quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Ujica: autobiografia de Nicolae Ceausescu


Ceausescu transformou a Roménia numa colossal produção cinematográfica. Andrei Ujica oferece-nos um retrato do ditador enquanto realizador e actor principal de um país. 


O único privilégio de assistir ao funeral de alguém é talvez o de podermos imaginar como vai ser o nosso. As primeiras imagens da “Autobiografia de Nicolae Ceausescu” são de um dia de Natal, pouco antes do casal Nicolae e Elena ser condenado à morte por um tribunal militar improvisado em Târgoviste (a que chegaram de helicóptero, em fuga de uma multidão em cólera que se juntara na Piatza Palatului, Bucareste). As imagens seguintes são de 1965, com uma multidão em correria, até se estabilizar numa ordenada fila que serpenteia pelas ruas e se interna no edifício onde o corpo de Gheorge Ghiorghiu-Dej, então o líder comunista romeno, está em câmara ardente. Entalado entre soldados, um jovem de olhar humilde, belos cabelos ondulados e porte elegante, carrega o caixão de Gheorghiu por entre a multidão, à saída para a Piatza Palatului (a porta que acabou de franquear será a da sua residência nos próximos 25 anos). Mais à frente, num funeral típico de aldeia, vê-lo-emos de cabelos prateados, o olhar ainda humilde e o porte elegante, a carregar o caixão da sua mãe.
Mas na hora da morte o camarada Ceausescu (ler tcheauchescu) não teve direito a honras de Estado nem a uma cerimónia familiar. Para ele não houve multidão nem grandiosidade, nem tão pouco regresso às origens camponesas. Vinte e um anos depois da sua despachada execução, aquilo que vemos em “Autobiografia de Nicolae Ceaucescu” não é a banalidade do mal e o julgamento final. O que vemos, com o beneplácito cooperante do Ocidente desenvolvido, é uma nação inteira a participar activamente no delírio de um homem que durante quase 25 anos transformou um país numa brincadeira infantil. Walt Disney fez os seus filmes e criou a Disneyland, mas Ceauscescu montou o seu parque de diversões privado numa área de 238,391 km2 com 20 milhões de figurantes.
Podemos chamar ao documento coligido por Andrei Ujica uma autobiografia assistida que dura três horas hipnóticas: Nicolae Ceausescu filmado como ele queria, nas circunstâncias por ele escolhidas. Com “Videogramas de uma Revolução” (1992), realizado em colaboração com Harun Farocki, Ujica acompanhou o fim da brincadeira e a desmontagem da grande ilusão. Com esta “Autobiografia”, Ujica dá-nos a ver uma fábula, um conto de fadas em que realidade e ilusão são os dois fios que tecem uma só malha: as crianças agradecem pela sua felicidade, o 1º de Maio cobre-se de flores, dança-se no ano novo, festejam-se as colheitas de 1966, uma multidão compacta contorna o desenho dos carrosséis, os representantes das nações comunistas são recebidos no Muzeul Satului (museu a céu aberto, no Parque Herastrau, onde figuram casas em tamanho real representando as diversas regiões do país), Charles de Gaulle aterra em Bañeasa (onde actualmente se fazem os voos de low-cost), Dubcek agradece “a amizade e as flores”, sucedem-se as recepções, os banhos de multidão, os discursos, os aplausos.
Moscovo destrói a Primavera de Praga e o amigo Dubcek é saneado. Ceausescu, na varanda da sua residência dá uma manifestação de força para o exterior. A multidão reunida na Piatza Palatului em apoio à Checoslováquia é um gesto de dissidência política. Orquestra-se o mito, para exportação. Durante a próxima década Nixon visita Bucareste e quando ele próprio visita os EUA Jimmy Carter faz o seguinte elogio: “O povo dos EUA sente-se honrado por ter convidado um grande líder de um grande país. É um grande privilégio para mim ter a oportunidade de aconselhar-me com um líder nacional e internacional como o nosso convidado. A sua influência enquanto líder romeno e através do mundo internacional [sic] é excepcional.” Washington também lhe oferece um banho de multidão (versão descontraída). Tal como a China, acompanhado por Mão (versão eufórica). Tal como Inglaterra, onde a carruagem que carrega o Querido “Conducator” e a Rainha passa em frente a uma sala de cinema que exibe “Garganta Funda” (versão agradável).
Cresce a aura do “filho de camponeses”, como ele se define, e soa a liturgia o coro que entoa “Multsi ani, traiasca” por ocasião dos seus 55 anos. Sucedem-se novos títulos e cargos, Ceausescu transcende o seu papel, a sua visão é a de um país em vias de desenvolvimento que ele também quer ver transcendido. Brejnev, ternurento faz-lhe uma festa no rosto, depois senta-se a seu lado num sofá, e enquanto fuma um cigarro, debruça-se para o camarada romeno em íntima cavaqueira, que o som não capta.
Na palavras de Ujica à revista “Cinemascope”: “Não há propaganda que consiga fazer uma encenação completa a partir da realidade. Atrás ou ao lado das imagens descobrem-se fragmentos da vida real (…) as imagens e cenas de propaganda também são vivas. Simplificamos as coisas, mas estas cenas são parte da vida não apenas de Ceausescu mas de toda esta gente – quando perdiam horas a fio para irem a uma parada, isto era uma parte importante das suas vidas”.

