Uma volta ao mundo com o boleeiro cigano”, depois de descrever “as exóticas
fragâncias do Oriente” em Gukla, no primeiro parágrafo, no segundo
apresenta-nos “o coronel Michington Meã, ‘o boleeiro cigano’, que vai ser o
vosso guia nesta viagem à longínqua Gukla, onde (ver primeiro parágrafo)”. A
leitura do primeiro parágrafo diz assim… “onde as exóticas fragrâncias do
Oriente”, etc.
Escreve tão bem, Benchley, que chegamos a saber da sua boa educação
(estudou em Harvard), até mesmo quando pretende ser desrespeitoso. A propósito
das palestras de espiritismo em que participou, diz ter mantido o silêncio em
todas: “sobretudo por que passei quase todo o tempo a comer bolachas”. Benchley
não fala com a boca cheia.
O desrespeito pelas convenções morais da sua época, factor de cómica
marotice, agora que esses mesmos valores entraram em desuso, ganham um efeito
de cómico bota-de-elástico: “Comecei as minhas experiências de espiritismo em
1909, quando estava sentado no escuro com uma rapariga que mais tarde acabou
por não ser a minha esposa”.
Notemos agora o uso falacioso de um pormenor como elemento distintivo: “Tinham
então começado a ser usados os relógios de ponteiros fosforescentes e eu tinha
um dos poucos que havia na cidade. Na realidade, eu tinha um dos poucos relógios
da cidade”. Aqui interrompemos a frase porque Benchley abusa. Estica-se na
piada e perde piada. Continuemos a frase: “porque a maior parte das pessoas
ainda usava as ampulhetas de outrora”. A frase termina com uma última oração,
que não tem piada nenhuma: “por serem [as ampulhetas de outrora] mais cómodas.”
Uma das principais ferramentas de trabalho de um bom humorista é a
capacidade de observar e entender qualquer fenómeno de forma lógica, e depois
desmontar as convenções que habitualmente deturpam o sentido da realidade. A
convenção, para o caso, é a do documentário (que é suposto reproduzir o real
sem o retocar; ao mesmo tempo esse real deve “acontecer”, ou seja, ter
acontecimentos), e que por seu lado inclui outra convenção, a de que as
masmorras, ou as caves das lendas, são lugares escuros (escuridão que tem de
ser dramatizada, de outro modo a cave não podia ser filmada). Eis como Benchley
desmonta e remonta tudo isto: “Decidido a aclarar a verdade de uma destas
lendas, desloquei-me ao templo, à meia-noite, e desci à cave. Podem ver-me
aqui, graças à luz intensa de dois projectores de cinema que por acaso
trouxemos (…) o que seria aquilo do meu lado direito? Estaquei, com as câmaras
assestadas em mim. Era o rumor de uma mulher a soluçar! Por sorte, os
microfones estavam a funcionar devidamente”.
Numa crónica sobre a “febre de fenos” (de que o autor diz sofrer), em
que o registo de “conselhos práticos” luta com o “relato do paciente” (que luta
com a doença e a incredulidade que a doença inspira nos outros), o autor
explica como resolveu o problema (de ter uma doença ridícula) sem resolvê-lo
(ou seja, continuando a sofrer da doença): “retirar-me para um quarto escuro,
fechar as janelas e passar o tempo a rasgar pedacinhos de papel entre 18 de
Agosto e 15 de Setembro”.
A coincidência cómica é outro efeito de humor que Benchley utiliza,
através de um acontecimento secundário, que surge entre parêntesis: Estou a dar
pancadinhas tão fortes na madeira que o homem do quarto ao lado gritou agora
mesmo: ‘Entre!’”; “Quando eu era rapaz (lembro-me bem de o presidente Franlkin
Pierce [que morreu vinte anos antes de Benchley nascer] também exclamar: ‘E que
belo rapaz!’)”.
O parêntesis é o recurso estilístico em que Benchley consegue os
melhores efeitos de humor, mas também os piores. Seguem-se dois exemplos da sua
falta de piada entre parêntesis: Segundo opiniosas informações provenientes de
Paris (se é que aceitamos as opiniões de uma cidade tão mal afamada)”; “Apreciador
de cavalos como eu sou, quando os conheço pessoalmente (e com uma mão cheia de
açúcar garanto que consigo criar amizade com qualquer cavalo – ou então perco a
mão até ao punho na tentativa)”.
O humor vive muito de tornar o irracional razoável e a razão tornar-se
absurda. Tal deve-se ao facto dos humoristas serem dos poucos seres
inteligentes a aperceberem-se que a razão é apenas uma convenção de sentido
cuja solidez tem um prazo de validade ou um ângulo favorável. O humorista é
também alguém que se apercebe que os valores, hábitos e crenças de uma dada época,
tornam-se ridículos com o surgimento de outros paradigmas. A passagem do tempo,
e as mudanças que o tempo traz, é assim uma das alavancas do humor. O que este
livro tem de melhor tem a ver com as convenções do tempo. O que este livro tem
de pior tem a ver com as convenções do autor.
Benchley, por vezes, torna-se tão ridículo como as convenções que
pretende ridicularizar, porque também ele é um produto do seu tempo: sublinha o
seu sentido de humor como quem ri da sua piada. Ou seja, Benchley é escravo da
necessidade de fazer rir, o que nem sempre tem piada. Para a época em que
trabalhou, foi sem dúvida corrosivo, mas a passagem do tempo veio revelar um
humor também pomposo. Esse esquema mental, no entanto, também pode ter a sua
graça, pois até um observador do seu quotidiano (e os bons humoristas são
sempre observadores que desconstroem o seu quotidiano) se pode tornar alvo,
digamos assim, de um olhar antropológico: “Dispormos de um carregador que nos
leve a bagagem é uma prática desportiva que só há relativamente pouco tempo
começou a ter aceitação nos Estados Unidos. Impôs-se com a feminização da nossa
raça e com a moda dos punhos nas camisas (em “A vida desportiva na América:
seguir o carregador”).
Pomposo é também o subtítulo do livro, ao chamar “ensaios” a crónicas.
Seria também interessante nesta compilação incluir as datas dos textos e, tendo
em conta o impacto cultural das revistas para onde Benchley escrevia, até as
publicações em que surgiram.
(2010)
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