Ceausescu transformou a Roménia numa colossal produção cinematográfica. Andrei Ujica oferece-nos um retrato do ditador enquanto realizador
e actor principal de um país.
O único privilégio de assistir ao funeral de alguém é talvez o de
podermos imaginar como vai ser o nosso. As primeiras imagens da “Autobiografia
de Nicolae Ceausescu” são de um dia de Natal, pouco antes do casal
Nicolae e Elena ser condenado à morte por um tribunal militar improvisado em Târgoviste
(a que chegaram de helicóptero, em fuga de uma multidão em cólera que se
juntara na Piatza Palatului, Bucareste). As imagens seguintes são de 1965, com
uma multidão em correria, até se estabilizar numa ordenada fila que serpenteia
pelas ruas e se interna no edifício onde o corpo de Gheorge Ghiorghiu-Dej, então
o líder comunista romeno, está em câmara ardente. Entalado entre soldados, um
jovem de olhar humilde, belos cabelos ondulados e porte elegante, carrega o
caixão de Gheorghiu por entre a multidão, à saída para a Piatza Palatului (a
porta que acabou de franquear será a da sua residência nos próximos 25 anos).
Mais à frente, num funeral típico de aldeia, vê-lo-emos de cabelos prateados, o
olhar ainda humilde e o porte elegante, a carregar o caixão da sua mãe.
Mas na hora da morte o camarada Ceausescu (ler tcheauchescu) não teve
direito a honras de Estado nem a uma cerimónia familiar. Para ele não houve
multidão nem grandiosidade, nem tão pouco regresso às origens camponesas. Vinte
e um anos depois da sua despachada execução, aquilo que vemos em “Autobiografia
de Nicolae Ceaucescu” não é a banalidade do mal e o julgamento final. O que
vemos, com o beneplácito cooperante do Ocidente desenvolvido, é uma nação
inteira a participar activamente no delírio de um homem que durante quase 25
anos transformou um país numa brincadeira infantil. Walt Disney fez os seus
filmes e criou a Disneyland, mas Ceauscescu montou o seu parque de diversões
privado numa área de 238,391 km2 com 20 milhões de figurantes.
Podemos chamar ao documento coligido por Andrei Ujica uma autobiografia
assistida que dura três horas hipnóticas: Nicolae Ceausescu filmado como ele
queria, nas circunstâncias por ele escolhidas. Com “Videogramas de uma Revolução”
(1992), realizado em colaboração com Harun Farocki, Ujica acompanhou o fim da
brincadeira e a desmontagem da grande ilusão. Com esta “Autobiografia”, Ujica dá-nos
a ver uma fábula, um conto de fadas em que realidade e ilusão são os dois fios
que tecem uma só malha: as crianças agradecem pela sua felicidade, o 1º de Maio
cobre-se de flores, dança-se no ano novo, festejam-se as colheitas de 1966, uma
multidão compacta contorna o desenho dos carrosséis, os representantes das nações
comunistas são recebidos no Muzeul Satului (museu a céu aberto, no Parque
Herastrau, onde figuram casas em tamanho real representando as diversas regiões
do país), Charles de Gaulle aterra em Bañeasa (onde actualmente se fazem os
voos de low-cost), Dubcek agradece “a amizade e as flores”, sucedem-se as recepções,
os banhos de multidão, os discursos, os aplausos.
Moscovo destrói a Primavera de Praga e o amigo Dubcek é saneado.
Ceausescu, na varanda da sua residência dá uma manifestação de força para o
exterior. A multidão reunida na Piatza Palatului em apoio à Checoslováquia é um
gesto de dissidência política. Orquestra-se o mito, para exportação. Durante a
próxima década Nixon visita Bucareste e quando ele próprio visita os EUA Jimmy
Carter faz o seguinte elogio: “O povo dos EUA sente-se honrado por ter
convidado um grande líder de um grande país. É um grande privilégio para mim
ter a oportunidade de aconselhar-me com um líder nacional e internacional como
o nosso convidado. A sua influência enquanto líder romeno e através do mundo
internacional [sic] é excepcional.” Washington também lhe oferece um banho de
multidão (versão descontraída). Tal como a China, acompanhado por Mão (versão
eufórica). Tal como Inglaterra, onde a carruagem que carrega o Querido “Conducator”
e a Rainha passa em frente a uma sala de cinema que exibe “Garganta Funda”
(versão agradável).
