quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Cortázar: papéis inesperados


Em 2006, em Paris, Aurora Bernardez descobriu, no escritório onde trabalhava o marido, o escritor argentino Júlio Cortázar, uma “gaveta transbordante” da cómoda com “um monte de manuscritos e textos dactilografados originais”

como recorda Carlos Alvarez Garriga, que assina o prólogo destes “Papéis inesperados”. O livro pertence-lhes mais do que a Cortázar, que morreu em 1984.
Cortázar publicou dois livros de “miscelânia” (“A volta ao dia em oitenta mundos”, de 1967, já se encontra traduzido pela Cavalo de Ferro). "Papéis Inesperados – escritos inéditos" (ed. Cavalo de Ferro) resulta na tal espécie de almanaque tão ao gosto de Cortázar, tal é o cabaz, com narrativas em esboço ou que ficaram de fora de outros livros, textos políticos, poemas, notas introdutórias, crónicas de jornal, artigos e reflexões sobre arte e artistas, pseudo-entrevistas, divertimentos de linguagem, entretenimentos de quem escreve, o diabo a sete. O autor de “Bestiário” e “Rayuela”, não publicou boa parte dos textos incluídos nestes “Papéis Inesperados” (que foram sendo escritos ao longo de quarenta anos). Outros há que foram publicados ao correr dos anos na imprensa do mundo hispânico – é esse o melhor material do livro, entre as suas quase 500 páginas.
“Um cronópio no México” (1975) é uma crónica de viagem (comovente, hilariante) em que o primeiro protagonista é um engraxador que julga que a Argentina fica na Guatemala e que é possível vir de Táxi: “E quanto é que o táxi da Argentina para Veracruz lhe cobrou?” (um parêntesis para chamar à atenção de “So shine, shine, shoe-shine boy”, de 1970, outra crónica dedicada aos engraxadores, neste caso da Índia. Nas suas quatro assombrosas páginas, o autor descreve apenas os truques de uma criança para limpar uns sapatos de camurça). O segundo protagonista é o hotel Mocambo, que leva Cortázar a lembrar-se de outro hotel que conheceu na Argentina, na província de Córdoba, cujo proprietário “mandou colocar bustos de todos os presidentes da república e por fim o seu próprio.” O jardim desse hotel tinha “um labirinto de verdura em cujo centro invisível havia uma jaula dissimulada com trepadeiras, e na jaula um leão”. Segue-se a homenagem ao Clube dos Cronópios fundado em Estocolmo, e mais particularmente à sua equipa de futebol: “Do seu estilo de jogo dá ideia uma fotografia que me enviaram e na qual se vê o guarda-redes cronópio de braços cruzados a bastante distância do sítio onde devia estar, e contemplando com ar de grande satisfação o avançado adversário que lhe está a marcar um valente golo”;
“Um sonho realizado” (1980) cruza duas memórias de infância: “A Vertigem”, um poema em décimas de don faspar Núñez de Arce e o romance “O raio verde”, de Júlio Verne. Na véspera de fazer 65 anos, Cortázar assiste a um pôr do sol à beira-mar e dói-lhe “por antecipação que as crianças presentes o esperassem [ao raio verde] com a mesma ansiedade com que eu o tinha desejado no meu absurdo horizonte suburbano; agora seria pior, agora as condições estavam reunidas e não haveria raio verde, os pais justificariam de qualquer maneira o fiasco para consolar os pequenos – a vida – chamam-lhe assim – marcaria outro ponto no seu caminho para o conformismo”. Mas o raio verde aparece no último raio de sol! “Era uma chispa intensamente verde, era um raio verde ainda que não fosse um raio, era o raio verde, era Júlio Verne murmurando-me ao ouvido: ‘Viste-o finalmente, grande tonto?’”
Outro texto curioso é “Monkey business”. A propósito da descoberta de uma fraude, em que uma série de quadros elogiados pela crítica e adquiridos por colecionadores foram pintados por um chimpazé, Cortázar regressa à ideia modernista (que Duchamp fixou com o ‘objet trouvé’) de que é o olhar que faz a arte: “Come a tua banana, Chimp, tu e qualquer um podem besuntar telas, mas faz falta o outro que as olha e que, do baralho inteiro, tira a carta carregada de poder, o brasão de uma poesia tramada entre muitos, a partir de tantas casualidades, através de perdas infinitas, para dar de tempos a tempos uma obra perfeita na qual algo tiveram que ver um chimpanzé ou um dia de chuva”.
Entre os textos publicados na imprensa, para além daqueles que revelam o artista, há ainda um bloco de 148 páginas com textos políticos e quase sempre dedicados à América Latina (nomeadamente aos horrores das ditaduras militares), em que se fica a conhecer o marxista, anti-imperialista e exilado em França. Sob o título “Circunstâncias”, nele se encontra uma longa entrevista à edição espanhola da revista “Life” e em que Cortázar se revela como politicamente paranóico.
No que respeita à ficção, destaco dois textos ligeiros: “Manuscrito encontrado ao lado de uma mão” sobre um chantagista com poderes para arruinar concertos de violino, sempre que pensa na sua tia; e “Em Matilde”, inventivo divertimento na forma de conjugar sujeito e predicado: “O escritório vem às nove e por isso às oito e meia o meu apartamento sai-me e a escada resvala-me rapidamente porque com os problemas do transporte não é fácil que o escritório chegue a tempo (…) a rua passa depressa porque eu a ajudo atirando-a para trás com os sapatos (…) o pequeno almoço põe-se em fila para que o autocarro abra a boca, vê-se que gosta de nos saborear”.
Cometi o erro de começar a ler pelo princípio e esbarrei nas narrativas de juventude, talvez o material menos interessante. É antes um livro para folhear, abrir em páginas ao acaso, à procura de centelhas entre a poeira. De agulhas no palheiro. 
(2010)

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