quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Pinto Ribeiro: É Março e é Natal em Ougadougou


António Pinto Ribeiro (Lisboa, 1956) é mais conhecido pelo seu trabalho como programador e gestor cultural, mas também escreve
(os seus escritos sobre dança e cultura contemporânea serão reeditados a partir do próximo mês, na Cotovia). "É Março e é Natal em Ougadougou" (Cotovia) é um pequeno livro que compila notas de viagem, todas elas datadas (entre 2004 e 2010), à América Latina, a África e à China (sobra ainda o roteiro Nova Iorque-Paris-Veneza).
António Pinto Ribeiro não viaja para escrever, viaja em trabalho. As notas de viagem são uma espécie de efeito colateral, resultado das suas experiências como professor convidado, ou como programador. O seu olhar não é disponível (como se costuma dizer), nem tem tempo para deixar escorrer o tempo. Não há aqui sentido de descoberta, nem de curiosidade, nem tão pouco de curiosidade pelo exótico. Ao fugir do cliché  do livro de viagem, António Pinto Ribeiro presenteia-nos com um autêntico anti-livro de viagem!
O grande achado é a forma como o autor (ou narrador) não abdica de um par de antolhos. Se aceitarmos que o olhar que nos dirige é a personagem principal de um livro, então este livro tem no seu narrador uma fascinante personagem ensimesmada: aquilo a que temos acesso não são tanto os lugares que o rodeiam, mas a estrutura mental que perante eles (os lugares) se mantém inamovível, ou ligeiramente afectada. Por exemplo: uma vénia é sentida; a espiritualidade é absoluta; e o desfiladeiro God’s Window é tão fantástico quanto assustador!
Entre a personagem que viaja e os lugares, há uma camada de cultura que serve de biombo, ou palissada, de acesso ao real: “Para ir à China é bom começar por ler Mongólia, o livro de Bernardo Carvalho”; a nota de Pequim é uma recensão literária a “Pela China Dentro”, do jornalista António Caeiro; o capítulo “Percepções de África” abre com uma nota de apresentação dos diários de Jean Rouch; e a entrada em Alexandria é antecedida de uma lista de ilustres que inclui desde o fundador da cidade ao seu último grande conquistador, mais os escritores que por lá nasceram e escreveram. “É com todas estas fantasias, estas memórias de ‘outros’ que chegamos a Alexandria.” Depois de uma inicial desilusão, logo no aeroporto (sem transportes de acesso à cidade), segue-se a frase mais hilariante do livro: “Depois, quando finalmente, protagonistas de uma verdadeira aventura, chegamos à cidade…” A maior aventura do livro é a elipse! É como se tivesse sido escrito a vácuo, entre a expectativa que antecede a viagem e a chegada, com os seus grandes momentos a ocorrerem em bolhas de oxigénio que rebentam sem chegarem a revelar o que contém. Exemplos:
“Visitei a casa onde viveu Cavafis – uma casa cheia de papéis, tapetes (a comprovar a sensualidade do poeta), uma cama larga e janelas sobre as ruas, então as mais movimentadas de Alexandria. Estava lá exposta a primeira tradução portuguesa da poesia de Cavafis, da autoria de Jorge de Sena – 25 poemas. Anos depois houve a de Joaquim Manuel Magalhães.” (a elipse está na segunda tradução!);
“E há vento, este vento de sempre que varre a península, ora frio, se sopra do norte, ora quente, se vem do Saara; e relembro o poema ‘Pois o Deus Abandona António’”. (a elipse entra agora no poema!).
Se aceitarmos que uma pessoa é alguém que, para ganhar realidade, não se faz acompanhar de um cargo, ou título, então não existem pessoas neste livro. Ou melhor, existem na página 65, e são vistas através da janela de um táxi, no trânsito da Cidade do México. As pessoas observadas também se encontram à janela: “a mãe que amamenta um bebé no banco traseiro, o camionista que come um peixe seco à janela, o rapaz de uma empresa de entregas que bebe de um termo florido, a senhora que tricota mal o carro pára, aqueles dois condutores em faixas paralelas que conversam ao longo do percurso, ajeitando as viaturas de modo a mantê-las lado a lado, um homem que chora ao volante.”
Outro grande momento acontece em Bamako, quando a auto-estima do narrador sobe a níveis comparáveis ao dia em que foi recebido numa universidade chinesa com uma passadeira vermelha e guardas em continência: “Que dia de glória! Fui fotografado pelo grande Malick Sidibé no seu estúdio num bairro popular de Bamako. À chegada, reparámos numa fila de gente que esperava”. O verbo reparar denuncia distracção. O leitor interroga-se: será que o Malick Sidibé, à semelhança do Deus do poema abandona António na sala de espera? A resposta é que o narrador passa o resto da manhã a ver o grande Malick Sidibé trabalhar…
Pisemos uma estaladiça camada de humor: 20 de Fevereiro, Paris: “Depois de um dia de leitura só interrompido por uma refeição frugal”, APC diz a si mesmo: “pára. Recompõe-te, sai e dirige-te à rue Bonaparte, entra na Ladurée e escolhe um dos vários millefeuilles que te são propostos pela carta deste salão de chá, os melhores millefeuilles de Paris, e pede um chá, um chá de jasmim chinês.”
Imaginemos agora APR em Zanzibar, rodeado de turistas “que apreciam este desleixo” enquanto sonha com os “ricos mercadores persas de outrora”. E que dizer da sua visita à catedral desenhada por Óscar Niemeyer, em Brasília? “Aqui se poderiam reunir sindicatos, caso os seus dirigentes fossem permeáveis ao bom gosto”.  
(2010)

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