John Newsinger
inicia o primeiro capítulo desta biografia política, originalmente publicada em
1999, com uma frase que se revelará edipiana: "Eric Blair foi um filho do
Império". A vida de Eric Blair (1903-1950) e a obra do seu pseudónimo
George Orwell foram uma caminhada até à extinção das colónias britânicas em que
nasceu e cresceu.
Quanto às suas restantes lutas e opções políticas, perdeu ou enganou-se em todas. Só nos últimos anos o activista político se rendeu ao escritor, cuja grandiosidade se devia mais à imaginação do que às teias ideológicas em que se enredou.
Quanto às suas restantes lutas e opções políticas, perdeu ou enganou-se em todas. Só nos últimos anos o activista político se rendeu ao escritor, cuja grandiosidade se devia mais à imaginação do que às teias ideológicas em que se enredou.
O seu
anti-imperialismo teve origem na Birmânia, onde nasceu e foi polícia (experiência
que deu origem a "Os Dias da Birmânia" e a um dos seus mais belos
ensaios, "Shooting an elephant"). É já na Europa que desenvolve uma
versão politizada e comprometida daquilo a que hoje se chama "jornalismo
literário", com Orwell a preferir o papel de agente infiltrado ao de repórter:
"A ideia era escrever a partir de dentro, acerca do modo como vivem os pobres,
mas tendo por alvo o público da classe média. Como seria de esperar, este
projecto não estava isento de problemas; as suas incursões não passavam disso
mesmo, raids temporários entre os sem-abrigo, efectuados por alguém tão
distante nas suas origens e educação que mais parecia de outro mundo. Este
exercício continha, inevitavelmente, uma dimensão colonial: Orwell andava a
explorar o lado negro da Inglaterra (e de Paris), regressando depois à civilização
com histórias exóticas para contar".
Esta técnica de
recolher material a partir do interior da realidade abordada foi utilizada em
"Na penúria em Paris e em Londres" (sobre mendigos e desempregados),
"O caminho para Wigan Pier" (sobre os mineiros no norte de
Inglaterra), "Homenagem à Catalunha" (tema a que haveria de voltar no
ensaio "Recordando a guerra civil espanhola"). Acumula-se nele o
anti-imperialista, o socialista, o socialista-revolucionário, anti-estalinista:
"Tudo o que escrevi desde 1936 foi escrito, directa ou indirectamente,
contra o totalitarismo e a favor do socialismo democrá-tico".
Com o surgimento da
Segunda Guerra Mundial, vê a oportunidade de operar-se na Inglaterra a revolução
socialista, mas aquele que sonhava em "construir um socialista sobre o
esqueleto de um patriota empedernido", desenterra o patriota em si e
abdica da revolução, que troca por um "trotskismo literário".
"Como explicou Orwell o fracasso dos seus anseios revolucionários?",
pergunta Newsinger. Na "carta de Londres" que assina para a revista
norte-americana "Partisan Review", "faz um notável pedido de
desculpas pelas suas 'muitas previsões erradas' (...) a ideia de que a guerra e
a revolução era inseparáveis revelara-se 'um erro tremendo'".
Com a febre
revolucionária a baixar, um analista mais ponderado sobreveio. "À medida
que as esperanças de derrube revolucionário do capitalismo se
desvaneciam", escreve Newsinger, "assim Orwell se afastava da
ideologia revolucionária", sem abandonar a sua "hostilidade para com
o comunismo soviético, uma brutal tirania mascarada de socialismo".
"A quinta dos
animais" era uma sátira à revolução soviética "com um sentido mais
amplo". Qualquer "revolução conspiratória violenta conduzida por
gente inconscientemente faminta de poder" teria como resultado "a
mera troca de amos"; com "Mil novecentos e oitenta e quatro"
Orwell "conseguiu fixar, com enorme êxito, a sua particular e sinistra visão
de um regime totalitário no imaginário popular". Mas "para grande
surpresa dele, a obra foi largamente apreciada enquanto ataque ao socialismo em
si mesmo". Orwell vê-se na obrigação de defender o livro contra os seus...
defensores de direita! Tal como as crianças que, na fase edipiana, não dominam
o pai e entram na fase de latência, seria Orwell "um conservador
latente"?
Newsinger,
historiador socialista, pretende encaminhar o seu leitor para outra questão. A
recusa da esquerda em reconhecer o que se passava na Rússia estalinista
permitiu o uso de "Mil novecentos e oitenta e quatro" contra a própria
ideia de socialismo. O estalinismo "levou os melhores e mais corajosos
intelectuais, activistas e militantes socialistas a fazerem a apologia de uma
ditadura criminosa, talhando a respectiva actividade política à medida dos
interesses da política externa e das ambições imperiais dessa ditadura, e
fazendo da desonestidade política um modo de vida para os que mantiveram o
mesmo rumo. Os danos que esta atitude infligiu à causa socialista são incalculáveis."
O seu maior erro foi não ter dado maior ênfase ao imaginário do poder, por
oposição à análise política.
(2010)
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