Do filósofo
italiano Giorgio Agamben (Roma, 1942), foi traduzido em 1993 um livrinho, “A
comunidade que vem” (ed. Presença), que fez do seu autor um fenómeno de culto entre
a comunidade artística portuguesa.
Entretanto,
foram publicados mais alguns, poucos, títulos em que o autor se serve dos seus
conhecimentos de direito romano (“Homo sacer – o poder soberano e a vida nua”,
Presença) e teoria literária (“Bartleby, escrita da potência”, ed. Assírio
& Alvim) para reflectir sobre a vida contemporânea. “Ser contemporâneo”
é de resto um dos temas do seu mais recente livro, “Nudez” (ed. Relógio d'Água).
“Só pode dizer-se
contemporâneo quem não se deixa cegar pelas luzes do século”; “o contemporâneo é
aquele que percebe o escuro do seu tempo como qualquer coisa que lhe diz
respeito e não pára de o interpelar”; “Perceber no escuro do presente esta luz
que procura alcançar-nos e não pode fazê-lo, eis o que significa sermos
contemporâneos”.
“A arte de viver é”,
escreve no “último capítulo da história do mundo” (que é também o último ensaio
do livro), “a capacidade de nos mantermos numa relação harmoniosa com aquilo
que nos escapa”. “A relação com uma zona de não conhecimento”, sugere, “é uma
dança”. “Enquanto, todavia, os homens reflectem há séculos sobre como devem
conservar, melhorar e tornar mais seguros os seus conhecimentos, faltam-nos até
mesmo os princípios elementares de uma arte da ignorância”.
No capítulo
anterior, dedicado à festa (o sábado judaico) e à ociosidade, surge uma
pergunta retórica: “O que é a dança se não libertação do corpo dos seus
movimentos utilitários, exibição dos gestos na sua ociosidade pura? Mais atrás,
no mesmo capítulo, a propósito do acto de “fazer a festa”, afirma: “Obstinamo-nos
em dançar, cobrindo a perda da música com o fragor das discotecas e dos
altifalantes, continuamos a desperdiçar e a destruir – até mesmo, e cada vez
mais frequentemente, a vida – sem já conseguirmos alcançar a menucha, a simples, mas para nós impraticável
ociosidade que, só ela, poderia restituir à festa o seu sentido. Mas porque é
hoje, para nós, a ociosidade tão difícil e inacessível? E o que é o espírito da
festa, como atributo do viver e do agir dos homens?”
E no texto
anterior (dedicado aos hilariantes problemas dos teólogos, sem saberem o que
fazer com os orgãos de um corpo, depois de atingido o paraíso), propõe que “o
corpo que contempla e exibe nos gestos a sua potência acede a uma segunda e última
natureza, que não é mais do que a verdade da primeira. O corpo glorioso não é
um outro corpo, mais ágil e belo, mais luminoso e espiritual: é o mesmo corpo,
no acto em que a ociosidade o desprende do encantamento e o abre a um novo uso
comum possível”; “O corpo glorioso é um corpo ostensivo, cujas funções não são
executadas, mas mostradas; a glória é, neste sentido, solidária da ociosidade”.
Resumindo: não
saber, não fazer, não agir.
“Nudez” é o texto
central desta recolha de dez ensaios.
As suas fulgurantes 35 páginas traduzem um pensamento laborioso, que se
vai cerzindo com um olhar sobre manifestações da arte contemporânea e uma
minuciosa leitura de textos teológicos (antigos e modernos) em redor do “Génesis”,
do tema da graça e do pecado original.
“Por detrás da
veste de graça pressuposta, nada há e a nudez é precisamente este nada ter por
detrás de si, este ser pura visibilidade e presença”; “Antes do pecado, o homem
vivia, assim, numa condição de ócio e de plenitude; o abrir dos olhos
significa, na realidade, o fechar dos olhos da alma e o aperceber o seu estado
de plenitude e de felicidade como um estado de fraqueza e de atechnia, de falta de saber.” A contemplação (o acto
de ver aceitando o “segredo” – definição proposta por Walter Benjamin, pois “é
no segredo que está o fundamento divino da beleza”) é assim substituída “pela técnicas
e saberes mundanos”, pelas “modalidades do conhecimento”.
Por oposição ao “segredo”
do belo (relação entre véu e velado), o mesmo Benjamin propõe depois o “dizer
tudo” da aparência, o que leva Agamben a propor um “niilismo da beleza”, a propósito
de uma atitude nas mulheres belas “que consiste em reduzirem a sua beleza a
aparência pura, e em exibirem a seguir, com uma espécie de tristeza
desenganada, essa aparência, desmentindo obstinadamente qualquer ideia de que a
beleza possa significar seja que outra coisa for para além de si própria (…) a
ausência de ilusões sobre si própria, a nudez sem véus que a beleza alcança
deste modo” torna a beleza temível e este niilismo “atinge o seu estádio
extremo nas manequins e nas modelos, que aprendem antes do mais a anular no seu
rosto toda a expressão, de maneira a que este se torne puro valor de exposição
e adquira, por isso, um fascínio particular”; “Este simples morar da aparência
na ausência de segredo é o seu tremor especial – a nudez, que, como uma voz
branca, nada significa e, precisamente por isso, nos trespassa.”
Esta inquietação,
este “tremor” a propósito da beleza sem segredo, rima com “a redução do homem à
vida nua”, num período da sua história em que se vê reduzido à identificação
biométrica. O ensaio “Identidade sem pessoa” alude a essa vontade de libertação
de responsabilidades morais e políticas, em que a figura do humano se liberta
daquilo que sempre o constituiu como pessoa, que é o reconhecimento dos outros.
O pensamento de Agamben torna-se tanto mais lúdico, e delirante, quanto mais
profundamente mergulha na filologia e na arte de arrancar sentidos às palavras:
o texto mais estranho desta recolha é “K.”, em que Agamben regressa às
personagens K. de “O processo” e “O castelo” para novas interpretações à luz do
Direito romano e dos agrimensores romanos!
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