Na pág. 103 de “Inverness” (ed. Relógio d'Água) somos presenteados com uma sinopse de “Inverness:
“A história de uma actriz que representava o papel de outra mulher e se
transformava nela.”
Juntamente com o tema do livro dentro do livro, o doppelgänger é um dos motivos mais banais na história da literatura. Está para a arte como o vidro duplo para as janelas. Ao vigésimo sétimo título de Ana Teresa Pereira volta então o duplo, e com ele os seus espelhos e reflexos no lago, a história da mulher, do marido e do amante, a mulher desaparecida do escritor e a actriz que a substitui, o livro dentro do livro, as personagens vindas de livros anteriores e a roupa que é sempre a mesma, o tema do nevoeiro, enfim, o estojo completo.
Juntamente com o tema do livro dentro do livro, o doppelgänger é um dos motivos mais banais na história da literatura. Está para a arte como o vidro duplo para as janelas. Ao vigésimo sétimo título de Ana Teresa Pereira volta então o duplo, e com ele os seus espelhos e reflexos no lago, a história da mulher, do marido e do amante, a mulher desaparecida do escritor e a actriz que a substitui, o livro dentro do livro, as personagens vindas de livros anteriores e a roupa que é sempre a mesma, o tema do nevoeiro, enfim, o estojo completo.
Ana Teresa Pereira (n.1958, Funchal), faz piruetas sobre a sua obra
como quem se passeia junto à costa até concluir que ainda se encontra na mesma
ilha. Mesmo no interior do livro, repete-se, repete-se. Os capítulos sucedem-se
como ondas que teimam em subir os mesmos rochedos. “Às vezes acho que é disso
que estou à procura quando escrevo. As velhas memórias”, diz o escritor Clive. “Não
imaginar, mas recordar…” responde a actriz Kate. “E as palavras são só uma
forma de chegar lá. Têm de ser simples, e claras, e obedecer a um ritmo próprio,
que inclui a repetição”.
A autora, ou a personagem do escritor do livro dentro do livro, ou as
personagens narcísicas por ele recriadas (a sua mulher; a actriz que a
encarna), entidades que o avanço do livro confunde, procuram obsessivamente
reviver, ou retomar, qualquer coisa mais ou menos tangível que ficou para trás,
e que os tornou dependentes.
Não há novidade. “Inverness”
é um romance de aparências banal e encantador. Seduz como uma mulher muito
bonita, cujo principal talento é o modo de insinuar segredos e mistérios. A técnica
de diferença e repetição usada por Ana Teresa Pereira resulta num filtro mágico
depurador. Ela convoca géneros populares (mais em particular as história de
fantasmas) e procede à destilação do fascínio por essa literatura, discorrendo
por frases ou palavras (“velha casa inglesa”, “chapéu de feltro azul”, “rosas
vermelhas, frescas”, “rosto quase escondido por um chapéu”, “as mãos geladas
nos bolsos da gabardina”, “candeeiros a gaz” ou mesmo “Inverness” – a cidade
escocesa junto ao rio Ness, famoso pelo seu mítico monstro) que são signos,
marcos luminosos que hipnotizam.
A escrita de Ana Teresa Pereira revela-se no domínio da sedução, de
fazer o leitor aguardar pela promessa de um nada e que a nada vai dar. Ou
melhor, vai dar ao nevoeiro: “Um dia, eu e um amigo avançámos pelo mar [gelado]
dentro… Não havia ninguém por perto para nos impedir… lembro-me de que estava
um pouco de nevoeiro… e o desafio era dar mais um passo…”
Em “Inverness”, por via de atmosferas devedoras do policial e do fantástico,
chegamos ao centro nervoso do fascínio pelo conto de fadas. É o território
mental da realidade alada: “Uma manhã, ao acordar, sentira que o mundo estava
diferente. O som do mundo era diferente. Quando abriu as vidraças, o vento
trouxe flocos de neve que derreteram no chão do quarto.” Estes eventos “banais”,
do “quotidiano”, são a matéria-prima que Ana Teresa Pereira elege e selecciona
para a sua versão gasosa, e abstrata, do conto de fadas.
O encanto é a possível manifestação, em actos ou gestos, do que
entendemos por beleza. O leitor não é cúmplice, ou testemunha, das manobras de
sedução de Ana Teresa Pereira. A escritora usa o leitor como alvo do seu
charme. A experiência de ler “Inverness” não é muito distante do idiota que se
deixa arrastar atrás duma desconhecida na rua.
O capítulo 15 inicia-se assim: “Naquela manhã, [Kate] acordou com o
pressentimento de que Jenny ia voltar.” À noite, numa festa em que deve
fazer-se passar por Jenny em frente aos amigos dela, Kate usa o vestido verde
de Jenny. Antes, no capítulo 7, Clive conta a Kate a primeira vez em que viu
Jenny: “Jenny tinha o cabelo preso na nuca e um vestido verde. Ela gosta muito
de verde. Ali, debaixo dos lilases, parecia saída de um poema de um escritor
russo, parecia uma recordação de infância.” O capítulo 15 termina com uma frase
de Clive “Não tenhas medo, Jenny nunca vai voltar”, mas no capítulo 16, depois
de duas páginas de transição, em que é apenas uma “rapariga”, Kate, a actriz,
desaparece para dar lugar a Jenny, mulher de Clive. O mistério da transformação
da actriz na sua personagem tem o seu quê de charada ao estilo de
Robbe-Grillet. Perseguimos, seduzidos, o enredo e as personagens como uma criança
a contar as pintas de uma girafa num aglomerado de nuvens altas.
O livro devolve-nos a sua construção, ou melhor, os seus truques e
jogos de fascínio. A “inquietante estranheza das histórias” é também a forma
como Ana Teresa Pereira traduz o seu olhar, estampado numa trama de falsos
enredos. Esse olhar é de uma candura desarmantes quando enumera as plantas
do lago, as flores que se
encontram num canteiro, quando nos fala do “estalar de um ramo debaixo de um pé”
ou de como “é possível transformar um relvado num campo florido. Irá atrair
milhares de insectos, pássaros e borboletas. Mas só o podemos aparar duas vezes
por ano, para que as flores tenham tempo de dar sementes.”
A fascinante “banalidade”
desta história está em ser uma colecção, maravilhosamente disposta, de réplicas
esquecidas dos originais. Como se o passado da literatura, ou da própria obra
da autora, não tivessem outra materialidade para além de figuras deambulando no
nevoeiro. Ana Teresa Pereira escreve como Jenny faz amor (“tinha a experiência
de uma mulher que começou a fazer amor aos catorze ou quinze anos. O sexo nela
era tão natural… como comer, ou andar, ou dizer uma oração à noite”). E num
livro cujo instrumento sensorial é a visão, é divertido notar que o amante de
Jenny descobre o disfarce de Kate pelo cheiro. Apesar de usarem o mesmo
perfume.
(2010)
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