quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Ana Teresa Pereira: Inverness


Na pág. 103 de “Inverness” (ed. Relógio d'Água) somos presenteados com uma sinopse de “Inverness: “A história de uma actriz que representava o papel de outra mulher e se transformava nela.”
 Juntamente com o tema do livro dentro do livro, o doppelgänger é um dos motivos mais banais na história da literatura. Está para a arte como o vidro duplo para as janelas. Ao vigésimo sétimo título de Ana Teresa Pereira volta então o duplo, e com ele os seus espelhos e reflexos no lago, a história da mulher, do marido e do amante, a mulher desaparecida do escritor e a actriz que a substitui, o livro dentro do livro, as personagens vindas de livros anteriores e a roupa que é sempre a mesma, o tema do nevoeiro, enfim, o estojo completo.
Ana Teresa Pereira (n.1958, Funchal), faz piruetas sobre a sua obra como quem se passeia junto à costa até concluir que ainda se encontra na mesma ilha. Mesmo no interior do livro, repete-se, repete-se. Os capítulos sucedem-se como ondas que teimam em subir os mesmos rochedos. “Às vezes acho que é disso que estou à procura quando escrevo. As velhas memórias”, diz o escritor Clive. “Não imaginar, mas recordar…” responde a actriz Kate. “E as palavras são só uma forma de chegar lá. Têm de ser simples, e claras, e obedecer a um ritmo próprio, que inclui a repetição”.
A autora, ou a personagem do escritor do livro dentro do livro, ou as personagens narcísicas por ele recriadas (a sua mulher; a actriz que a encarna), entidades que o avanço do livro confunde, procuram obsessivamente reviver, ou retomar, qualquer coisa mais ou menos tangível que ficou para trás, e que os tornou dependentes.
Não há novidade. “Inverness” é um romance de aparências banal e encantador. Seduz como uma mulher muito bonita, cujo principal talento é o modo de insinuar segredos e mistérios. A técnica de diferença e repetição usada por Ana Teresa Pereira resulta num filtro mágico depurador. Ela convoca géneros populares (mais em particular as história de fantasmas) e procede à destilação do fascínio por essa literatura, discorrendo por frases ou palavras (“velha casa inglesa”, “chapéu de feltro azul”, “rosas vermelhas, frescas”, “rosto quase escondido por um chapéu”, “as mãos geladas nos bolsos da gabardina”, “candeeiros a gaz” ou mesmo “Inverness” – a cidade escocesa junto ao rio Ness, famoso pelo seu mítico monstro) que são signos, marcos luminosos que hipnotizam.
A escrita de Ana Teresa Pereira revela-se no domínio da sedução, de fazer o leitor aguardar pela promessa de um nada e que a nada vai dar. Ou melhor, vai dar ao nevoeiro: “Um dia, eu e um amigo avançámos pelo mar [gelado] dentro… Não havia ninguém por perto para nos impedir… lembro-me de que estava um pouco de nevoeiro… e o desafio era dar mais um passo…”
Em “Inverness”, por via de atmosferas devedoras do policial e do fantástico, chegamos ao centro nervoso do fascínio pelo conto de fadas. É o território mental da realidade alada: “Uma manhã, ao acordar, sentira que o mundo estava diferente. O som do mundo era diferente. Quando abriu as vidraças, o vento trouxe flocos de neve que derreteram no chão do quarto.” Estes eventos “banais”, do “quotidiano”, são a matéria-prima que Ana Teresa Pereira elege e selecciona para a sua versão gasosa, e abstrata, do conto de fadas.
O encanto é a possível manifestação, em actos ou gestos, do que entendemos por beleza. O leitor não é cúmplice, ou testemunha, das manobras de sedução de Ana Teresa Pereira. A escritora usa o leitor como alvo do seu charme. A experiência de ler “Inverness” não é muito distante do idiota que se deixa arrastar atrás duma desconhecida na rua.
O capítulo 15 inicia-se assim: “Naquela manhã, [Kate] acordou com o pressentimento de que Jenny ia voltar.” À noite, numa festa em que deve fazer-se passar por Jenny em frente aos amigos dela, Kate usa o vestido verde de Jenny. Antes, no capítulo 7, Clive conta a Kate a primeira vez em que viu Jenny: “Jenny tinha o cabelo preso na nuca e um vestido verde. Ela gosta muito de verde. Ali, debaixo dos lilases, parecia saída de um poema de um escritor russo, parecia uma recordação de infância.” O capítulo 15 termina com uma frase de Clive “Não tenhas medo, Jenny nunca vai voltar”, mas no capítulo 16, depois de duas páginas de transição, em que é apenas uma “rapariga”, Kate, a actriz, desaparece para dar lugar a Jenny, mulher de Clive. O mistério da transformação da actriz na sua personagem tem o seu quê de charada ao estilo de Robbe-Grillet. Perseguimos, seduzidos, o enredo e as personagens como uma criança a contar as pintas de uma girafa num aglomerado de nuvens altas.
O livro devolve-nos a sua construção, ou melhor, os seus truques e jogos de fascínio. A “inquietante estranheza das histórias” é também a forma como Ana Teresa Pereira traduz o seu olhar, estampado numa trama de falsos enredos. Esse olhar é de uma candura desarmantes quando enumera as plantas do  lago, as flores que se encontram num canteiro, quando nos fala do “estalar de um ramo debaixo de um pé” ou de como “é possível transformar um relvado num campo florido. Irá atrair milhares de insectos, pássaros e borboletas. Mas só o podemos aparar duas vezes por ano, para que as flores tenham tempo de dar sementes.”
A fascinante “banalidade” desta história está em ser uma colecção, maravilhosamente disposta, de réplicas esquecidas dos originais. Como se o passado da literatura, ou da própria obra da autora, não tivessem outra materialidade para além de figuras deambulando no nevoeiro. Ana Teresa Pereira escreve como Jenny faz amor (“tinha a experiência de uma mulher que começou a fazer amor aos catorze ou quinze anos. O sexo nela era tão natural… como comer, ou andar, ou dizer uma oração à noite”). E num livro cujo instrumento sensorial é a visão, é divertido notar que o amante de Jenny descobre o disfarce de Kate pelo cheiro. Apesar de usarem o mesmo perfume.
(2010)






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