Cresce a aura do “filho de camponeses”, como ele se define, e soa a
liturgia o coro que entoa “Multsi ani, traiasca” por ocasião dos seus 55 anos.
Sucedem-se novos títulos e cargos, Ceausescu transcende o seu papel, a sua visão
é a de um país em vias de desenvolvimento que ele também quer ver transcendido.
Brejnev, ternurento faz-lhe uma festa no rosto, depois senta-se a seu lado num
sofá, e enquanto fuma um cigarro, debruça-se para o camarada romeno em íntima
cavaqueira, que o som não capta.
Na palavras de Ujica à revista “Cinemascope”: “Não há propaganda que
consiga fazer uma encenação completa a partir da realidade. Atrás ou ao lado
das imagens descobrem-se fragmentos da vida real (…) as imagens e cenas de
propaganda também são vivas. Simplificamos as coisas, mas estas cenas são parte
da vida não apenas de Ceausescu mas de toda esta gente – quando perdiam horas a
fio para irem a uma parada, isto era uma parte importante das suas vidas”.
As paradas são uma parte integrante do modo de vida romeno durante o
comunismo. Os regimes comunistas, ou tão somente ditatoriais, realizam-se
naquilo que de mais profundo têm para dar numa parada. A simetria, a multidão
enquanto um só corpo articulado e ordenado, com uma direcção clara e inequívoca,
a desenhar formas, caminhos, é algo que inspira reverência e êxtase. Nos anos
60, têm ainda uma estética militar, acrescentada de demonstrações atléticas
mais ou menos risíveis. Mas na década seguinte Ceausescu viaja até ao
extremo-oriente e na Coreia do Nortes assiste a paradas que atingem níveis de
elaboração causadores de estados de comoção e “delirium tremens”. As ruas
tornam-se espaços coreografados: manchas coloridas onde se adivinham corpos
humanos fazem e desfazem formas geométricas, efeitos ópticos; a totalidade das
bancadas de um estádio são ocupadas não por espectadores, mas por um ecrã
humano que gera imagens animadas através da manipulação de bandeirinhas, cartões
e lenços. Ceausescu assiste à narração ilustrada da história do seu próprio país.
E desenha na sua imaginação o próximo passo. Também ele quer cerimónias
abrilhantadas por impressionantes ecrãs humanos: milhares de pessoas, durante
meses, são deslocadas dos seus empregos durante metade do dia para ensaiarem
estas imagens animadas, em que um ser humano corresponde a um “pixel”. A
impressão mais forte que guardo destes ecrãs humanos, é a de uma fotografia
tirada durante um ensaio: uma senhora faz tricô; na bancada à sua frente, um
rapaz empunha um cartão colorido com uma mão e lê um livro com a outra.
1977 é o ano do terramoto. A providência dá a mão ao “conducator”. A
visão de uma cidade moderna, futurista, sem a incómoda sombra da herança
burguesa, que testemunhou em Pyongyang… mas não! Falso alarme! Bucareste fica
parcialmente destruída (e guarda desde então o aspecto de uma cidade desengonçada,
os seus edifícios parece que foram abanados – e foram). Boa parte dos edifícios
destruídos, no entanto, já haviam sido erguidos pelo comunismo. As casas com
quintais mantém-se teimosamente. Cerca de 30 mil habitações serão removidas
para implementar a mastodôntica Casa da República. Com o fim do regime é
rebaptizada Palácio do Parlamento, mas a população de Bucareste no que respeita
aos nomes oficiais é muito parecida com a lisboeta e toda a gente conhece o
edifício como Casa Poporului (casa do povo).
Há uma cena que parece ter sido concebida numa parceria de Jacques Tati
com Stanley Kubrick: Ceausescu visita a maqueta com os projectos de modernização
da cidade. Apesar da escala, as dimensões são colossais e é instalada uma
plataforma que desliza por cima da maqueta. Anos depois, as fundações da sua
futura casa (nunca chegará a habitá-la) impressionam: “É muito maior do que na
maqueta!”
