como recorda Carlos Alvarez Garriga, que assina o prólogo destes “Papéis inesperados”. O livro pertence-lhes mais do que a Cortázar, que morreu em 1984.
Cortázar
publicou dois livros de “miscelânia” (“A volta ao dia em oitenta mundos”, de
1967, já se encontra traduzido pela Cavalo de Ferro). "Papéis Inesperados
– escritos inéditos" (ed. Cavalo de Ferro) resulta na tal espécie de
almanaque tão ao gosto de Cortázar, tal é o cabaz, com narrativas em esboço ou
que ficaram de fora de outros livros, textos políticos, poemas, notas
introdutórias, crónicas de jornal, artigos e reflexões sobre arte e artistas,
pseudo-entrevistas, divertimentos de linguagem, entretenimentos de quem
escreve, o diabo a sete. O autor de “Bestiário” e “Rayuela”, não publicou boa
parte dos textos incluídos nestes “Papéis Inesperados” (que foram sendo
escritos ao longo de quarenta anos). Outros há que foram publicados ao correr
dos anos na imprensa do mundo hispânico – é esse o melhor material do livro,
entre as suas quase 500 páginas.
“Um
cronópio no México” (1975) é uma crónica de viagem (comovente, hilariante) em
que o primeiro protagonista é um engraxador que julga que a Argentina fica na
Guatemala e que é possível vir de Táxi: “E quanto é que o táxi da Argentina
para Veracruz lhe cobrou?” (um parêntesis para chamar à atenção de “So shine,
shine, shoe-shine boy”, de 1970, outra crónica dedicada aos engraxadores, neste
caso da Índia. Nas suas quatro assombrosas páginas, o autor descreve apenas os
truques de uma criança para limpar uns sapatos de camurça). O segundo
protagonista é o hotel Mocambo, que leva Cortázar a lembrar-se de outro hotel
que conheceu na Argentina, na província de Córdoba, cujo proprietário “mandou
colocar bustos de todos os presidentes da república e por fim o seu próprio.” O
jardim desse hotel tinha “um labirinto de verdura em cujo centro invisível
havia uma jaula dissimulada com trepadeiras, e na jaula um leão”. Segue-se a
homenagem ao Clube dos Cronópios fundado em Estocolmo, e mais particularmente à
sua equipa de futebol: “Do seu estilo de jogo dá ideia uma fotografia que me
enviaram e na qual se vê o guarda-redes cronópio de braços cruzados a bastante
distância do sítio onde devia estar, e contemplando com ar de grande satisfação
o avançado adversário que lhe está a marcar um valente golo”;
“Um
sonho realizado” (1980) cruza duas memórias de infância: “A Vertigem”, um poema
em décimas de don faspar Núñez de Arce e o
romance “O raio verde”, de Júlio Verne. Na véspera de fazer 65 anos, Cortázar
assiste a um pôr do sol à beira-mar e dói-lhe “por antecipação que as crianças
presentes o esperassem [ao raio verde] com a mesma ansiedade com que eu o tinha
desejado no meu absurdo horizonte suburbano; agora seria pior, agora as
condições estavam reunidas e não haveria raio verde, os pais justificariam de
qualquer maneira o fiasco para consolar os pequenos – a vida – chamam-lhe assim
– marcaria outro ponto no seu caminho para o conformismo”. Mas o raio verde
aparece no último raio de sol! “Era uma chispa intensamente verde, era um raio
verde ainda que não fosse um raio, era o raio verde, era Júlio Verne
murmurando-me ao ouvido: ‘Viste-o finalmente, grande tonto?’”
Outro
texto curioso é “Monkey business”. A propósito da descoberta de uma fraude, em
que uma série de quadros elogiados pela crítica e adquiridos por colecionadores
foram pintados por um chimpazé, Cortázar regressa à ideia modernista (que
Duchamp fixou com o ‘objet trouvé’) de que é o olhar que faz a arte: “Come a
tua banana, Chimp, tu e qualquer um podem besuntar telas, mas faz falta o outro que as olha e que, do baralho inteiro,
tira a carta carregada de poder, o brasão de uma poesia tramada entre muitos, a
partir de tantas casualidades, através de perdas infinitas, para dar de tempos
a tempos uma obra perfeita na qual algo tiveram que ver um chimpanzé ou um dia
de chuva”.
Entre
os textos publicados na imprensa, para além daqueles que revelam o artista, há
ainda um bloco de 148 páginas com textos políticos e quase sempre dedicados à
América Latina (nomeadamente aos horrores das ditaduras militares), em que se
fica a conhecer o marxista, anti-imperialista e exilado em França. Sob o título
“Circunstâncias”, nele se encontra uma longa entrevista à edição espanhola da
revista “Life” e em que Cortázar se revela como politicamente paranóico.
No
que respeita à ficção, destaco dois textos ligeiros: “Manuscrito encontrado ao
lado de uma mão” sobre um chantagista com poderes para arruinar concertos de
violino, sempre que pensa na sua tia; e “Em Matilde”, inventivo divertimento na
forma de conjugar sujeito e predicado: “O escritório vem às nove e por isso às
oito e meia o meu apartamento sai-me e a escada resvala-me rapidamente porque
com os problemas do transporte não é fácil que o escritório chegue a tempo (…)
a rua passa depressa porque eu a ajudo atirando-a para trás com os sapatos (…)
o pequeno almoço põe-se em fila para que o autocarro abra a boca, vê-se que
gosta de nos saborear”.
Cometi
o erro de começar a ler pelo princípio e esbarrei nas narrativas de juventude,
talvez o material menos interessante. É antes um livro para folhear, abrir em
páginas ao acaso, à procura de centelhas entre a poeira. De agulhas no
palheiro.
(2010)
Sem comentários:
Enviar um comentário