quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Mário de Carvalho: a arte de morrer longe




Mário de Carvalho (n.1945, Lisboa) começou a publicar o seu trabalho aos 36 anos; em 86 lançou uma paródia ao romance de época, com “A paixão do Conde Fróis”; em 94 teve o seu primeiro sucesso com um falso romance histórico, “Um Deus passeando pela brisa da tarde”; e no ano seguinte escreveu “Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto”, sobre um homem que não é de esquerda mas decide aderir ao PCP durante a sua pior crise. “A arte de morrer longe” (ed. Caminho) hesita entre a paródia-que-é-metáfora-do-país de “Fantasia para dois coronéis e uma piscina” (2003) e a abordagem mais intimista de “A sala magenta” (2008). A Lagoa Moura, cenário do seu romance anterior, é de resto revisitada para um mergulho a dois (cineasta + tartaruga), na sequência do qual o autor reúne as personagens de ambos os livros.

Este seu novo livro auto-inclui-se num novo género literário, o “cronovelema”, e tem como protagonista “um certo jovem casal desavindo, morador ao Lumiar, convencido, por esses dias, de que a sua ‘comunhão de vida’ (luminosa formulação legal) estava a dar as últimas” e passa-se “antes da fase do divórcio, de que anteviam maçadas burocráticas e tortuosidade jurídicas”.
Ou talvez não. Talvez a personagem principal seja a tartaruga de que o casal procura livrar-se ao longo de 115 páginas, por razões mais palpáveis do que o motivo que leva Arnaldo e Bárbara, “que andavam pelos trinta anos”, a querer o divórcio: “Para além do facto de ser um animal com um poder de sedução discutível e que dava pouco azo a empatias, não podia sentir-se livre nem realizado, já com um tamanho daqueles, num aquário tão estreito. E a verdade é que a infelicidade dos nossos animais interfere com a nossa e chega mesmo a causar grandes amuos.”
Ou talvez não. Talvez seja a “bela e nunca por demais celebrada cidade de Lisboa, urbe das urbes, afamado remanso de brandura, nimbado de zimbórios e palmeiras” e onde “a moda das tartarugas exóticas começou um dia a fatigar”.
Ou talvez não. Talvez a única personagem deste livro seja a de um escritor que quer continuar a escrever sobre aquilo que o rodeia, mas que também o incomoda, ou aborrece, e por isso disserta, deambula, perora, esquiva-se. “A arte de morrer longe” parece resultar do mal-estar provocado por um autor saturado com o universo que ele próprio elegeu. Isso revela-se em diálogos tíbios e ilustrativos, cenas a servirem como demonstração, num humor forçado e sem graça. Subsiste uma impressão de casa desarrumada que se deve menos ao acompanhamento reticente e elíptico das personagens do que à estrutura chiante do livro, com comentários, generalizações e notas sobre literatura a substituírem a composição das cenas.
Mário de Carvalho tem de haver-se com personagens desagradáveis, com os seus coloquialismos pedantes e jargão parolo, com a sua “leva de rancores e recriminações”. Concedemos: é tarefa aborrecida. Opta então por resumos ilustrativos das suas relações desadequadas e animosas, como se fossem superficiais e postiças. As personagens não comunicam as razões da sua infelicidade e mesquinhez, mas é o autor que parece impor-lhes essa impotência.
A narração, gongórica, truculenta, é tão feia quanto os hábitos desenxabidos de uma certa contemporaneidade (fala-se muito de internet e redes sociais; curiosamente as relações estão resumidas à família e ao trabalho). E quando o narrador-autor afirma que “o nosso legislador é abstracto e geral, tão abstracto e geral que se desinteressa do que sejam dez metros, dezassete metros, quanto mais cinquenta metros”, nem se apercebe que ele próprio tem a mesma “repugnância comichosa” pelos números, ao comparar a altura de dois colegas de trabalho: “Arnaldo tinha metade do tamanho dele” (deduzimos que o marido de Bárbara tem um metro de altura e o colega dois).
Quando lembra a semelhança entre a situação vivida pelo casal da sua história com a cena inaugural de “Anna Karenina” (em que Oblonski dorme separado da mulher), também não parece aperceber-se do estilo redacção-escola contido nestas linhas devedoras de um conselheiro matrimonial: “naquele casal não existia maturidade que permitisse um exercício recíproco de apaziguamento. Sobrelevavam, por um lado, as exigências de amor-próprio (…) o próprio receio do fracasso, não fosse o esforço de conciliação um passo mal dado, a causar mal entendidos e mais consequências enviesadas” (Nota: Suf menos).
Mário de Carvalho ganhou fama de ser irónico. Tem dias. Há qualquer coisa de “antipatia fininha” entre o autor e as personagens que escolheu. Como se não passassem de cromos que representam uma paisagem humana confusa, descrente e desolada. À semelhança de Quintão Malpique (que o autor propõe como a versão-internet do Palma Cavalão criado por Eça na “Corneta do Diabo”) o livro tem um estilo “largo e folgazão”, e procura inspirar “familiaridade”. O seu “cronovelema” é uma espécie de comentário apenso a uma crónica da portugalidade. Como enunciado nem está mal. O resultado faz lembrar os contadores de anedotas que espetam uma cotovelada no ouvinte, para ele se rir, e depois explicam, para que entenda.
“E aí está como as circunstâncias da tartaruga reclusa, no seu exíguo compartimento, desimpedida de movimentar os membros, a cabeça, e de embater contra as paredes do aquário, evocam a condição humana, livre de esbracejar dentro dos seus limites, mas apenas pressentindo, sem os compreender, e sem atingir as suas verdadeiras naturezas, as vozes, os rumores e os relampejos que há em volta.”
Se “A arte de morrer longe” fosse um disco, era salvo por uma canção: trata-se do parágrafo sobre a loja de ferragens na Rua de S. Paulo, com um diálogo meticuloso entre o cliente especialista e o empregado sabedor do ofício, escutado por um burguês “abatido por tanta ciência”.
(2010)

1 comentário:

  1. esta crónica estava inédita; nessa semana o editor do Ipsílon recebeu dois textos sobre o mesmo livro, e optou por editar a crítica de Pedro Mexia.

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