quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Vila-Matas: diário volúvel


Entre 2005 e 2008, o escritor catalão Henrique Vila-Matas (Barcelona, 1948) publicou uma série de crónicas na edição dominical do El País. Com essa matéria, mais alguns textos inéditos do seu diário, trabalhou a versão em livro de “Diário Volúvel” (Teorema), um assombroso itinerário da não-vida do autor

, da estranha forma de vida que é viajar para falar de literatura, de escrever sobre os livros que se leu, e de conviver com a literatura e seus autores. Vila-Matas considera este volume aquele em que “decanta” melhor do que nunca a sua receita pessoal de ficção, ensaio e biografia. Discordo. Não reconheço a este livro nem uma mistura desses géneros, nem um género híbrido, mas um género em si mesmo, plenamente definido, a que se poderia chamar auto-ficção.
Plenamente consciente da sua não-vida, e porfiando por apagar ainda mais os traços de vida, Vila-Matas transforma-se a si mesmo numa personagem a partir de três formas de viajar: em trabalho, através da leitura e da sua memória. O autor também cita alguma música (o livro começa no seu quarto, a ouvir as Ronettes), cinema, pintura, fotografia, arquitectura, política, urbanismo… mas são viagens turísticas, digamos assim, a literatura é a sua cidade. Compreende-se o seu fascínio pelo talento conceptual de Gonçalo M. Tavares ao criar um bairro de escritores. Vila-Matas, por ele mesmo, desenha antes um itinerário, à semelhança desses mapas publicitários que se vêem nos aeroportos, com as rotas de uma companhia aérea traçadas a vermelho.
Apesar do seu aviso (“nunca existiram mapas para os nossos inumeráveis labirintos”), para visualizar melhor o itinerário de Vila-Matas, poderíamos prover-nos de um mapa-mundo e de marcadores de três cores diferentes: azul para autores e livros, assinalando os locais onde as passagens citadas ocorrem, verde para os locais onde o autor viaja, e amarelo para regressar a casa, em Barcelona.
Se há característica fácil de reconhecer na personagem auto-ficcional de Vila-Matas, é o encanto pela geografia na literatura (o traço azul). As personagens com quem melhor se relaciona são as que partilham desse mesmo fascínio, como se o mundo não existisse, e fosse apenas um efeito da imaginação, de percepções subjectivas, de mundos sonhados. A sua irmã é disso um exemplo: uma especialista em pintura chinesa sem nunca ter visitado o país. “Um belo dia, foi à China. Fomos todos despedir-nos dela ao aeroporto. Voltou e disse que a China era exactamente como a tinha sonhado. É curioso. Sergio Pitol regressou a semana passada de uma viagem à China e a única coisa que me comentou foi que ali não tinha parado de sonhar.”
Já a sua simpatia pelos portugueses, deve-se à conclusão, segundo ele atribuída a Cervantes, de que, “como são gente vazia de cérebro, cada louco com a sua mania”. “Eu gostaria que, juntamente com o indispensável telemóvel, transportássemos no bolso a nossa intransferível e nada homogénea loucura portátil”.
Outra característica reconhecível da persona de Vila-Matas em “Diário volúvel” é o seu desprezo pela única cidade que não pode imaginar, nem reconstruir a partir da leitura, que é a sua. Vila-Matas trata Barcelona como um marido que está sempre a fugir de casa e a ter escapadelas, e que só regressa para a mulher (o traço amarelo) para lamentar a sua decadência e continuar a efabular sobre outras mulheres (o traço verde ou azul).
O contacto com a realidade por ela mesma, com pessoas sem outra coisa que não seja a sua humanidade, surge como algo macabro, pestífero. As únicas presenças verdadeiramente vivas em “Diário Volúvel” são aquelas que permitem percepções, que libertam centelhas na imaginação do autor, que lhe permitem enfim continuar a dobar as suas ficções e esquivar-se dos fantasmas da morte, do envelhecimento, do esquecimento, três cabeças para uma só medusa.