As paradas são uma parte integrante do modo de vida romeno durante o comunismo. Os regimes comunistas, ou tão somente ditatoriais, realizam-se naquilo que de mais profundo têm para dar numa parada. A simetria, a multidão enquanto um só corpo articulado e ordenado, com uma direcção clara e inequívoca, a desenhar formas, caminhos, é algo que inspira reverência e êxtase. Nos anos 60, têm ainda uma estética militar, acrescentada de demonstrações atléticas mais ou menos risíveis. Mas na década seguinte Ceausescu viaja até ao extremo-oriente e na Coreia do Nortes assiste a paradas que atingem níveis de elaboração causadores de estados de comoção e “delirium tremens”. As ruas tornam-se espaços coreografados: manchas coloridas onde se adivinham corpos humanos fazem e desfazem formas geométricas, efeitos ópticos; a totalidade das bancadas de um estádio são ocupadas não por espectadores, mas por um ecrã humano que gera imagens animadas através da manipulação de bandeirinhas, cartões e lenços. Ceausescu assiste à narração ilustrada da história do seu próprio país. E desenha na sua imaginação o próximo passo. Também ele quer cerimónias abrilhantadas por impressionantes ecrãs humanos: milhares de pessoas, durante meses, são deslocadas dos seus empregos durante metade do dia para ensaiarem estas imagens animadas, em que um ser humano corresponde a um “pixel”. A impressão mais forte que guardo destes ecrãs humanos, é a de uma fotografia tirada durante um ensaio: uma senhora faz tricô; na bancada à sua frente, um rapaz empunha um cartão colorido com uma mão e lê um livro com a outra.
1977 é o ano do terramoto. A providência dá a mão ao “conducator”. A visão de uma cidade moderna, futurista, sem a incómoda sombra da herança burguesa, que testemunhou em Pyongyang… mas não! Falso alarme! Bucareste fica parcialmente destruída (e guarda desde então o aspecto de uma cidade desengonçada, os seus edifícios parece que foram abanados – e foram). Boa parte dos edifícios destruídos, no entanto, já haviam sido erguidos pelo comunismo. As casas com quintais mantém-se teimosamente. Cerca de 30 mil habitações serão removidas para implementar a mastodôntica Casa da República. Com o fim do regime é rebaptizada Palácio do Parlamento, mas a população de Bucareste no que respeita aos nomes oficiais é muito parecida com a lisboeta e toda a gente conhece o edifício como Casa Poporului (casa do povo).
Há uma cena que parece ter sido concebida numa parceria de Jacques Tati com Stanley Kubrick: Ceausescu visita a maqueta com os projectos de modernização da cidade. Apesar da escala, as dimensões são colossais e é instalada uma plataforma que desliza por cima da maqueta. Anos depois, as fundações da sua futura casa (nunca chegará a habitá-la) impressionam: “É muito maior do que na maqueta!”
Ceausescu não se ficou pela sua casa. Toda a área foi redimensionada e construída de raiz. Impera o Boulevard Unirii, com as suas fontes a perder de vista para lá da Piatza Unirii, uma série de edifícios oficiais que ficaram inacabados, fachadas e fachadas grandiosas num pomposo estilo sem estilo. Disse fachadas: basta contornar as grandes avenidas e eis que é revelada a encenação: não passam de prédios, banais blocos de betão construídos à pressa e que tapam a visão dos bairros limítrofes a sul que foram poupados. As tristonhas avenidas cinzento-acastanhadas que se sucedem pelo resto da cidade, como um pesadelo aborrecido, servem