Escrito entre 5 de Abril de 1956 e 12 de Julho de 1957 (é com esta datação
precisa que termina o livro), “A especulação imobiliária” (ed. Teorema) é o terceiro livro de
Italo Calvino (1923-1985). Foi publicado depois de “O barão trepador” e antes
de “O cavaleiro inexistente”, com o qual terminou a trilogia fantástica
iniciada em “O visconde cortado ao meio”. De acordo com o autor (cito a introdução
montada pelo tradutor, a partir de três depoimentos de Calvino) é “a história
de uma derrota
(um intelectual que se obriga a armar-se em homem de negócios, contra todas as suas inclinações mais espontâneas) contei-a (ligando-a muito a uma época bem precisa, à Itália dos últimos anos) para dar o sentido de uma época de maré-baixa moral. O protagonista não encontra outro modo de dar largas à sua oposição aos tempos que uma raivosa mimetização do espírito dos próprios tempos”.
(um intelectual que se obriga a armar-se em homem de negócios, contra todas as suas inclinações mais espontâneas) contei-a (ligando-a muito a uma época bem precisa, à Itália dos últimos anos) para dar o sentido de uma época de maré-baixa moral. O protagonista não encontra outro modo de dar largas à sua oposição aos tempos que uma raivosa mimetização do espírito dos próprios tempos”.
Esta história de uma “época bem precisa” sobre “a febre do cimento”
deu-se nos anos 50 na Riviera … enfim também podia ter acontecido nos anos 80
no Algarve, ou num subúrbio da capital, ou até mesmo nos anos 90… Pensando bem,
esta história pode muito bem estar a acontecer algures agora, onde houver uma
casinha com um quintal simpático e um monstro de betão a tapar-lhe a linha do
horizonte e a produzir mais uma família deprimida.
O que Italo Calvino acompanha são as motivações (sim, o dinheiro; sim,
as dívidas; sim, o fisco) que levam uma viúva simpática e bem formada,
acompanhada dos seus dois filhos intelectuais e bem pensantes, a venderem um
terreno a um pato-bravo aldrabão.
Num conto moral em que a corrupção é vista à escala dos indivíduos e da
família, um filho da burguesia (Quinto), com um entusiasmo de juventude pelo
comunismo e uma sólida formação marxista, está sempre destinado a cair mais
alto do que um pobre montanhês (Caisotti), iludido com as oportunidades
oferecidas pela explosão turística e ignorante do labirinto legal-burocrático
que antecede o sucesso empresarial.
Quinto, o jovem
intelectual burguês, hesita sobre o que pensar do seu construtor de má fama.
Simpatiza com a sua bochecha esquerda, “pouco acima dos limites da granulosa
superfície da barba, quase por baixo do olho” onde descobre um arranhão
provocado por uma roseira no jardim da sua mãe. “Este pormenor parecia
insinuar, naquele curtido rosto de homem maduro, uma espécie de fragilidade
infantil”, em oposição à “ameaça do tubarão, ou do enorme crustáceo, do
caranguejo, que era o que ele parecia com as grossas mãos abandonadas sobre os
braços do maple.”
Durante a assinatura do contrato, no notário, ficamos a saber que o
tubarão, ou caranguejo, não sabe nadar: “com toda aquela gente instruída a pôr
tudo preto no branco, Caisotti lançou à sua volta um olhar como de animal que
se vê numa jaula e faz menção de recuar mas sabe que agora é inútil”. Quinto vê
nele um Daniel na cova dos leões burgueses, mas “ao chegarem à ‘escritura
privada’, Caisotti demonstrou-se [sic] pronto a favorecer os Anfossi em tudo e por tudo: aliás foi
ele mesmo que propôs alguns truques para que as finanças não tivessem nada a
dizer. E fazia tudo isto com risadinhas de esperteza e piscadelas de olho,
erguendo à sua volta um pântano de cumplicidades”.
Quinto, o jovem intelectual burguês, à semelhança do seu autor, já vive
fora da Riviera da sua juventude, por troca com uma grande cidade do norte.
Encontra-se a fazer uma transição dos anos idealistas para a nova “realidade
dos tempos”. A nova (e confusa) batalha que combate na sua consciência é pela
burguesia, mas ainda assim contra os burgueses: “sentia-se de novo a fazer
parte da velha burguesia da sua terra, solidário na defesa dos modestos
interesses instalados, e ao mesmo tempo percebia que todos os seus movimentos não
faziam senão favorecer a ascensão de Caisotti, uma equívoca e antiestética
burguesia de nova cunhagem, como antiestética e imoral era a verdadeira face
dos tempos que corriam.”
Enfim, Caisotti é antiestético, mas a imoralidade vai toda para o jovem
intelectual burguês – e ambos pertenceram à resistência! “Dois partisans, um
aldeão e um estudante, dois que se haviam rebelado ao mesmo tempo, com a ideia
de que a Itália estava toda por refazer a partir do zero; e agora ei-los ali, o
que se tornaram, dois que aceitam o mundo tal como está, que só pensam no
dinheiro (...) dois patos-bravos da construção civil (...) e naturalmente
tentam esmagar-se um ao outro. Contudo – observou Quinto – o aldeão tinha
mantido aquela atitude de considerar como lutas sociais todas as dificuldades
que se lhe apresentavam.”
A injustiça social reside no facto dos proprietários já não terem uma
genuína relação com a terra: vivem nas grandes cidades e o dinheiro que
pretendem fazer com a especulação imobiliária é menos influenciado pela
necessidade de pagar impostos do que pela expectativa de um lucro sem esforço;
opostamente, os arrivistas são demasiado desqualificados para se aperceberem
que a sua forma de avançarem com os negócios está a gerar o cenário que acabará
por destruir as suas ambições de grandeza.
A repulsa é o sentimento dominante. Neste saco de gatos, em que todos
merecem ser escaldados (inclusivamente a consciência analítica do autor disfarçado
por trás da personagem principal) o momento de consciência trágica dá-se com
Caisotti, quando se apercebe que traiu e humilhou e abandonou o seu mais fiel
trabalhador. Está ao volante de
uma motocicleta, e arranca aos solavancos, cego pelas lágrimas e com um lenço
ensanguentado a tapar-lhe metade dos olhos.
Nos 28 anos seguintes da sua carreira literária, Calvino haveria de
subir a outras e maiores alturas, mas este é capaz de ter sido o livro em que “disse
mais coisas”.
(2010)
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