Vila-Matas é exímio a explorar uma imagem de marca dos escritores: a sua misantropia; e outra que define os leitores: uma espécie de doença familiar da hipocondria, e que consiste em deixar-se influenciar pelos sintomas de um livro. A literatura enquanto antídoto da realidade, ou o seu filtro depurador, ou ainda a sua versão mitigada pela distância.
Há depois o fascínio pelo segredo, pelas máscaras. Nega que Casas Rós, escritor desfigurado e que ninguém conhece pessoalmente no meio literário, seja um pseudónimo seu, embora a forma como efabula sobre ele sugira o prazer da identificação. E se o oculto, ou o plano vazio, do apagamento, é uma obsessão, a ideia de casa é outro tema sobre o qual o autor “improvisa” e faz “variações” sempre que pode, aproximando-se, tão perigosamente quanto possível, da casa como espaço da interioridade, do que se esconde e finalmente é enterrado – desconhecido.
 “Diário volúvel”, à medida que avançamos na sua leitura, vai ganhando contornos de uma odisseia confortável, sem grandes riscos e sumamente patética. Sucedem-se as viagens e estadias no estrangeiro (os traços verdes), mas sem aventura nem acção. O que sobra é uma espécie de inutilidade escrutinada, como se a não-vida pudesse afinal ter sentido. A sua visita a Sofia, por exemplo, merece-lhe este comentário: “Não me sinto mal aqui, mas, como W.C. Fields deixou escrito no epitáfio da sua sepultura: ‘Apesar de tudo preferiria estar em Filadélfia.’” Consciente de “não ter muito para contar”, parafraseia Samuel Johnson: “nas viagens não somos a mesma pessoa mas outra, talvez mais invejável, mas perdemo-nos de nós, assim como dos nossos amigos. Saímos do nosso país e saímos também de nós mesmos. Para o doutor Johnson, os que desejam esquecer ideias dolorosas fazem bem em ausentar-se durante um tempo, mas só podemos dizer que cumprimos o nosso destino no lugar que nos viu nascer.”
Esse destino faz parte da necessidade de criar um sentido para o absurdo: “Num manicómio francês, no princípio do século XX, um louco escreveu em grandes letras nas paredes do centro: ‘Viajo para conhecer a minha geografia.’ Descobri a frase há 20 anos e incluí-a no começo de um livro de contos. E na minha viagem à Finlândia é claro que fui em busca de algumas das estranhezas e cartografias perdidas da minha geografia íntima. Mas o que é um facto é que não descobri lá nenhuma.”
Já perto do final, cita um dos seus amigos escritores, Magris, autor de um livro apropriadamente intitulado “A viagem vertical”: “no espaço doméstico, no lar, é onde o viajante empedernido joga realmente a vida, a capacidade ou a incapacidade de amar e construir, de ter e proporcionar felicidade, de crescer com coragem ou agachar-se no medo. Dito de outro modo: a casa é o lugar central do nosso mundo, é o lugar da paixão mais forte, por vezes devastadora”. E a literatura, é essa paixão devastadora, ou antes o refúgio que torna suportável a “paixão que nos trespassa”? A pergunta, claro, não merece resposta: “Não podemos conhecer-nos, mas sim narrar-nos.”
As poucas incompreensões encontradas na tradução (de Jorge Fallorca) pareceram-me facilmente resolúveis, caso o trabalho de revisão (de Miguel Martins Rodrigues) fosse mais atento. Discutível é a opção pelos títulos em espanhol das obras citadas. Mau é quando os livros nem são espanhóis. Pior é quando há tradução em português: “Rumbo a peor”, de Beckett? Que tal “Pioravantemarche”, traduzido por Miguel Esteves Cardoso? “El mar de las Sirtes” de Julien Gracq? Salvo erro, “A costa das Sirtes” foi traduzido por Virgílio Ferreira.

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