quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Tanizaki: uma gata, um homem e duas mulheres


“Querida Fukuko”. Esta pequena novela – tão perfeita e deliciosa como uma refeição completa em miniatura – inicia-se com uma carta.
O conteúdo da carta, escrita por uma esposa abandonada, e destinada à nova mulher do seu ex-marido, é de uma tal perversidade que hesitamos a quem atribuir a autoria da perfídia maior no resto da história: se à autora da carta (Shinako), se à sua destinatária (Fukuko), se ao marido dela (Shozo), se à mãe deste (O-rin), se à personagem principal da história (a lúbrica Lily), se ao pai de todos, que os ensinou a serem erótico-dependentes (falamos, claro está, de Junichiro Tanizaki,1886-1965).
Publicada em 1936, “Uma gata, um homem e duas mulheres” (Teorema) encerra um ciclo de grande virtuosismo criativo do escritor, em que assina “Alguns preferem urtigas”, assim como o ensaio “Elogio da sombra” (menciono apenas obras disponíveis em português). É um período em que procede a uma transição dos modelos de inspiração ocidental para os da tradição japonesa, ao mesmo tempo que elege temas e personagens em que os conflitos oriente-ocidente, modernidade-tradição, representam os nódulos do seu trabalho.
O erotismo, a possessão, o prazer, o desejo  são os temas que deram fama a Tanizaki. No caso português, foi há quase vinte anos que a Assírio e Alvim lhe publicou “Confissão impúdica” (tradução da versão francesa; entretanto a Teorema publicou “A chave”, tradução da versão inglesa da mesma novela). Quase meio século depois da sua morte, a descoberta da sua obra é ainda sumarenta. 
No caso de “Uma gata…” trata-se de uma sensualíssima articulação de enredos: cada personagem é autor, digamos assim, de uma trama narrativa própria, envolvendo as outras personagens em manipulações e influências que visam uma tomada de posse, e em que só aqueles que triunfam nas suas intenções ganham consciência do preço a pagar, pela perversidade da recompensa e pelos jogos de mentira-e-estratégia necessários para manterem as suas conquistas.
O passado de libertinagem da privilegiada Fukuko redu-la a casar-se com um pequeno lojista influenciável, mas depois tem de disputar a sua atenção à gata da casa; Shinako, humilde costureira, já se casara para ascender um degrau na escala social, mas é humilhada com a expulsão de casa planeada pela sogra; O-rin faz de alcoviteira do filho para conquistar o dote de Fukuko e a sobrevivência financeira da fazenda familiar, mas a paz doméstica tem o tempo de duração do dinheiro oferecido pelo pai da nova nora; quanto a Shozo, mal daria pela troca de mulheres, não se desse o caso de perder quem de facto ama…
O amor de Lily é o tema e a poética desta história, que oscila requintadamente entre a paródia erótica e o melodrama patético, com inúmeros pormenores de dedicação e devoção ao ser amado: “sempre que ia para a cama, Shozo tinha que estender um braço como almofada e depois tentar dormir numa posição estudada e mexer-se o mínimo possível. Assim deitado, usava a outra mão para afagar a zona do pescoço, que é onde os gatos mais gostam de festinhas; e Lily respondia imediatamente ronronando de satisfação. Até podia começar a morder-lhe o dedo, ou deitar-lhe gentilmente as garras, ou babar-se um pouco: tudo sinais de que estava excitada.”
A matéria amorosa concretiza-se até nos odores fisiológicos: “ela soltou um traque malcheiroso que o apanhou em cheio na cara. Admitamos que Shozo, por descuido, tinha apertado com ambas as mãos a barriga de Lily, mesmo no ponto onde guardava a refeição acabada de comer. E, infelizmente, o seu ânus estava naquele momento situado logo abaixo da cara de Shozo, de modo que o ‘hálito das tripas’ acertou nele em pleno. O fedor era tal que mesmo uma pessoa como Shozo, com tão grande amor aos gatos, se viu forçado a corrê-la para o chão com um – Ught! –: o proverbial ‘peido de mestre’ deve cheirar assim.”
A intimidade que Shozo melhor conhece, é a de Lily: “Sempre que Shozo tinha uma discussão com Shinako por causa da gata, não falhava dizer, sarcasticamente – Vê bem que a Lily e eu somos tão unidos que já cheirámos os traques um do outro!”
O erotismo, em Tanizaki, para além dos perversos jogos de possessão, é também uma estética da subtileza, insinuando-se em maravilhosas descrições paisagísticas, cuja contemplação sugere a lembrança do ser amado, como neste excerto: “tinha sido o último dia de Setembro e era uma dessas manhãs luminosas de Outono. Soprava um ventinho fresco que fazia tremer as folhas dos cinco ou seis choupos no terreno vazio atrás da casa, mostrando lampejos da sua face [sic] inferior branca. Mais além, viam-se os picos dos montes Maia e Rokko: uma vista muito diferente da do andar de cima em Ashiya, uma zona mais atulhada de casas. Que sentiria Lily ao olhar para aquilo?”
O tema do frio, o tema romântico da espera amorosa, e o tema da urina são eixos desta novela desopilante, que parece escolher os motivos mais triviais ou risíveis para expressar a composição literária sob o efeito do êxtase. Atentem nos excertos que se seguem do mesmo parágrafo: o reencontro de Shozo com Lily é a descrição de uma atmosfera doméstica, que provoca uma recordação olfactiva e o desenlace do tema da urina:
“As cortinas estavam corridas e não deixavam entrar a luz forte da tarde. Shinako, cautelosa como sempre, devia tê-las corrido ao sair. E daí as sombras tornarem o quarto indistinto. Na penumbra, Shozo distinguiu uma braseira de louça de Shigaraki e, ao lado, a sua querida Lily, sentada numa pilha de almofadas (…) detectou de súbito o cheiro característico, de que se tinha esquecido passadas tantas semanas. Antigamente, infiltrava-se nos pilares, paredes, chãos e tectos da sua casa; agora, enche este quartinho. A tristeza instalou-se dentro de si e chamou alto – Lily! – com voz estrangulada.”
O livro inclui ainda dois contos, ambos tendo professores como protagonistas. O primeiro, “O pequeno reino” surpreende pela forma como o autor aborda a corrupção, ou a lógica do surgimento de máfias em sociedades deprimidas pela crise financeira, num contexto em que a relação poder-submissão do professor-aluno é invertida.
Nota final sobre a tradução: é uma pena não haver quem traduza do japonês para o português. A obra de Tanizaki sobrevive ao trânsito de línguas intermediárias, e parece artificial o uso de coloquialismos por parte da tradutora, como “soma jeitosa”, “o que tem que ser tem muita força” ou “amochado”. Palavras como “esbotenada” e “abalone” parecem convites a uma charada. A frase “embora fique à face da estrada nacional” entende-se, mas é mau português. 
(2010)

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