O Cáucaso está para
a literatura russa do séc. XIX como o western para o imaginário cinematográfico
norte-americano. Com os seus tártaros, tchetchenos e kirguizes-kaissakes no
lugar de apaches e sioux, ali se trava o eterno conflito humano entre os
imperativos da natureza e os da civilização;
entre a intuição e a
razão; entre a verdade (digamos assim) das emoções, e a consciência das suas
implicações; entre encarnar a vida como ela é e lutar por outra dimensão que
permita sobreviver ao sem-sentido da morte.
Trabalhada ao longo
de dez anos (1852-62), “Cossacos” (ed. Relógio d'Água) é a obra-prima da
juventude de Lev Tolstói. Tinha 34 anos quando a terminou. O título de
trabalho desta “novela do Cáucaso” foi durante vários anos “O fugitivo”. Da
mesma maneira que o discurso contemporâneo vive obcecado com a relação entre o
real-ficcionado e a e ficção-baseada em-factos-reais, Tolstói (tal como Eça de
Queiroz) operava no dilema romantismo-realismo. A transferência do protagonismo
de Olénin, a sua “romântica” personagem, para o povo que haverá de conhecer
durante a sua aventura caucasiana, opera uma espantosa transição entre géneros
literários.
Olénin, é um jovem
militar de origem fidalga “que já desbaratara metade da sua fortuna e que, aos
vinte e quatro anos, ainda não tinha escolhido qualquer carreira”. O seu
objectivo maior é descobrir o amor, que desconhece, à excepção do “amor por si
próprio, um amor ardoroso, cheio de esperanças, um amor jovem por tudo o que era
bom na sua alma (nesse momento, parecia-lhe que tudo nele era bom), que o fazia
chorar e murmurar palavras desconexas.”
Olénin troca a boémia
moscovita por uma comissão no Cáucaso, para onde vai em busca do mito de si
mesmo. A pergunta “que importa que apenas cresçam as ervas?” ensombra-o. Apenas
reconhece dignidade e beleza em coisas condenadas à extinção. Ele intui que a
vida é um escorredouro em direcção ao desaparecimento e esquecimento.
Tolstói transforma a
sensibilidade introspectiva da sua personagem num instrumento de observação
daquilo que pretende possuir. Olénin modela o seu carácter comparando os
moscovitas e o seu modo de vida, que despreza, com a rudeza dos cossacos. À
medida que cresce a sua admiração pela paisagem e seus habitantes, a personagem
de Olénin transita para uma consciência observadora que se torna a narração do
livro e finalmente a sua voz.
Através de Olénin,
Tolstói esculpe-se a si mesmo enquanto dimensão estética. O jovem militar em
campanha no Cáucaso transforma-se, durante o processo de trabalho em “Cossacos”,
num grande artista. A ficção descreve as mesmas impressões e intuições que
confusamente o levaram a escrever: “Olénin, porém, tinha uma consciência
demasiado forte de que trazia em si esse todo poderoso deus da juventude, essa
capacidade de se impregnar de um só desejo, de uma só ideia, essa faculdade de
desejar e cumprir, de se atirar de cabeça para um abismo sem fundo, sem saber
para quê, em prol de quê.”
Tolstói pega nos
temas caros ao “bildungsroman”, ao romance de formação, e desenvolve com eles
uma estética, com técnicas e processos narrativos próprios: a passagem da
juventude para a idade adulta, o choque entre o mundo (interior) dos conceitos
e o estado (exterior) das coisas, é traduzido num fluxo de transições que
imprimem uma sensação constante de movimento.
“Cossacos” não se
fixa em personagens, lugares, acontecimentos ou ideias, roda à sua volta num
bailado. Cada cena suspende-se para dar lugar à próxima, sem deixar uma impressão
de corte ou salto. O autor insiste em descrever cenas ao crepúsculo ou antes da
aurora: quando os camponeses regressam do campo ou os soldados abandonam a
aldeia; quando o trabalho é trocado pelo convívio; quando o despertar dá lugar à
partida; quando um tiro no escuro antecede a revelação do cadáver. Poética e
estrutura correspondem-se: as transições em Tolstói são uma arte de apagar
contrastes e contornos; as fronteiras são ilusórias, o eu e o outro fundem-se,
está-se entre algo e alguma coisa.