também de biombo a uma Bucareste alternativa em que se vive uma atmosfera de aldeia, fazendo lembrar que por trás da aparência urbana boa parte da população vem do campo. Os mercados que ainda sobrevivem são disso um exemplo, com os camponeses a venderem legumes e fruta da época e os queijeiros de bata branca e chapéus ovais de feltro, de faca empunhada com uma prova de queijo na ponta. A cena em que Ceausescu prova um pedaço de “brânza proaspata” é um ritual comum a todos os clientes ainda hoje: só levar depois de provar.
Em rigor, Ceausescu não é muito diferente da figura paternalista de um cacique de província. A diferença está toda na escala, e nos meios à sua disposição A ele foi-lhe permitido sonhar e executar a visão do sonho. A Roménia dos anos 70 poderia ser – e foi – o “missing link” entre Pyongyang e Hollywood. O episódio do XII Congresso do Partido Comunista Romeno, em que Constantin Parvulescu o acusa de ter convocado o congresso para forçar a sua reeleição no comité central já fazia adivinhar o que tinha acontecido. O culto da personalidade havia gerado uma figura insubstancial, logo intocável. Tão perfeita como uma parada, a audiência na Sala Palatului levanta-se num só movimento e entoa “Ceausescu shi poporul”, num loop que se repete até afundar de regresso à insignificância o gesto individual de Parvulescu.
Com o esfriar das relações externas e uma dívida apavorante (dez mil milhões de dólares aos EUA) os anos 80 são os do isolamento e de um projecto que de tão louco resultou: saldar a dívida numa década (Ceausescu foi morto antes de acabar a sua nova casa, mas depois da Roménia pagar a totalidade da dívida). São os anos em que a produção interna se destina à exportação. Ceausescu supervisiona o país com a energia de um capataz: observa os efeitos de destruição das cheias, intima os escritores a escreverem poesia social e revolucionária, e não apenas abstracções e poemas de amor; repara nas espigas ainda com grãos depois de serem debulhadas e questiona o construtor da debulhadora nova se não é possível construir uma máquina que evite o desperdício; entra numa padaria, confere o peso do pão e chama à atenção para a qualidade do pão ser melhor no campo. Seria divertido, se as lojas não fossem decoradas com produtos alimentares apenas para que o “conducator” pudesse entrar nelas e filmar a sua cena.
“Mentiras, mistificações, provocações” são as últimas palavras que lhe escutamos, mas há um mistério que a “Autobiografia” não revela. Ceausescu foi o encenador e intérprete principal desta farsa, ou, à semelhança de Salazar, passou os últimos anos da sua vida com a ilusão de governar um país, quando já não passava de um mero símbolo de poder? Marionetista ou marioneta?

Faz parte da aura de um ditador mandar construir e ver em seu redor um novo país a erguer-se (a Roménia foi a casa em obras de Ceausescu). Mas qual é afinal o poder do indivíduo perante o real? Regressemos a Pyongyang: Ceausescu e Kim Il Jung assistem da tribuna a uma coreografia colectiva cujos figurantes preenchem a totalidade do estádio, de fazer empalidecer a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Moscovo. Todos fazem parte da encenação. Para admirá-la só restam dois espectadores. Na sociedade do espectáculo todos participam, mas só o ditador tem o poder de dirigir o olhar para o que está a acontecer: o real, a sua encenação.
(2010)



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