Mário de Carvalho
(n.1945, Lisboa) começou a publicar o seu trabalho aos 36 anos; em 86 lançou
uma paródia ao romance de época, com “A paixão do Conde Fróis”; em 94 teve o
seu primeiro sucesso com um falso romance histórico, “Um Deus passeando pela
brisa da tarde”; e no ano seguinte escreveu “Era bom que trocássemos umas
ideias sobre o assunto”, sobre um homem que não é de esquerda mas decide aderir
ao PCP durante a sua pior crise. “A arte de morrer longe” (ed. Caminho)
hesita entre a paródia-que-é-metáfora-do-país de “Fantasia para dois coronéis e
uma piscina” (2003) e a abordagem mais intimista de “A sala magenta” (2008). A
Lagoa Moura, cenário do seu romance anterior, é de resto revisitada para um
mergulho a dois (cineasta + tartaruga), na sequência do qual o autor reúne as
personagens de ambos os livros.
Este seu novo livro
auto-inclui-se num novo género literário, o “cronovelema”, e tem como
protagonista “um certo jovem casal desavindo, morador ao Lumiar, convencido,
por esses dias, de que a sua ‘comunhão de vida’ (luminosa formulação legal)
estava a dar as últimas” e passa-se “antes da fase do divórcio, de que anteviam
maçadas burocráticas e tortuosidade jurídicas”.
Ou talvez não.
Talvez a personagem principal seja a tartaruga de que o casal procura livrar-se
ao longo de 115 páginas, por razões mais palpáveis do que o motivo que leva
Arnaldo e Bárbara, “que andavam pelos trinta anos”, a querer o divórcio: “Para
além do facto de ser um animal com um poder de sedução discutível e que dava
pouco azo a empatias, não podia sentir-se livre nem realizado, já com um
tamanho daqueles, num aquário tão estreito. E a verdade é que a infelicidade
dos nossos animais interfere com a nossa e chega mesmo a causar grandes amuos.”
Ou talvez não.
Talvez seja a “bela e nunca por demais celebrada cidade de Lisboa, urbe das
urbes, afamado remanso de brandura, nimbado de zimbórios e palmeiras” e onde “a
moda das tartarugas exóticas começou um dia a fatigar”.
Ou talvez não.
Talvez a única personagem deste livro seja a de um escritor que quer continuar
a escrever sobre aquilo que o rodeia, mas que também o incomoda, ou aborrece, e
por isso disserta, deambula, perora, esquiva-se. “A arte de morrer longe”
parece resultar do mal-estar provocado por um autor saturado com o universo que
ele próprio elegeu. Isso revela-se em diálogos tíbios e ilustrativos, cenas a
servirem como demonstração, num humor forçado e sem graça. Subsiste uma impressão
de casa desarrumada que se deve menos ao acompanhamento reticente e elíptico
das personagens do que à estrutura chiante do livro, com comentários,
generalizações e notas sobre literatura a substituírem a composição das cenas.
Mário de Carvalho
tem de haver-se com personagens desagradáveis, com os seus coloquialismos
pedantes e jargão parolo, com a sua “leva de rancores e recriminações”.
Concedemos: é tarefa aborrecida. Opta então por resumos ilustrativos das suas
relações desadequadas e animosas, como se fossem superficiais e postiças. As
personagens não comunicam as razões da sua infelicidade e mesquinhez, mas é o
autor que parece impor-lhes essa impotência.
A narração, gongórica,
truculenta, é tão feia quanto os hábitos desenxabidos de uma certa
contemporaneidade (fala-se muito de internet e redes sociais; curiosamente as
relações estão resumidas à família e ao trabalho). E quando o narrador-autor
afirma que “o nosso legislador é abstracto e geral, tão abstracto e geral que
se desinteressa do que sejam dez metros, dezassete metros, quanto mais
cinquenta metros”, nem se apercebe que ele próprio tem a mesma “repugnância
comichosa” pelos números, ao comparar a altura de dois colegas de trabalho: “Arnaldo
tinha metade do tamanho dele” (deduzimos que o marido de Bárbara tem um metro
de altura e o colega dois).
Quando lembra a
semelhança entre a situação vivida pelo casal da sua história com a cena
inaugural de “Anna Karenina” (em que Oblonski dorme separado da mulher), também
não parece aperceber-se do estilo redacção-escola contido nestas linhas
devedoras de um conselheiro matrimonial: “naquele casal não existia maturidade
que permitisse um exercício recíproco de apaziguamento. Sobrelevavam, por um
lado, as exigências de amor-próprio (…) o próprio receio do fracasso, não fosse
o esforço de conciliação um passo mal dado, a causar mal entendidos e mais
consequências enviesadas” (Nota: Suf menos).
Mário de Carvalho
ganhou fama de ser irónico. Tem dias. Há qualquer coisa de “antipatia fininha”
entre o autor e as personagens que escolheu. Como se não passassem de cromos
que representam uma paisagem humana confusa, descrente e desolada. À semelhança
de Quintão Malpique (que o autor propõe como a versão-internet do Palma Cavalão
criado por Eça na “Corneta do Diabo”) o livro tem um estilo “largo e folgazão”,
e procura inspirar “familiaridade”. O seu “cronovelema” é uma espécie de comentário
apenso a uma crónica da portugalidade. Como enunciado nem está mal. O resultado
faz lembrar os contadores de anedotas que espetam uma cotovelada no ouvinte,
para ele se rir, e depois explicam, para que entenda.
“E aí está como as
circunstâncias da tartaruga reclusa, no seu exíguo compartimento, desimpedida
de movimentar os membros, a cabeça, e de embater contra as paredes do aquário,
evocam a condição humana, livre de esbracejar dentro dos seus limites, mas
apenas pressentindo, sem os compreender, e sem atingir as suas verdadeiras
naturezas, as vozes, os rumores e os relampejos que há em volta.”
Se “A arte de morrer
longe” fosse um disco, era salvo por uma canção: trata-se do parágrafo sobre a
loja de ferragens na Rua de S. Paulo, com um diálogo meticuloso entre o cliente
especialista e o empregado sabedor do ofício, escutado por um burguês “abatido
por tanta ciência”.
(2010)
esta crónica estava inédita; nessa semana o editor do Ipsílon recebeu dois textos sobre o mesmo livro, e optou por editar a crítica de Pedro Mexia.
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