O próprio enfoque
amoroso transita de acordo com a disposição espacial das personagens
envolvidas: a união de Mariana com Lukachka começa por ser uma conversa entre
as suas mães (numa desopilante cena nocturna em que as mulheres correm de porta
em porta com mechas em chamas – ou, para usar a tradução proposta, com “trapos
ardentes”); torna-se numa indiscrição de um companheiro de Lukachka, a quem
revela que a sua amante dorme com outro, aconselhando-o a pedir namoro a
Mariana (Lukachka, assobiando, “tirou a faca e cortou uma jovem árvore lisa. –
Vai ser uma rica vareta – disse fustigando o ar com a vara”); e vira triângulo
amoroso numa cena nocturna em que Lukachka e Mariana (“batendo com a vergasta”)
se beijam pela primeira vez, com Olénin, que arrendou a casa aos pais de
Mariana, a escutá-los no quintal.
A vontade de amar
leva Olénin à caça! Primeiro na companhia do velho asselvajado Erochka (a
composição desta personagem é uma obra-prima dentro da obra-prima que é o
livro: quanto mais ele se diverte e embebeda, mais nos apercebemos do efeito
devastador que a perda da juventude exerceu nele), com quem descobre a cama de
um veado a que escuta a fuga, sem poder vê-lo! Depois na cena solitária de caça
em que se apercebe que os mosquitos não o importunam! Dedica-se então ao jovem
cossaco Lukachka e oferece-lhe um cavalo! E quando fala do seu desinteresse por
mulheres a um amigo vindo de Moscovo, não se apercebe que pela primeira vez
ama, castamente! A atracção por Mariana, por sua vez, verte num platónico amor
paisagístico: “Todos os dias estão à minha frente os longínquos montes nevados
e esta mulher majestosa e feliz.”
Quando a história se
fixa na disputa de Olénin e Lukachka por Mariana, passado e futuro são varridos
do livro. Até final paira um tempo presente absoluto, em que Tolstói tacteia a
textura da felicidade amorosa: as palavras ditas entre amantes deixam de dizer
o que querem, as confissões soam cómicas (“Porque não havia de gostar, não és
zarolho!”), prazer e dor copulam: “Sentia dor porque ela continuava calma como
sempre a falar com ele. Parecia que a nova situação não a emocionava
minimamente. Dava a sensação de que não acreditava nele e não pensava no
futuro. Parecia-lhe que ela o amava apenas no momento corrente, que para ela não
havia um futuro com ele.”
Quando Olénin se
apercebe da felicidade, já aconteceu; opostamente, no início do livro estava
ainda por acontecer. Entre esses dois tempos, acontece o movimento da solidão: “Fomos
companheiros, estivemos um ano inteiro juntos, e agora levanta-se e vai-se
embora. Gosto de ti, tenho pena de ti! És um desgraçado, sempre sozinho.
Mal-amado, é isso que tu és! Às vezes não durmo a pensar em ti”, diz-lhe o
velho Erochka na hora da despedida: “É difícil meu irmão, Viver numa terra
alheia! Assim és tu.” O amor é a
construção da felicidade e a felicidade está no presente. O tempo amoroso, ou a
permanência no presente, está-lhe vedado: “Olénin olhou para trás. O tio
Erochka estava a falar com Marianka, pelos vistos sobre os seus próprios
assuntos, e nem o velho nem a rapariga olhavam para ele.”
Nota final para o
casal de tradutores Nina e Filipe Guerra: a sua fidelidade à literatura russa fá-los
às vezes serem licenciosos com a língua portuguesa, como o verbo “pandegar” ou
os adjectivos a saltitarem do seu lugar (“esfarrapadas mulheres nogai”; “todo
poderoso deus”). Traduzir 150 páginas de beleza imaculada deve tentá-los a
semelhantes pecados.
(2010)
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