Ceausescu não se ficou pela sua casa. Toda a área foi redimensionada e
construída de raiz. Impera o Boulevard Unirii, com as suas fontes a perder de
vista para lá da Piatza Unirii, uma série de edifícios oficiais que ficaram
inacabados, fachadas e fachadas grandiosas num pomposo estilo sem estilo. Disse
fachadas: basta contornar as grandes avenidas e eis que é revelada a encenação:
não passam de prédios, banais blocos de betão construídos à pressa e que tapam
a visão dos bairros limítrofes a sul que foram poupados. As tristonhas avenidas
cinzento-acastanhadas que se sucedem pelo resto da cidade, como um pesadelo
aborrecido, servem também de biombo a uma Bucareste alternativa em que se vive
uma atmosfera de aldeia, fazendo lembrar que por trás da aparência urbana boa
parte da população vem do campo. Os mercados que ainda sobrevivem são disso um
exemplo, com os camponeses a venderem legumes e fruta da época e os queijeiros
de bata branca e chapéus ovais de feltro, de faca empunhada com uma prova de
queijo na ponta. A cena em que Ceausescu prova um pedaço de “brânza proaspata” é
um ritual comum a todos os clientes ainda hoje: só levar depois de provar.
Em rigor, Ceausescu não é muito diferente da figura paternalista de um
cacique de província. A diferença está toda na escala, e nos meios à sua
disposição A ele foi-lhe permitido sonhar e executar a visão do sonho. A Roménia
dos anos 70 poderia ser – e foi – o “missing link” entre Pyongyang e Hollywood.
O episódio do XII Congresso do Partido Comunista Romeno, em que Constantin
Parvulescu o acusa de ter convocado o congresso para forçar a sua reeleição no
comité central já fazia adivinhar o que tinha acontecido. O culto da
personalidade havia gerado uma figura insubstancial, logo intocável. Tão
perfeita como uma parada, a audiência na Sala Palatului levanta-se num só
movimento e entoa “Ceausescu shi poporul”, num loop que se repete até afundar
de regresso à insignificância o gesto individual de Parvulescu.
Com o esfriar das relações externas e uma dívida apavorante (dez mil
milhões de dólares aos EUA) os anos 80 são os do isolamento e de um projecto
que de tão louco resultou: saldar a dívida numa década (Ceausescu foi morto
antes de acabar a sua nova casa, mas depois da Roménia pagar a totalidade da dívida).
São os anos em que a produção interna se destina à exportação. Ceausescu
supervisiona o país com a energia de um capataz: observa os efeitos de destruição
das cheias, intima os escritores a escreverem poesia social e revolucionária, e
não apenas abstracções e poemas de amor; repara nas espigas ainda com grãos
depois de serem debulhadas e questiona o construtor da debulhadora nova se não é
possível construir uma máquina que evite o desperdício; entra numa padaria,
confere o peso do pão e chama à atenção para a qualidade do pão ser melhor no
campo. Seria divertido, se as lojas não fossem decoradas com produtos alimentares
apenas para que o “conducator” pudesse entrar nelas e filmar a sua cena.
“Mentiras, mistificações, provocações” são as últimas palavras que lhe
escutamos, mas há um mistério que a “Autobiografia” não revela. Ceausescu foi o
encenador e intérprete principal desta farsa, ou, à semelhança de Salazar,
passou os últimos anos da sua vida com a ilusão de governar um país, quando já
não passava de um mero símbolo de poder? Marionetista ou marioneta?
Faz parte da aura
de um ditador mandar construir e ver em seu redor um novo país a erguer-se (a
Roménia foi a casa em obras de Ceausescu). Mas qual é afinal o poder do indivíduo perante o real? Regressemos a
Pyongyang: Ceausescu e Kim Il Jung assistem da tribuna a uma coreografia
colectiva cujos figurantes preenchem a totalidade do estádio, de fazer
empalidecer a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Moscovo. Todos fazem
parte da encenação. Para admirá-la só restam dois espectadores. Na sociedade do
espectáculo todos participam, mas só o ditador tem o poder de dirigir o olhar
para o que está a acontecer: o real, a sua encenação.
(2010)
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