quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Agamben: nudez


Do filósofo italiano Giorgio Agamben (Roma, 1942), foi traduzido em 1993 um livrinho, “A comunidade que vem” (ed. Presença), que fez do seu autor um fenómeno de culto entre a comunidade artística portuguesa.

Entretanto, foram publicados mais alguns, poucos, títulos em que o autor se serve dos seus conhecimentos de direito romano (“Homo sacer – o poder soberano e a vida nua”, Presença) e teoria literária (“Bartleby, escrita da potência”, ed. Assírio & Alvim) para reflectir sobre a vida contemporânea. “Ser contemporâneo” é de resto um dos temas do seu mais recente livro, “Nudez” (ed. Relógio d'Água).
“Só pode dizer-se contemporâneo quem não se deixa cegar pelas luzes do século”; “o contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como qualquer coisa que lhe diz respeito e não pára de o interpelar”; “Perceber no escuro do presente esta luz que procura alcançar-nos e não pode fazê-lo, eis o que significa sermos contemporâneos”.
“A arte de viver é”, escreve no “último capítulo da história do mundo” (que é também o último ensaio do livro), “a capacidade de nos mantermos numa relação harmoniosa com aquilo que nos escapa”. “A relação com uma zona de não conhecimento”, sugere, “é uma dança”. “Enquanto, todavia, os homens reflectem há séculos sobre como devem conservar, melhorar e tornar mais seguros os seus conhecimentos, faltam-nos até mesmo os princípios elementares de uma arte da ignorância”.
No capítulo anterior, dedicado à festa (o sábado judaico) e à ociosidade, surge uma pergunta retórica: “O que é a dança se não libertação do corpo dos seus movimentos utilitários, exibição dos gestos na sua ociosidade pura? Mais atrás, no mesmo capítulo, a propósito do acto de “fazer a festa”, afirma: “Obstinamo-nos em dançar, cobrindo a perda da música com o fragor das discotecas e dos altifalantes, continuamos a desperdiçar e a destruir – até mesmo, e cada vez mais frequentemente, a vida – sem já conseguirmos alcançar a menucha, a simples, mas para nós impraticável ociosidade que, só ela, poderia restituir à festa o seu sentido. Mas porque é hoje, para nós, a ociosidade tão difícil e inacessível? E o que é o espírito da festa, como atributo do viver e do agir dos homens?”
E no texto anterior (dedicado aos hilariantes problemas dos teólogos, sem saberem o que fazer com os orgãos de um corpo, depois de atingido o paraíso), propõe que “o corpo que contempla e exibe nos gestos a sua potência acede a uma segunda e última natureza, que não é mais do que a verdade da primeira. O corpo glorioso não é um outro corpo, mais ágil e belo, mais luminoso e espiritual: é o mesmo corpo, no acto em que a ociosidade o desprende do encantamento e o abre a um novo uso comum possível”; “O corpo glorioso é um corpo ostensivo, cujas funções não são executadas, mas mostradas; a glória é, neste sentido, solidária da ociosidade”.
Resumindo: não saber, não fazer, não agir.
“Nudez” é o texto central desta recolha de dez ensaios.  As suas fulgurantes 35 páginas traduzem um pensamento laborioso, que se vai cerzindo com um olhar sobre manifestações da arte contemporânea e uma minuciosa leitura de textos teológicos (antigos e modernos) em redor do “Génesis”, do tema da graça e do pecado original.
“Por detrás da veste de graça pressuposta, nada há e a nudez é precisamente este nada ter por detrás de si, este ser pura visibilidade e presença”; “Antes do pecado, o homem vivia, assim, numa condição de ócio e de plenitude; o abrir dos olhos significa, na realidade, o fechar dos olhos da alma e o aperceber o seu estado de plenitude e de felicidade como um estado de fraqueza e de atechnia, de falta de saber.” A contemplação (o acto de ver aceitando o “segredo” – definição proposta por Walter Benjamin, pois “é no segredo que está o fundamento divino da beleza”) é assim substituída “pela técnicas e saberes mundanos”, pelas “modalidades do conhecimento”.
Por oposição ao “segredo” do belo (relação entre véu e velado), o mesmo Benjamin propõe depois o “dizer tudo” da aparência, o que leva Agamben a propor um “niilismo da beleza”, a propósito de uma atitude nas mulheres belas “que consiste em reduzirem a sua beleza a aparência pura, e em exibirem a seguir, com uma espécie de tristeza desenganada, essa aparência, desmentindo obstinadamente qualquer ideia de que a beleza possa significar seja que outra coisa for para além de si própria (…) a ausência de ilusões sobre si própria, a nudez sem véus que a beleza alcança deste modo” torna a beleza temível e este niilismo “atinge o seu estádio extremo nas manequins e nas modelos, que aprendem antes do mais a anular no seu rosto toda a expressão, de maneira a que este se torne puro valor de exposição e adquira, por isso, um fascínio particular”; “Este simples morar da aparência na ausência de segredo é o seu tremor especial – a nudez, que, como uma voz branca, nada significa e, precisamente por isso, nos trespassa.”
Esta inquietação, este “tremor” a propósito da beleza sem segredo, rima com “a redução do homem à vida nua”, num período da sua história em que se vê reduzido à identificação biométrica. O ensaio “Identidade sem pessoa” alude a essa vontade de libertação de responsabilidades morais e políticas, em que a figura do humano se liberta daquilo que sempre o constituiu como pessoa, que é o reconhecimento dos outros. O pensamento de Agamben torna-se tanto mais lúdico, e delirante, quanto mais profundamente mergulha na filologia e na arte de arrancar sentidos às palavras: o texto mais estranho desta recolha é “K.”, em que Agamben regressa às personagens K. de “O processo” e “O castelo” para novas interpretações à luz do Direito romano e dos agrimensores romanos!


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