quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Calvino: a especulação imobiliária


Escrito entre 5 de Abril de 1956 e 12 de Julho de 1957 (é com esta datação precisa que termina o livro), “A especulação imobiliária” (ed. Teorema) é o terceiro livro de Italo Calvino (1923-1985). Foi publicado depois de “O barão trepador” e antes de “O cavaleiro inexistente”, com o qual terminou a trilogia fantástica iniciada em “O visconde cortado ao meio”. De acordo com o autor (cito a introdução montada pelo tradutor, a partir de três depoimentos de Calvino) é “a história de uma derrota


(um intelectual que se obriga a armar-se em homem de negócios, contra todas as suas inclinações mais espontâneas) contei-a (ligando-a muito a uma época bem precisa, à Itália dos últimos anos) para dar o sentido de uma época de maré-baixa moral. O protagonista não encontra outro modo de dar largas à sua oposição aos tempos que uma raivosa mimetização do espírito dos próprios tempos”.
Esta história de uma “época bem precisa” sobre “a febre do cimento” deu-se nos anos 50 na Riviera … enfim também podia ter acontecido nos anos 80 no Algarve, ou num subúrbio da capital, ou até mesmo nos anos 90… Pensando bem, esta história pode muito bem estar a acontecer algures agora, onde houver uma casinha com um quintal simpático e um monstro de betão a tapar-lhe a linha do horizonte e a produzir mais uma família deprimida.
O que Italo Calvino acompanha são as motivações (sim, o dinheiro; sim, as dívidas; sim, o fisco) que levam uma viúva simpática e bem formada, acompanhada dos seus dois filhos intelectuais e bem pensantes, a venderem um terreno a um pato-bravo aldrabão.
Num conto moral em que a corrupção é vista à escala dos indivíduos e da família, um filho da burguesia (Quinto), com um entusiasmo de juventude pelo comunismo e uma sólida formação marxista, está sempre destinado a cair mais alto do que um pobre montanhês (Caisotti), iludido com as oportunidades oferecidas pela explosão turística e ignorante do labirinto legal-burocrático que antecede o sucesso empresarial.
Quinto, o jovem intelectual burguês, hesita sobre o que pensar do seu construtor de má fama. Simpatiza com a sua bochecha esquerda, “pouco acima dos limites da granulosa superfície da barba, quase por baixo do olho” onde descobre um arranhão provocado por uma roseira no jardim da sua mãe. “Este pormenor parecia insinuar, naquele curtido rosto de homem maduro, uma espécie de fragilidade infantil”, em oposição à “ameaça do tubarão, ou do enorme crustáceo, do caranguejo, que era o que ele parecia com as grossas mãos abandonadas sobre os braços do maple.”
Durante a assinatura do contrato, no notário, ficamos a saber que o tubarão, ou caranguejo, não sabe nadar: “com toda aquela gente instruída a pôr tudo preto no branco, Caisotti lançou à sua volta um olhar como de animal que se vê numa jaula e faz menção de recuar mas sabe que agora é inútil”. Quinto vê nele um Daniel na cova dos leões burgueses, mas “ao chegarem à ‘escritura privada’, Caisotti demonstrou-se [sic] pronto a favorecer os Anfossi em tudo e por tudo: aliás foi ele mesmo que propôs alguns truques para que as finanças não tivessem nada a dizer. E fazia tudo isto com risadinhas de esperteza e piscadelas de olho, erguendo à sua volta um pântano de cumplicidades”.
Quinto, o jovem intelectual burguês, à semelhança do seu autor, já vive fora da Riviera da sua juventude, por troca com uma grande cidade do norte. Encontra-se a fazer uma transição dos anos idealistas para a nova “realidade dos tempos”. A nova (e confusa) batalha que combate na sua consciência é pela burguesia, mas ainda assim contra os burgueses: “sentia-se de novo a fazer parte da velha burguesia da sua terra, solidário na defesa dos modestos interesses instalados, e ao mesmo tempo percebia que todos os seus movimentos não faziam senão favorecer a ascensão de Caisotti, uma equívoca e antiestética burguesia de nova cunhagem, como antiestética e imoral era a verdadeira face dos tempos que corriam.”
Enfim, Caisotti é antiestético, mas a imoralidade vai toda para o jovem intelectual burguês – e ambos pertenceram à resistência! “Dois partisans, um aldeão e um estudante, dois que se haviam rebelado ao mesmo tempo, com a ideia de que a Itália estava toda por refazer a partir do zero; e agora ei-los ali, o que se tornaram, dois que aceitam o mundo tal como está, que só pensam no dinheiro (...) dois patos-bravos da construção civil (...) e naturalmente tentam esmagar-se um ao outro. Contudo – observou Quinto – o aldeão tinha mantido aquela atitude de considerar como lutas sociais todas as dificuldades que se lhe apresentavam.”
A injustiça social reside no facto dos proprietários já não terem uma genuína relação com a terra: vivem nas grandes cidades e o dinheiro que pretendem fazer com a especulação imobiliária é menos influenciado pela necessidade de pagar impostos do que pela expectativa de um lucro sem esforço; opostamente, os arrivistas são demasiado desqualificados para se aperceberem que a sua forma de avançarem com os negócios está a gerar o cenário que acabará por destruir as suas ambições de grandeza.
A repulsa é o sentimento dominante. Neste saco de gatos, em que todos merecem ser escaldados (inclusivamente a consciência analítica do autor disfarçado por trás da personagem principal) o momento de consciência trágica dá-se com Caisotti, quando se apercebe que traiu e humilhou e abandonou o seu mais fiel trabalhador.  Está ao volante de uma motocicleta, e arranca aos solavancos, cego pelas lágrimas e com um lenço ensanguentado a tapar-lhe metade dos olhos.
Nos 28 anos seguintes da sua carreira literária, Calvino haveria de subir a outras e maiores alturas, mas este é capaz de ter sido o livro em que “disse mais coisas”.
(2010) 

Sem comentários:

Enviar um comentário